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Reflexão
Anti-Heteropatriarcado
Milícias digitais, mais um reflexo do patriarcado
Outras Palavras
2021-05-03

Por CFEMEA, na coluna Baderna Feminista | Ilustração: Stephanie Pollo

Catarinas, portal independente e feminista, sofreu ataque e ficou fora do ar por dias, após publicar sobre projeto de lei que retrocede no direito ao aborto. Por que a internet é espaço vital de luta política às mulheres — e como tentam calá-las

O ano é 2021 e mais da metade da população mundial está conectada diariamente à Internet, são centenas de trilhões de dados trafegados por todos os continentes, algo inimaginável à mente humana. Hoje, mais 4,66 bilhões de pessoas ao redor do globo estão interagindo, comprando, vivendo e, claro, fazendo política pela Internet.

A pandemia da covid-19 acelerou a virtualização da vida. Os dados virtuais e dimensões reais se misturam mais facilmente entre telas à velocidade de transmissão de dados. Os anos anteriores à chegada do covid-19 já se davam como um divisor de águas na forma como a humanidade se comunicava e, coordenava seus sistemas e processos.

A eleição do Presidente Obama, nos Estados Unidos, em 2008, foi um dos marcos nessa história recente. Não por surpresa, seu sucessor, Donald Trump também teve uma eleição fortemente influenciada pela ação na internet.

No Brasil não tem sido diferente. Desde o processo do golpe, em 2016, até a chegada de Bolsonaro no Planalto, há uma linha lógica, arquitetada e construída usando o “poder da internet” na definição dos rumos sociais e políticos do país. A arena de pensamento e debate político é também virtual e, se havia alguma dúvida até então, 2020 confirma o futuro hoje.

Criada no fim dos anos 60, a Internet se consolida na mesma velocidade que imprime na vida das pessoas, dos governos e das corporações mundiais. Em poucos anos, toda uma estrutura física de dimensões faraônicas dá corpo a um clique na dimensão do nosso tempo e espaço. E é assim também que detém o nosso destino. É difícil de imaginar que a internet só ficou disponível para pessoas como nós, em meados em 1995. O Brasil já era até tetra no futebol.

No entanto, mesmo com uma ampla abrangência que nos dá a sensação de que estamos todos conectados à rede, apenas uma parcela da população no Brasil tem acesso à Internet. Em 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que 45,9 milhões de brasileiros ainda não tinham acesso à internet em 2018, ou seja 25,3% da população com 10 anos ou mais de idade. A população excluída do mundo online tem sexo, cor e etnia, mais uma demonstração das desigualdades estruturais sobre o qual o pais é construído.

Para além disso, com cerca de 75% da população de alguma forma conectada, a internet se consolidou como espaço de definições de agendas, construção de políticas, cancelamentos de ídolos e projeções de fascistas.

E ainda assim, se autodenomina democrática na essência, como uma arena aberta virtual em que todos, todas e todes podem colocar sua voz, sua marca, sua história, suas ideias, debater, fazer textão e se expor nas redes.

É nesse espaço que se reproduzem as camadas das estruturas patriarcais, racistas e machistas da sociedade. Não é por menos que as corporações investem tanto em tecnologia e as bigtechs falam em bilhões1. Eis a nova mina de ouro, “big data”, onde tudo que fazemos está constantemente vigiado, registrado e cooptado pelos estados e corporações. É nessa aquisição irrestrita dos dados que tudo muda de figura.

Em 2019, em Hong Kong, aconteceram inúmeros protestos pró-democracia, contra projetos que cerceavam direitos de expressão e de reunião. Pediam mais liberdade à complexa China. Junto com todo o imbróglio diplomático, político e policial, o poder da vigilância marcou esse momento. A polícia de Hong Kong usou de tecnologia de reconhecimento facial para criminalizar ativistas que por sua vez usaram lasers para não serem reconhecidos. Foi chamada de “uma ciberguerra contra a inteligência artificial chinesa”2. Segundo o relatório3 de Human Rigth Watch4, “o governo chinês tem criado um amplo Estado de vigilância com seu empenho para conseguir ter um total controle social.” O relatório denunciou ainda que “o governo (chinês) tem realizado invasões massivas à privacidade das pessoas por meio de ferramentas como a coleta forçada de amostras de DNA e tem implementado a análise de big data e inteligência artificial para refinar seus meios de controle.”

