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Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
A Catarse da Modernidade
AN Original
2020-06-30
Por Rafael dos Santos da Silva

O substantivo feminino Catarse deriva do grego Katharsis e tem seu principal significado traduzido na ideia da libertação ou alívio alcançado após um grande trauma. O ato de purificação é por assim dizer, um constante processo que nasceu na civilização grega. Essa civilização rica em ritos e mitos, mas também pulsante em mudanças radicais, era extremamente vulnerável às invasões e açodada por conflitos políticos. Encontrava-se entre os assédios dos espartanos e o aculturamento insidioso dos romanos. Um território arenoso devido a sua complexa geopolítica, a Grécia antiga aprendeu a re-existir – existir novamente - a partir da construção da própria noção de política plantada na ideia do debate público e da participação popular. Dessa forma os gregos não apenas criaram a práxis democrática como fizeram a sua catarse. Ou seja, purificação.     

 A bifurcação social que se apresentava na época exigia escolhas profundas e mudanças substanciais. Para alguns observadores o ponto da catarse poderia facilmente significar o fim, mas para outros a responsabilidade do recomeço. Reza a lenda que aquela civilização, foi responsável por encaminhar a catarse social do seu tempo, ou seja, a purificação, a partir de um intenso e profundo trauma que a acrisolava.

Hoje, enquanto civilização somos resultado da soma e o resto desse processo. Ao ler a catarse grega podemos afirmar o quanto saímos melhor em função daquela situação, entretanto, daqui a 2000 mil anos, como descreverão a catarse da modernidade?

Antes de responder a essa pergunta convém lembrar das suas marcas iniciais da modernidade que sempre preteriu a profundidade dos textos de Charles Baudelaire à folhetins de informações rápidas. Como bem observava Karla Dubiela em seu livro “As cidades” ao parafrasear Baudelaire “por mais bela que seja a casa, ela antes de tudo medida em metros de altura e comprimento.” Dito de outra forma, o efêmero ganha apelo e se configura enquanto marca da modernidade. Nesse sentido, para aproximar o debate é preciso fazer um esforço de síntese em dois momentos importantes revelados na dimensão abstrata, e o outro na dimensão concreta. O primeiro momento consiste em entender o que chamamos de modernidade; depois onde ela sentou pouso.

A modernidade se deu numa profunda, porém sutil metamorfose. Por que? Porque, enquanto a luz elétrica iluminava as ruas e casas, também apagava a beleza da penumbra do lampião a gás. Essa realidade foi capturada por Walter Beijamin no clássico, Passagens, ao narrar a metamorfose da modernidade. Saído dos boulevards transformados em ruas, entrando pelas casas em passagens, até chegar as bilheterias dos teatros que agora dividiam espaços com a sacerdotisa, que ao invés de erguer os olhos em sacrifícios apresentava os cinzeiros do pecado. Paulatinamente, a marca da modernidade, estabeleceu raízes entre o sagrado e o profano que passaram a esculpir a nova dinâmica social revelada na cidade. Ali, a um só instante acostumou-se as dolorosas transformações do ontem, que se faz hoje, e já encaminha o amanhã. Foi a modernidade quem pariu o flâneur parisiense e o malandro carioca e acalantou a dialética transformadora do mercado, estabelecida no “tédio da agitação” que no dizer de W. Benjamin, apresentou o último dos dinossauros: o consumidor.

No segundo momento nossa síntese visa identificar o lócus das transformações. A concretude da ideia moderna, ou seja, a reconfiguração da cidade enquanto o grande picadeiro da modernidade. Seus territórios e os novos arranjos estabeleceram espacialidades profundas e complexas a constituir uma teia entre o tradicional e o novo. Como bem, argumentou W. Benjamin, o redimensionamento do tempo e espaço estabeleceu uma ação abissal potencializada pela aceleração da produção. O rescaldo cultural nesse aspecto faz lembrar o pensamento de Gramsci ao afirmar que o processo moderno figura em “viver sem ilusões e sem por isso desiludir-se.” 

Nessa linha, as contribuições Henri Lefebvre observam que a transformação dialética entre sociedade - conjunto de pessoas e instituições - e a cidade  - espaço físico e urbanístico em completa mutação - não representam “uma simples ideologia nem muito menos uma reprodução da história geral em escala local.” senão “as especificidades que se reproduzem nas relações sócio-espaciais no fundo traduzem a composição direta de um todo maior”.

Aqui emerge a reflexão de fundo desse ensaio na justa dimensão alertada pelo Professor Carlos Fortuna autor do prefácio da versão portuguesa de “O Direito a Cidade” quando alerta para a indução da cidade segundo a lógica da industrialização, produzindo segundo sua interpretação um duplo movimento: intensificação e extensão do fenômeno urbano. Assim, a urbanização, primogênita da modernidade, passou a exercer hegemonia social ao abrigar a reprodução do capitalismo em seu estágio mais bruto. Para Fortuna, nesse estágio “o espaço urbano enquanto mercadoria implicava em graves consequências sociais.” Quais são elas ?

