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Chile: os notáveis avanços da Constituinte
Outras Midia
2022-06-18
Por Javier Pineda Olcay

Públicado na Jacobin Brasil | Tradução: Clarananda Barreira.

Em fase final, o texto irá a referendo popular em setembro. Propõe Estado plurinacional, saúde e educação desmercantilizadas, paridade de gênero e Natureza como sujeita de direitos. Berço do neoliberalismo, país está a um passo de enterrá-lo.


 

Depois de nove meses de funcionamento, a Convenção Constitucional avança a passo firme na redação da nova Constituição. Até o presente momento de elaboração desse texto a versão preliminar da nova Carta Magna conta com mais de 200 artigos, aprovados todos por um quórum superior a dois terços do Pleno da Convenção.

Estes artigos são fruto do trabalho de sete Comissões Temáticas: a Comissão de Sistema Político, Governo, Poder Legislativo e Sistema Eleitoral; a Comissão sobre Princípios Constitucionais, Democracia, Nacionalidade e Cidadania; a Comissão de Forma de Estado, Ordenamento, Autonomia, Descentralização, Equidade e Justiça Territorial; a de Direitos Fundamentais; a de Meio Ambiente, Direitos da Natureza, Bens Naturais Comuns e Modelo Econômico; a Comissão de Sistema de Justiça, Órgãos Autônomos de Controle e Reforma Constitucional; e a de Sistemas de Conhecimentos, Cultura, Ciência, Tecnologia, Artes e Patrimônios.

Os artigos aprovados nessa versão preliminar da Nova Constituição, já foram aprovados pelo Pleno da Convenção Constitucional, nos permite identificar uma “coluna vertebral” que se expressa em distintos artigos em todo o texto. O artigo 1 da Nova Constituição aprovado pelo Pleno da Convenção é uma síntese disso:

Artigo 1. Estado. Chile é um Estado social democrático de direito. É plurinacional, intercultural e ecológico.

Se constitui como uma república solidária, sua democracia é paritária e reconhece como valores intrínsecos e irrenunciáveis a dignidade, a liberdade, a igualdade substantiva dos seres humanos e sua relação indissolúvel com a natureza.

A proteção e garantia dos direitos humanos individuais e coletivos são fundamento do Estado e orientam toda sua atividade. É dever do Estado gerar as condições necessárias e prover os bens e serviços para assegurar o igual gozo dos direitos e a integração das pessoas na vida política, econômica, social e cultural para seu pleno desenvolvimento.

Desmantelar o neoliberalismo e garantir direitos sociais

A caracterização do Chile como um Estado Social é a pedra angular para desarticular o sistema neoliberal constitucionalizado na Constituição de 1980, a qual ocultava o princípio de subsidiariedade, que se expressou em uma subordinação do Estado ao mercado, reduzindo o seu papel em subsidiar a atividade privada inclusive na provisão de direitos sociais como educação, saúde e previdência social, os quais foram mercantilizados.

Consagrar o Estado Social é um passo para deixar para trás as políticas neoliberais, fazendo avançar o Estado em duas importantes dimensões: seu papel em garantir os direitos sociais por meio das instituições públicas e um papel ativo na economia.

Sobre os direitos sociais, as propostas da Comissão de Direitos Fundamentais (ainda não foram aprovados) consideram como dever o Estado não só garantir esses direitos como também criar institucionalidade pública. Por exemplo, para o direito ao cuidado se dispõe a criação de um Sistema Integral de Cuidados; no direito a habitação, o Estado deve desenvolver o desenho da construção das mesmas, somando a administração de um Banco de Solo Público; no direito a saúde se consagra um Sistema Nacional de Saúde de caráter universal, público e integrado; ao mesmo tempo que no direito a educação se fala na construção de um Sistema de Educação Pública. Estes são alguns passos importantes para o fortalecer o público e desmercantilizar os direitos.

Sobre o papel ativo do Estado na economia, a Comissão de Meio Ambiente e Modelo Econômico aprovou normas para mudar os princípios que reconhece a iniciativa pública do Estado na atividade econômica, podendo adotar diversas formas de propriedade, gestão e organização para o desenvolvimento da atividade empresarial, e podendo também, reservar-se a provisão exclusiva de bens ou serviços quando assim exigir o interesse geral; a recuperação dos bens comuns naturais explorados hoje por empresas privadas, como acontece com as águas, as substâncias minerais; e uma reorientação da política fiscal, fundando um sistema tributário baseado nos princípios da igualdade, progressividade e solidariedade.

