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Reflexão
Anti-Heteropatriarcado
Shimaa Samy discute os desafios de ser uma jornalista no Egito hoje: uma entrevista
Global Voices
2023-06-09
Por Mariam A.

A liberdade de imprensa no Egito é caracterizada por realidade sombria

A jornalista Shimaa Samy. Foto de Samy, usada sob permissão.

Quando o sol começou a se por na tarde de 20 de maio de 2020 e a família de Shimaa Samy estava ocupada se preparando para o iftar do Ramadan, uma enorme força de segurança chegou na sua porta, em Alexandria. Os oficiais beligerantes das forças de segurança, vestidos com roupas civis, apareceram como se estivessem prontos para combater uma operação terrorista difícil e ameaçadora. No entanto, Shimaa Samy não era nem terrorista nem criminosa. Na verdade, ela representava uma ameaça bem maior – era uma jornalista.

A jornada de Shimaa em detenção preventiva logo começou, com acusações infundadas frequentemente usadas pelas autoridades egípcias para enquadrar ativistas, jornalistas e figuras da oposição que colaboram com grupos terroristas e espalham notícias falsas. Na verdade, sua acusação real era a de trabalhar com a Arab Network for Human Rights Foundation, uma ONG legal que defende a liberdade de expressão no Egito, especialmente a liberdade de imprensa, além de suas atividades jornalísticas independentes em redes sociais e jornais independentes. Infelizmente, a ONG encerrou as atividades desde então.

Apesar da ausência de qualquer evidência para sustentar as acusações contra ela, Shimaa passou 16 meses no sistema prisional do Egito. Durante esse período, ela ficou presa em condições difíceis, trancada em celas escuras que não tinham condições básicas de habitação como ventilação, serviços médicos adequados e liberdade de movimento. Ela também foi submetida a campos de isolamento forçado e confinamento em solitárias, mesmo com a falta de qualquer justificativa para esse tratamento.

A realidade sombria da liberdade de imprensa no Egito
A história de Shimaa não é única; o Egito ocupa o 168º lugar dentre 180 países com pior liberdade de imprensa. O Reporters Without Borders (RSF) classificou o país como “uma das maiores prisões do mundo para jornalistas”. A perseguição do governo à mídia aumentou nos últimos cinco anos, e pelo menos 51 jornalistas foram presos desde 2018, a maioria com acusações de propagar notícias falsas e pertencer a grupos terroristas.

As autoridades egípcias continuam a controlar o espaço cívico e suprimir manifestações pacíficas, sendo que mais de 600 sites de notícias e direitos humanos permanecem bloqueados, de acordo com um relatório da Anistia Internacional de 2022. O número de prisioneiros políticos no Egito chegou a alarmantes 60.000, incluindo jornalistas, ativistas, defensores de direitos humanos e oponentes políticos.

Em março de 2023, a Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos destacou como as autoridades empregaram detenções arbitrárias e o uso de prisão preventiva para penalizar jornalistas, defensores de direitos humanos e oponentes políticos. Além disso, o Human Rights Watch World Report de 2023 relatou condições desumanas em prisões egípcias e centros de detenções, onde prisioneiros são sujeitos a tortura e confissões forçadas.

Para o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, Shimaa Samy concedeu uma entrevista à Global Voices pelo Signal para dar visibilidade à situação da liberdade de imprensa no Egito.

Mariam A (MA): Como você descreveria o estado da liberdade de imprensa no Egito durante o ano passado, e houve alguma mudança resultante da atenção dada pela comunidade internacional sobre questões de direitos humanos, liberdade de imprensa e prisioneiros políticos após a cúpula COP27 que aconteceu no Egito?

Shima Samy (SS): A primeira resposta que vem à cabeça é “eu não vejo nenhum jornalismo”. Talvez seja um hábito que desenvolvi de transformar tragédia em comédia para superar a amargura. Mas deixe-me ser mais otimista e dizer que o jornalismo, depois de ter vivido respirando por aparelhos, agora está na UTI, e tem a possibilidade de que sobreviva assim como há a possibilidade de que morra.