A resposta não é simples e exige um enredo infinitamente complexo. Mas o trabalho recém publicado no Brasil, do professor Ricardo Antunes, intitulado “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil IV” nos ajuda a emendar essa concha de retalhos. Para o sociólogo brasileiro, a exploração do trabalho intermitente não apenas deslocou a categoria trabalho, mas ressignificou a categoria do valor enquanto função do trabalho. Isso só foi possível graças a lógica da mediação com as tecnologias digitais. Somada a essa realidade, é preciso considerar o esgarçamento da informalidade e das relações fabris que nas palavras de Antunes “revelam-se profundas metamorfoses estruturais da sociedade moderna”. Ou seja, o credo neoliberal, o mito do empreendedorismo, a saída individualista e a lógica do progresso, expressões maiores da modernidade, resultaram numa soma perigosa, que parece esgotar a própria lógica da modernidade.

Até aí nada de novo. Salvo algumas articulações teóricas, por isso gostaria de incrementar o que está a antecipar a catarse da modernidade: a COVID-19. Cada pessoa infectada, cada vida vencida pela doença, nos faz aprofundar um pouco mais nossa catarse. O vírus está sendo capaz de reposicionar o comportamento social, que já estava em vigor, levada à cabo pela diplomacia da força, ou pela opressão financista. Se em regra geral, esses elementos expuseram abertamente as fraturas de um contrato social mediado pelo poder do capital, em última instância, foi a pandemia da Covid-19 quem reposicionou as alegorias do credo capitalista apresentando sua insignificância em termos de mediação social.

O sistema especializado em gerar crises para delas retirar ganhos revelou seu verdadeiro tamanho frente a microscópica forma de vida, denominado de coronavírus. Isso pôs de joelhos toda noção de modernidade. O vírus saído das entranhas da terra serviu de freio de arraste ao capitalismo predatório e reposicionou a humanidade ao ponto de se reorientar suas verdadeiras necessidades.

Foi nessa linha que o filósofo coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han propôs uma serena análise a esse contexto em seu artigo “O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã” ao apresentar as limitações do modelo “moderno” baseado na liberdade de escolhas e no individualismo frente a pandemia. Essa realidade foi imposta no momento exato, em que as soberanias nacionais eram não apenas questionadas, mas desmontadas em função do privatismo assentado na ideia do estado mínimo. Assim, a pergunta que ecoou em todos os continentes foi exatamente saber: O Estado mínimo para quem? A resposta revelou a nudez da ideia.

Nossa síntese, induz que o vírus nos obrigou a mudar olhar a lente da modernidade e a ressignificar a noção de cidade. Já não há dúvidas quanto “o não retorno”. No entanto, ainda nos resta saber se essa mudança será positiva ou negativa, ou qual caminho tomaremos frente a bifurcação da história?

Será o fim da modernidade? Nem eu nem Byung-Chu Han acreditamos nisso. Mas acredito que a COVID-19 antecipou a catarse da modernidade. E por quê? Porque estar a ser inaugurada uma nova etapa da humanidade que não deve ser chamado de “novo normal” - usar essa nomenclatura é aceitar a metalinguagem hegemônica, cujo objetivo consiste em dar continuidade a seus arroubos - tão pouco é possível saber daqui: se o próximo estágio será melhor ou pior!! Isso dependerá das articulações políticas que por vez passarão pelas institucionalidades, oficiais ou não. Essa nova etapa reeditara o velho Gramsci quando apontava para o surgimento do novo sem que o velho houvesse sumido. Será determinado pelo embaçamento dos conflitos e reapropriação da produção da pobreza. A pobreza não vai sumir, mas sua produção se dará em outro patamar, contudo ainda conjugada com os velhos modelos.

O que está por vir é igualmente perigoso e esperançoso. Ainda é dúbio e vai ser determinada pela capacidade da geração que agora ler esse artigo, em disputar coletivamente as alternativas, quer seja nas áreas econômicas, tecnológicas, políticas e sobretudo ecológicas. Como bem sentencia Boaventura Sousa Santos, é preciso ter alternativa as alternativas. É hora de construí-las! Porque, o novo ficou velho sem que o tivesse nascido. Mas vai nascer!

Finalmente, quando esse artigo for lido lá na frente, ainda será atual o poema “primavera nos dentes” de Secos e Molhos quando diz: “quem tem consciência para ter coragem; quem tem a força de saber que existe, no centro da própria engrenagem inventa contra a mola que resiste”

Eis aí a Catarse necessária à modernidade, reinventar a contra mola da resistência.