Por uma democracia participativa

Outra profunda crítica ao Estado atual é a existência de uma democracia restrita ou de baixa intensidade, tutelada pelas Forças Armadas que desde a reforma constitucional de 2005 se restringe por estruturas autoritárias até a atualidade, como é o caso do Tribunal Constitucional, e os quóruns contramajoritários no Congresso, além da falta de mecanismos de democracia direta e participativa.

Na nova Constituição, a democracia se caracteriza como uma democracia inclusiva e paritária que exerce de forma direta, participativa, comunitária e representativa. Além disso, foi acompanhada pelas consagradas instituições de democracia direta, como os plebiscitos regionais e comunais. Ainda falta votar a segunda proposta constitucional sobre mecanismos como as iniciativas populares de lei, referendos revogatórios de autoridades públicas e derrogatórios de lei, entre outros institutos, que deve ser aprovada pelo pleno nos próximos dias.

Referente à democracia representativa, a Comissão de Sistema Político decidiu manter o regime presidencialista, mas diminui a intervenção do Poder Executivo na elaboração de leis, sendo a mudança substancial a retirada de atribuições na matéria de iniciativas exclusivas de lei para a Presidência da República.

Por outro lado, o Poder Legislativo experimenta importantes mudanças. De um regime bicameral simétrico, onde o Senado e a Câmara de Deputadas e Deputados concentravam as mesmas atribuições para o processo de formação de lei – o Senado também tinha importantes atribuições para a nomeação de autoridades da República –, agora se altera para um regime bicameral assimétrico.

Este novo regime concentra o impulso político na Câmara de Deputadas e Deputados, cuja composição será paritária e com assentos reservados, assemelhando-se muito mais ao que hoje é a Convenção Constitucional que é a atual Câmara de Deputadas e Deputados. Quanto a suas atribuições (ainda pendente de aprovação no pleno), concentra a iniciativa em matéria legislativa, contudo o Senado tem o seu fim, dando passo a uma “Câmara das Regiões”, de composição paritária e plurinacional, a qual concorre com a formação de leis de acordos regionais nas matérias que até o momento estão relacionadas à Lei de Orçamento, Sistema Eleitoral e divisão administrativa e territorial do Estado. Essa alteração tem sido muito criticada pelas elites políticas, que assistem o fim de uma era oligárquica, que governou o país nos últimos 200 anos.

Outra importante expressão deste novo Estado Democrático é a descentralização política, administrativa e financeira refletida na construção de um Estado Regional e no aumento do poder local para os Municípios Autônomos. A territorialização das decisões políticas também é parte de um Estado Democrático, abandonando o Estado unitário e centralizado, cuja existência não remonta à Constituição de 1980, dado que é uma característica histórica da tradição política e constitucional no nosso país.

Além disso, a democratização das instituições não só reduz aquelas consideradas “mais políticas”, como também se democratiza as instituições ligadas ao Sistemas de Justiça, acabando com uma estrutura hierarquizada e ampliando a direção administrativa de nomeação, para uma instituição mais democrática, como é o Conselho de Justiça. Além do mais, em alguns órgãos autônomos se está abandonando unipessoalidade das direções, que ainda dependem de grande parte do Poder Executivo (como acontece com o Ministério Público, a Defensoria Penal Pública e a institucionalidade sobre Direitos Humanos), para estruturas de conselhos superiores colegiados onde possa existir intervenção da sociedade civil e do Congresso nas nomeações.

Finalmente, como um dos avanços mais importantes do processo e destacado mundialmente, aparece a consagração da democracia paritária, instalando como um mínimo a participação das mulheres não somente nos cargos de eleição popular, como em toda a institucionalidade estatal.

Começando a reparar 500 anos de espoliação

A plurinacionalidade tem sido um dos principais projetos políticos nesta Convenção Constitucional e está se expressando na Convenção Constitucional como o reconhecimento da existência de povos e nações preexistentes que habitam o país e, sobretudo, no reconhecimento a sua livre determinação, ao qual implica o direito ao pleno exercício de seus direitos coletivos e individuais.