A possibilidade de sobrevivência está relacionada aos esforços recentes do regime egípcio antes da COP27 ou ao início do governo Biden nos EUA? Talvez tenha sido um pouco afetado, o que significa que não podemos negar que alguns jornalistas foram libertados da prisão, o que com certeza trouxe um pouco de vida de volta, e aconteceram alguns encontros com representantes de Estado onde promessas foram feitas. No entanto, eu acho que a maior razão é a resiliência dos jornalistas. Eles continuam a trabalhar, escrever e publicar, se agarrando no direito de liberdade de expressão após 10 anos de assassinatos, torturas, detenções, ameaças econômicas e expulsões.

MA: Como alguém que foi presa pelo seu trabalho como jornalista, tenho curiosidade de saber como essa experiência afetou o seu posicionamento com relação ao jornalismo e a sua visão da liberdade de imprensa no Egito.

SS: A benção e a maldição do jornalismo no Egito é que pode colocar você em perigo, mas qualquer experiência significativa, não importa o quão difícil, pode te fazer mais pura e mais consciente. Quanto mais difícil a experiência, mais ela pode aumentar sua habilidade de analisar e descrever. A experiência de ter sido presa como jornalista me trouxe fontes e visões para abordar tópicos que eu não tinha considerado antes.
Apesar de ter conseguido minha liberdade de volta há um ano e meio, a situação infelizmente não melhorou muito. As pessoas ainda precisam pisar com cuidado para saber de tudo o que está acontecendo. A questão que permanece sem resposta é se há um avanço real ou se há intenções ocultas por trás. A máquina da opressão ainda funciona e as prisões ainda são comuns. Então, eu ainda não posso dizer claramente como a experiência afetou meu trabalho.

MA: Quais são os desafios específicos que os jornalistas no Egito enfrentam quando tentam cobrir tópicos delicados ou controversos, e como esses desafios mudaram nos anos recentes?

SS: Os desafios para jornalistas no Egito são muitos, diversos, e interconectados. Os jornalistas enfrentam a sociedade, as tradições, as autoridades religiosas e, se superam tudo isso, enfrentam a lei.
As leis no Egito proíbem a discussão de muitos assuntos e os jornalistas temem ser acusados de blasfêmia, incitação, divulgação de notícias falsas e desestabilização do país. Além disso, a sutil justificativa de proteger valores familiares é frequentemente usada como pretexto para suprimir a liberdade de expressão.
Me desculpe por ser negativa e dizer que as coisas mudaram para pior. A lei foi de mal a pior, e acima de tudo, estão aqueles que a aplicam. No fim, não podemos negar que a cultura da sociedade egípcia como um todo sofreu muito com os anos de clausura pelos quais passamos.

MA: Apesar de seu pessimismo, você vê alguma possibilidade de melhora da liberdade de imprensa, particularmente à luz das mudanças recentes no Sindicato dos Jornalistas?

SS: A vitória de Khlaed Al-Balshi como presidente do Sindicato dos Jornalistas pode estar associada ao “sopro de vida” do jornalismo egípcio. Me perdoe pelo uso do clichê. É uma cura muito necessária para uma profissão que estava respirando por aparelhos, como mencionei no início da entrevista.
A história de Al-Balshi fala por si mesma, já que ele é conhecido por apoiar liberdades, defender pessoas novas e novos jornalistas, e acolher formas diversas de jornalismo.
Houve uma sensação paupável de medo na velha guarda do sindicato na ocasião da sua vitória, queriam garantir aos seus apoiadores que eles ainda estavam presentes.
Contudo, o triunfo de Al-Bashi marca um passo significativo em direção à mudança pela qual temos lutado, onde os jornalistas com liberdade  possam florescer e ter um impacto significativo. Já é hora de que as liberdades, que no passado eram moldadas pela polícia, desempenhem um papel crucial na proteção da profissão em vez de controlá-la.
Eu sou cautelosamente otimista a respeito do futuro, dada a complexidade da situação e na implicação dos confrontos intensos e frequentemente violentos. Infelizmente, há indivíduos determinados a fazer disso uma batalha pela sobrevivência, seja dentro do sindicato, na profissão ou no amplo sistema político e social que as liberdades representam.

 


Escrito por Mariam A.
Traduzido por Isabela Torezan



Conteúdo Original por Global Voices