O mesmo relatório mostra como o uso da tecnologia para vigilância não é premissa somente de países antidemocráticos, mas também de governos que pretendem criar uma sensação de segurança por medidas que violam os direitos humanos e buscam eliminar ideias contrárias. É assim que os governos autoritários como o de Donald Trump e Bolsonaro se estruturaram a partir de uma enorme fábrica de mentiras – Fake News – e também usam a tecnologia para vigilância e controle das pessoas.

No Brasil, situações recentes confirmam como o atual governo brasileiro age nesse sentido. Em julho de 2020, a ABIN – Agência Brasileira de Inteligência, confirmou o compartilhamento de dados de mais de 76 milhões de pessoas, ignorando o direito de privacidade. Na sequência, o próprio governo vazou um dossiê de ativistas considerados “antifascistas” pelo governo, sob ação de sigilo do próprio poder executivo5. A última novidade é o uso da Lei de Segurança Institucional para quem denomina o Presidente, como genocida. esses casos também são usados como icônicos e de grande visibilidade, como o do influenciador digital Felipe Neto6 e mais recentemente com o candidato à presidência nas últimas eleições, Guilherme Boulos (PSOL)7. Após a criminalização, ironicamente Felipe Neto que conquistou mais de 50 milhões de seguidores e lançou uma campanha #Calabocajámorreu8, que oferece assessoria jurídica para quem está sendo atacado pelo Governo.

Para além dessas e outras ações institucionais, o atual governo possui uma rede de robôs9 que disseminam e apoiam suas propostas antidemocráticas nas redes sociais. Esses robôs se somam à um grupo de apoiadores de Bolsonaro que organizam e coordenam ataques virtuais a quem quer que ouse falar contra “o mito”. Esses sim, revelam o caráter racista e misógino que os une, reproduzem o discurso fundamentalista e “familista” que sustenta a base ideológica do governo. Usam dados sigilosos sem escrúpulos e promovem show de horrores em todas as redes sociais, como foi no caso da criança de 10 anos ano passado que teve seus dados divulgados na internet por procurar direito ao aborto legal10.

A luta das mulheres e dos movimentos feministas são alvos diretos desse governo e de quem o apoia. Desde a campanha #EleNão, em 2018, que levou centenas de mulheres de mulheres às ruas no país inteiro contra a candidatura de Bolsonaro, que nos colocamos ao lado oposto de suas ideias e propostas. Durante a sua pífia, mas barulhenta vida parlamentar sempre atuamos para que fosse responsabilizado pelos crimes da sua verborragia misógina. Sua reação é atacar constantemente os movimentos e ativistas feministas, alimentando seus seguidores de imagens distorcidas e mentiras com objetivo de retroceder nas conquistas das mulheres para exercerem seus direitos de forma legítima e democrática. E como recentemente vimos pelo exemplo dos Estados Unidos não existem palavras inconsequentes de um Presidente de Republica. Aqui no Brasil, tem sido também aliadas com ataques virtuais a perfis, plataformas, websites feministas e de mulheres.