Expressão deste princípio geral é o reconhecimento constitucional ao direito à sua autonomia e ao autogoverno, a sua própria cultura, identidade e cosmovisão, ao patrimônio e a língua; ao reconhecimento das suas terras, territórios, a proteção do território marítimo, da natureza em sua dimensão material e imaterial e ao especial vínculo que mantêm com estes, a cooperação e integração; ao reconhecimento das suas instituições, jurisdições e autoridades próprias ou tradicionais e a participar plenamente, se assim desejarem, na vida política, econômica, social e cultural do Estado.

Se expressa também o reconhecimento aos Sistemas Jurídicos Indígenas, questão que existe em outros países do mundo, mas que é inédita para o Chile. No nível territorial, a Comissão de Forma de Estado propôs o reconhecimento aos territórios indígenas autônomos como fórmula para o exercício da livre determinação, todavia essa proposta ainda não foi aprovada pelo pleno da Convenção. Na mesma situação se encontra a consagração do direito à terra e ao território e à gestão dos bens comuns naturais em seus territórios, que será votado nos próximos dias pelo pleno.

A interculturalidade como princípio fundamental da Nova Constituição consiste no reconhecimento, valorização e promoção do diálogo horizontal e transversal entre as diversas cosmovisões dos povos e nações que convivem no país com dignidade e respeito recíproco. O Estado deverá garantir os mecanismos institucionais que permitam esse diálogo superando as assimetrias existentes no acesso, distribuição e exercício do poder em todos os âmbitos da vida em sociedade.

Em outras comissões isso foi expresso na forma em que se trabalhavam direitos tais como o direito à educação e a saúde intercultural, a moradia como pertencimento à cultura, como também ao reconhecimento a seus sistemas de conhecimento.

Finalmente, a plurinacionalidade se reconhece pelo sistema político através de assentos reservados, tanto nas eleições locais, regionais e nacionais; como também na integração de pessoas pertencentes aos povos indígenas em toda a institucionalidade, incluindo Conselho Nacional de Justiça, por exemplo.

Relação indissolúvel entre a natureza e as pessoas

A Convenção Constitucional iniciou seu trabalho reconhecimento que o realizava em um contexto de crise climática e ecológica, uma definição fundamental para encarar os desafios do século XXI. A primeira norma constitucional aprovada nesta linha foi o dever do Estado de adotar ações de prevenção, adaptação e mitigação dos riscos, vulnerabilidade e efeitos provocados pelas crises climática e ecológica.

Outro importante avanço é o reconhecimento dos direitos da natureza a qual tem o direito a que se respeite e proteja a sua existência, a regeneração, a manutenção e a restauração de suas funções e equilíbrios dinâmicos, que compreendem os ciclos naturais, os ecossistemas e a biodiversidade. O anterior também se expressa em uma série de normas que reconhecem como limites ao exercício de determinadas atividades econômicas e inclusive o exercício de direitos ou liberdades a proteção do meio ambiente e a natureza.

A Natureza como sujeita de direitos também afeta o regime de propriedade sobre ela, na medida em que deixa de ser um “recurso natural” e se passa ao reconhecimento da existência de bens comuns naturais que são passíveis de apropriação e que só se podem usar, mantendo a harmonia dos ecossistemas. Os principais avanços nesta matéria se dão na regulação sobre as águas, a qual passa a ser um bem comum e não passível de apropriação, reconhecendo seu caráter essencial para a vida e priorizando seus usos.

Também, realizou se propostas normativas pela Comissão de Meio Ambiente para consagrar um estatuto constitucional a cada um dos bens comuns naturais existentes, como as águas, as minas, os bosques e o solo, a atmosfera, entre outros.

Finalmente, se apresenta uma normativa relacionada aos direitos humanos ambientais reconhecendo como ponto de partida o Tratado de Escazú, consagrando a justiça ambiental, entendida como um direito ao acesso a informação pública sobre matéria ambiental, o acesso a tribunais para defender os direitos da Natureza e direitos humanos, e o direito a participação popular na tomada de decisões sobre os projetos que causem impacto nos ecossistemas. Enquanto o papel de custódia, existe uma proposta para ter um órgão autônomo encarregada da Defesa dos direitos da Natureza e outro encarregada do sistema de avaliação ambiental denominado até o momento de Conselho Autônomo do Meio Ambiente.

