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Pandemias e fome: uma história antiga
Jornal da USP
2023-02-02
Por José Francisco Sanches Fonseca

Em 542 d.C., o historiador bizantino Procópio de Cesareia descreveu, em seu História das Guerras, uma situação catastrófica em Constantinopla, à época capital do Império Romano do Oriente: a chegada da peste e da fome. Segundo Procópio, os primeiros casos dessa nova pandemia, popularmente conhecida como a peste justiniana, foram registrados em uma cidade portuária no Egito, em 541 d.C., e de lá se disseminaram por toda a bacia do Mediterrâneo. Em menos de um ano, as principais cidades do Mediterrâneo Oriental, como Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Constantinopla, sede da corte imperial, já haviam sido atingidas. Os casos não se restringiram aos domínios bizantinos: a pandemia também atingiu, ao Leste, o Império Sassânida. Ao Oeste, o Reino dos Ostrogodos da Itália, à época em guerra com os bizantinos, também foi atingido, bem como o Reino dos Francos e outros reinos bárbaros. Escavações arqueológicas recentes identificaram vítimas da peste justiniana em locais tão distantes quanto a Síria e as Ilhas Britânicas, passando por sítios na Alemanha, França e Espanha. Surtos intermitentes da peste justiniana ocorreram até meados do século 8 em toda a orla do Mediterrâneo.
Descrita pela primeira vez no final do século 19, a bactéria Yersinia pestis foi recentemente identificada, através da coleta de material genético em esqueletos, como a responsável pela peste justiniana e pela chamada “peste negra”, que assolaria novamente a Eurásia e a África no século 14. Transmitida principalmente pela picada de pulgas de roedores, a Y. pestis provavelmente se difundiu através de navios e caravanas comerciantes que levavam grãos das férteis margens do Nilo à capital bizantina.

Segundo Procópio, os efeitos da peste justiniana foram devastadores. Apenas na capital imperial, no pico da pandemia, que durou cerca de quatro meses no verão de 542, a peste teria feito centenas de milhares de vítimas. Mortalidades semelhantes, em menor escala, foram observadas por todo o Mediterrâneo. Devido às condições sanitárias do período, os infectados pela Y. pestis vinham de todos os estratos sociais: o próprio imperador Justiniano foi uma vítima (não fatal) da pandemia, como atestam fontes escritas, como o próprio Procópio de Cesareia, e numismáticas, como moedas que retratam o imperador com bulbos em seu pescoço.

A peste justiniana não foi a única catástrofe registrada na bacia do Mediterrâneo nesse período. Apenas cinco anos antes do começo da pandemia, em 536 d.C., erupções vulcânicas extraordinárias, provavelmente na Islândia, lançaram um nível sem precedentes de cinzas na atmosfera. Como resultado, em todo o Hemisfério Norte, a luz solar pouco penetrou na atmosfera, causando um resfriamento médio de cerca de 2,5º C. Segundo dados paleoclimáticos, outras três erupções em grande escala se seguiram nos próximos quinze anos. Como resultado, a queda nas temperaturas médias começada entre 536 e 550 d.C. foi suficiente para dar início à chamada Late Antiquity Little Ice Age (LALIA). O súbito e contínuo resfriamento global causado pelas erupções trouxe impactos significativos para a produção alimentar em todo o Hemisfério Norte. Relatos de fome em 536 foram identificados, além do mundo mediterrânico, fomes foram identificadas em textos produzidos na Irlanda, no Oriente Médio, na China, no Japão e até mesmo na América Central, atestando o impacto global do resfriamento.

O acontecimento simultâneo da peste justiniana e do evento climático de 536-550 trouxe consequências catastróficas para a situação alimentar dos habitantes da bacia do Mediterrâneo. Apesar dos efeitos devastadores causados diretamente pela Y. pestis, que incluem febres, dores, necrose e o aparecimento de nódulos, conhecidos como bubões, Procópio de Cesareia relata que boa parte da população não faleceu como consequência direta da infecção, mas sim por outra mazela: a fome. Segundo Procópio, muitos indivíduos infectados foram abandonados por suas famílias e pereceram, muito antes de a doença se tornar fatal, de fome. Fora de Constantinopla, diversas regiões do império também sofreram com a fome, em um desdobramento indireto da pandemia: a autoridade pública bizantina priorizava, com receio de revoltas, a alimentação dos habitantes da capital imperial em detrimento de outras regiões, o que resultou em crises de abastecimento por todo o império. A peste justiniana e o evento climático de 536-550 não apenas ceifaram diretamente inúmeras vidas, mas também exacerbaram as desigualdades existentes na sociedade bizantina, o que afetou majoritariamente as camadas mais pobres dessa sociedade. Apesar de a Y. pestis ter atingido indivíduos de todos os estatutos sociais, os efeitos da pandemia foram muito além apenas da infecção.

A associação entre pandemias, fenômenos climáticos e fome, infelizmente, não é um fenômeno exclusivamente antigo. Apenas no Brasil, a recente pandemia de covid-19 foi responsável, além das centenas de milhares de mortes causadas diretamente pelo vírus, pela deterioração da situação alimentar de milhões de pessoas. Após, finalmente, sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, o País, hoje, conta com cerca de 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, retornando novamente à situação pré-2014. Estima-se que 14 milhões dessas pessoas tenham entrado na situação de insegurança alimentar como resultado direto ou indireto da pandemia.

As pandemias do passado e do presente possuem uma série de diferenças consideráveis, seja em suas causas biológicas, em suas maneiras de propagação ou nas ações e inações tomadas pelas respectivas autoridades públicas. Por outro lado, as pandemias possuem uma inegável característica comum: elas exacerbam as desigualdades presentes nas sociedades do passado e do presente, expondo de forma mais acentuada seus grupos vulneráveis. E, assim como nas pandemias do passado, a ação, ou inação, das autoridades públicas são fatores decisivos para acentuar ou atenuar os efeitos das crises.

Um exercício multidisciplinar por excelência, que combina o trabalho de historiadores, arqueólogos, geneticistas, entre outros especialistas, o estudo das fontes escritas, da cultura material e dos vestígios biológicos das crises do passado nos fornece importantes pistas para compreendermos como essas sociedades reagiram às pandemias e à fome. O estudo das crises antigas é, portanto, uma atividade essencial para nossa compreensão das crises contemporâneas.

 



Conteúdo Original por Jornal da USP