No ar desde 2008, o blog feminista EscrevaLolaEscreva faz da voz a diversas questões do feminismo e da vida cotidiana das mulheres. Entretendo se formou uma rede que, para além dos robôs e seguidores das mídias sociais mencionados acima, controla de milhares de grupos de WhatsApp que usa para disseminar mensagens em massa. Em 2015, Lola Aronovich foi alvo de uma campanha de ódio que se transformou um processo judicial acusando a de defender o infanticídio e propagar discurso de ódio. O processo se resolveu revelando a mentira de quem processou, mas desde então, e ainda Lola recebe constantes ameaças de morte.11

Em março de 2021, o Portal Catarinas, que faz um jornalismo independente e feminista, foi derrubado e ficou fora do ar por sete dias. Esta é a segunda vez em que o site sofre uma ação que o obriga sair do ar: a primeira vez foi no início do projeto em 2017 e a segunda, curiosamente após publicação de uma matéria que tratava sobre o PL 5435, o Estatuto da Gestante. Dias antes, o Catarinas publicou uma matéria sobre homens que amavam homens. Ambas as matérias tiveram muitas acessos. Milhões de comandos vindos de diversos países derrubaram o site.

Para o Catarinas, a ação se caracteriza como uma violência política. “Demarcamos como violência política, justamente por ser uma ação que visa silenciamento, tirar do ar um site que faz um trabalho político muito posicionado em duas frentes, que é o ativismo a defesa dos Direitos Humanos, especialmente das mulheres, e o jornalismo. Uma atuação profissional no campo do jornalismo e esses ataques vêm numa crescente, principalmente no governo Bolsonaro”, destaca a editora do Catarinas, Paula Guimarães, relembrando o fato de que ao assumir o governo, o Presidente prometeu acabar com os ativismo, uma declaração institucional de que este governo quer e está silenciando vozes.

Um ataque de fundo político, em um contexto de misoginia. Uma tentativa de silenciar as vozes das mulheres. Derrubaram uma ferramenta de comunicação feminista, mas só por alguns dias. Uma grande mobilização na internet fez com que o site fosse recuperado. “É muito importante fazer coro, estar junto, temos uma rede que quando acionamos dá uma resposta, porque nem sempre sabemos o quanto temos corpo. Nos mostrou que nosso trabalho tem respaldo social e das organizações. E foi graças a essa rede de apoio e solidariedade que a gente conseguiu se reerguer com gás”, ressalta Paula.

Esses casos e tantos outros nos mobilizam para agir contra a estrutura patriarcal e racista que navega pela internet, que financia e favorece governos autoritários e antidemocráticos. A luta das mulheres passa pela promoção de ideias na construção de um mundo justo e plural. Não imaginar que essa luta passa pela virtualidade da vida, seria negar a realidade que nos toma. Não promover o debate de ideias com direito à privacidade e cuidados digitais para ativistas e movimentos feministas e de mulheres nos tornaria mais frágeis diante o cenário que se coloca antagônico à nossa existência. Para reafirmar que a transformação dessa estrutura também faz parte de um processo feminista é necessário para que possamos seguir criando formas e fissuras nesse sistema poderoso, ocupando todos os espaços que permitam o debate público.

Nos fortalecemos junto com dezenas de feministas ativistas que nos fazem pensar processos e promover essa internet feminista. Junto com a Rede de Transfeminista de Cuidados Digitais, MariaLab, Escola de Ativismo, Blogueiras Negras, Criptofesta e tantas outras, seguimos criando e repensando esse espaço, transgredindo regras, questionando a estrutura e promovendo a solidariedade entre nós.



CFEMEA é uma organização feminista antirracista que existe para incomodar, deslocar e transgredir. Fundada em, 1989, por um grupo de mulheres feministas, que assumiram a luta pela regulamentação de novos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988. Em 30 anos de existência, a organização desenvolveu ações de advocacy (promoção e defesa de ideias); articulação e comunicação política; ações de formação e mobilização; controle social das políticas para as mulheres e, mais recentemente a promoção do autocuidado e cuidado entre ativistas. Nosso objetivo é a sustentabilidade do ativismo, sabendo que só assim permaneceremos na luta. Estamos junto às nossas companheiras no front da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, no enfrentamento aos fundamentalismos e a todas as formas de violência contra as mulheres e na luta contra o racismo.



Conteúdo Original por Outras Palavras