Perspectiva feminista

Ainda quando não é parte da definição do Estado por suas próprias características próprias, sim é possível afirmar que a Nova Constituição tem uma perspectiva feminista avançada a nível mundial e que é expressão da potência feminista no país, cujo núcleo são as organizações feministas que tem sido chaves também no desenvolvimento desta Convenção Constitucional

Esta perspectiva na Comissão sobre Princípios Constitucionais se há expressado na norma sobre igualdade substantiva, a qual afirma que a nova Constituição assegura especialmente a igualdade substantiva de gênero, obrigando a garantir a igualdade de trato e condições para as mulheres, meninas e diversidades e dissidências sexogenéricas ante todos os órgãos estatais e espaços de organização da sociedade civil.

Na Comissão sobre Sistema Político esta perspectiva está traduzida nas normas sobre democracia paritária, estabelecendo como mínimo democrático a participação de mulheres em todas as instâncias institucionais do Estado como uma base e como um limite.

Na Comissão sobre Sistemas de Justiça já foi aprovado um artigo sobre a perspectiva de gênero como princípio do Sistema Nacional de Justiça, que se expressa na paridade da institucionalidade de justiça, como também na aplicação do enfoque de gênero por parte de todos os tribunais. Se complementa com a prática da interseccionalidade que aplicará a todo os Sistema Nacional de Justiça.

Além disso, a Nova Constituição se transformará na primeira mundialmente em reconhecer como parte dos direitos sexuais e reprodutivos a interrupção voluntária da gestação. Essa norma foi fruto da iniciativa popular de norma constitucional “Será Lei”. Tal como afirmavam as feministas, o que o Congresso negou, alcançaram com dois terços na Convenção Constitucional. Esta norma de direitos sexuais reprodutivos se complementa por uma norma sobre educação sexual integral e, também, pelo direito a identidade. Estas normas mencionadas são a expressão dessa perspectiva que estará presente em toda a Convenção Constitucional.

Avançam os povos e os setores populares

Mesmo que ainda não exista um documento com plano detalhado do que será a Nova Constituição, estas definições são parte das plataformas de luta que historicamente levantaram os povos e as organizações populares de nosso país. Este processo constituinte custa a sair, mas com certeza é um processo que caminha.

A significância do ataque sistemático por parte das elites econômicas e políticas, expressadas na sua máquina midiática, que não pararam nem um dia para desprestigiar o trabalho da Convenção Constitucional. Nos primeiros meses, os slogans dos poderosos eram que as e os que compunham a convenção eram “frouxos” e “não trabalhavam”. Ao mesmo tempo que uma vez apresentadas as propostas normativas e aprovados os primeiros artigos do projeto da Nova Constituição as expressões usadas por eles eram de que são “extremistas”, “rancorosos” e “ignorantes”, etc.

O certo é que esta Convenção Constitucional está cristalizando uma correlação de forças no campo político e social, que é expressão da Revolta Popular de 2019. Não se trata de um projeto extremista, nem (re)fundacional, mas sim de uma mudança institucional que permite a abertura política para que o esgotado neoliberalismo vá ficando para trás.

Apesar da força popular e social demonstrada na Revolta, ainda não há mudanças institucionais que ampliem a democracia, nem que abandonem o Estado subserviente. A aprovação da Nova Constituição será somente o ponto de partida para avançar para um sistema político, econômico, social e cultural que se possa dizer Solidário, Democrático, Ecológico, Feminista, Plurinacional e Intercultural.

O Plesbicito, fechado para o dia 4 de setembro de 2022 – o mesmo dia, mas 52 anos depois, da vitória de Salvador Allende – os povos terão que decidir nas urnas se esta Nova Constituição será aprovada ou rechaçada. Para além das especulações sobre o resultado do plebiscito, vale recordar as palavras de Allende, que traz uma das poucas certezas que se pode ter em tempos de convulsões sociais: “os processos sociais não se detêm”.

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Este texto faz parte da série “Convenção Constitucional 2022”, uma colaboração entre Jacobin América Latina e a Fundação Rosa Luxemburgo.



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