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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Brasil, uma democracia sequestrada a combinar autoritarismo político e ultraliberalismo econômico 
AN Original
2021-10-01
Por Túlio Velho Barreto

Nos últimos anos, sobretudo após o golpe jurídico-parlamentar contra a presidenta da República Dilma Rousseff, que a limou definitivamente do cargo em agosto de 2016, acompanha-se a clara tentativa de se reescrever a história do país por parte daqueles que comungam com os ideários de civis e militares que golpearam a democracia em 1º de abril de 1964. E comandaram a ditadura até 15 de março de 1985, quando ocorreu a posse de um presidente civil; ainda que eleito de forma indireta, e não nas urnas. Tais tentativas se inscrevem no contexto da chamada “guerra cultural”, mais explicitamente em voga no Brasil a partir de 1º de janeiro de 2019, quando da assunção ao governo federal de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão.

Embora tais iniciativas tenham ganhado mais fôlego recentemente, ou seja, após a posse de um ex-capitão (Bolsonaro) e de um general do Exército (Mourão) nos mais altos cargos da República, pode-se dizer que o momento mais paradigmático a simbolizar esforços no sentido de reescrever a história do país tenha ocorrido um pouco antes. Ou seja, na sessão da Câmara dos Deputados que autorizou a abertura do processo de “impeachment” da presidenta Dilma Rousseff, realizada em 17 de abril de 2016.

Naquela ocasião, o então deputado federal Jair Bolsonaro votou favoravelmente à admissibilidade do processo homenageando o falecido coronel Brilhante Ustra, exatamente o primeiro militar responsabilizado e condenado por torturas ocorridas após o golpe de 1964. “Perderam em 64. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. [...] Eu voto sim!”, foram as palavras do atual presidente da República naquela ocasião, o que pode ser conferido em vídeos disponíveis no YouTube. 

A referência final se reporta, certamente e de forma cruel, ao fato de o coronel-torturador ter comandado o famigerado e temido Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, entre os anos de 1970 e 1974, quando Rousseff ali esteve presa e foi torturada, após ser condenada pela Justiça Militar por militância em organização clandestina oposta à ditadura. E é reveladora quando, na declaração do voto, Bolsonaro relaciona esses dois momentos (1964 e 2016) como sendo das vitórias de determinado segmento político-militar, então representado por um ex-capitão do Exército a homenagear alguém que sujou as mãos de sangue durante a repressão política. Portanto, associando-os em seus propósitos.

É fato que parcela importante das Forças Armadas (FFAA), em especial de alta patente, de forma recorrente, sempre fez a defesa do golpe civil-militar de 1964, mesmo após a saída do último general-ditador do cargo de presidente da República, no caso João Baptista Figueiredo, em 15 de março de 1985. No caso, se trata de defender a chamada “gloriosa revolução”. Por isso as comemorações no interior das FFAA nos dias 31 de março de cada ano, data usada pelos militares para marcar a autointitulada “Revolução de 1964”, e assim escapar do dia da mentira, 1º de abril, antes um tanto quanto silenciosas, foram ficando cada vez mais barulhentas e ameaçadoras. E culminaram com a manifestação do futuro presidente do Brasil exatamente em um mês de abril, frente às câmaras de TVs e de seus pares deputados federais. E já dava a ideia do que estava por vir.

2016: o sequestro da democracia; 2021: uma democracia torturada

Com o golpe parlamentar-jurídico desferido contra a presidenta eleita - golpe, ressalte-se, apoiado por quase toda a grande mídia e os agentes econômicos -, seguido da série de atos perpetrados no âmbito do Judiciário e de ameaças de chefes militares, pode-se defender a tese de que esse evento histórico representou o sequestro da democracia brasileira. E, na linguagem típica de períodos de exceção, pode-se dizer, igualmente, que desde então a democracia tem sido alvo de torturas, sobretudo diante dos violentos ataques aos direitos sociais consagrados pela Constituição Federal (CF) de 1988 e das medidas autoritárias adotadas a partir da assunção ao poder do então vice-presidente Michel Temer, aprofundadas após a eleição do ex-capitão e do general em 2018 e a formação de seu militarizado governo.

As sucessivas reformas da legislação trabalhista, que solaparam direitos consagrados na Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, posteriormente reafirmados ou ampliados pela CF-1988, associadas à reforma da previdência social, bem exemplificam os ataques de corte ultraliberal e autoritário desferidos contra trabalhadoras e trabalhadores. Em outras palavras, ao mundo do trabalho; tanto às pessoas que estão ou buscam o mercado de trabalho, quanto às que estão em vias de se aposentar ou já estão nesse regime. Some-se a isso a draconiana medida do governo Temer, respaldada pelo Congresso Nacional, de congelar os gastos federais com saúde e educação por duas décadas.

Mas não é só. Sob o governo Bolsonaro-Mourão têm sido adotadas medidas determinando a redução ou extinção de várias instâncias de intermediação entre o Estado e a Sociedade Civil, colocando ainda mais em xeque o frágil Estado de Bem-Estar Social, resultante da CF-1988. Entre as instâncias que foram atingidas estão, por exemplo, o Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção, Conselho Nacional dos Direitos à Pessoa com Deficiência, Comissão Nacional de Política Indigenista, Conselho Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, Conselho Nacional das Florestas, Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua, Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos, Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBTQIA+, Comitê Gestor de Internet no Brasil. Tais conselhos resultaram da criação da Política Nacional e do Sistema Nacional de Participação Social e contribuíram, entre 2002 e 2016, para a formulação de políticas públicas voltadas aos segmentos sociais e econômicos mais vulneráveis da população brasileira. Agora, com o desmonte dessas instâncias foram criadas condições favoráveis à criminalização dos movimentos sociais e à perseguição a segmentos que constituem identidades diversas, bem como à agressão ao meio-ambiente, em particular à Amazônia, e aos povos originários.

Do ponto de vista político e institucional, o pior está em curso, quando o próprio presidente, familiares e aliados atacam sistematicamente o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, no caso, voltando-se especialmente contra o Supremo Tribunal Federal e seus ministros. Mas também contra o sistema e as regras eleitorais vigentes. Portanto, ampliando ainda mais a crise política iniciada em 2016 e a transformando em crise institucional, na medida em que os ataques estão a afetar o necessário equilíbrio entre os poderes da República, pressuposto da existência do Estado Democrático de Direito. É nesse contexto que brasileiras e brasileiros vêm enfrentando a crise sanitária provocada pela disseminação do novo coronavírus; que, no momento, já levou a óbito quase 600 mil pessoas sob o negacionismo de governantes federais e aliados.

Assim, depois de uma década e meia de políticas sociais inclusivas, em que o país deixou o mapa da fome e alcançou pleno emprego, desde 2016 o Brasil tem sido o novo laboratório para políticas econômicas ultraliberais associadas a políticas sociais ultraconservadoras, senão reacionárias, sob forte autoritarismo, medidas que importam no desmonte do Estado. Situação que parece encontrar precedência no subcontinente apenas no Chile pós-golpe de 1973, período em que o atual ministro da Economia do Brasil lá trabalhou. Portanto, se a democracia brasileira sobreviverá ao sequestro e às torturas impostas pelo atual cenário político e econômico, no contexto de isolamento internacional em que se encontra o país, não se sabe. Mas, certamente, suas consequências já têm sido sentidas. E talvez nem mesmo a derrota de seus algozes em 2022, quando ocorrerão eleições presidenciais, consiga reverter esse cenário a curto ou médio prazo.  

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Túlio Velho Barreto - Cientista Político e Pesquisador Social. Docente do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (ProfSocio) da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).