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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Espectros, precariedades e resistências: o coronavírus em África
AN Original - Alice Comenta
2020-06-23
Por Bruno Sena Martins

Este artigo faz parte da série Alice Comenta da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.

O impacto da COVID-19 estabeleceu imperativos de prevenção e tratamento numa escala há muito desconhecidos. A magnitude do desastre já confirmado e a incerteza sobre o impacto da COVID-19 na saúde pública mundial suscitam uma inédita suspensão da ordem das coisas, pelo impacto de doenças, mortes, estados de emergência, confinamentos, fecho de fronteiras, serviços mínimos e alertas máximos, tudo num contexto em que, como dizia um porta-voz da Organização Mundial de Saúde, o melhor é preparamo-nos para o pior. A altíssima taxa de alto contágio do vírus SARS-CoV-2 corresponde a uma partilha planetária da vulnerabilidade ao desastre como não conhecíamos, porventura, desde o espectro da guerra nuclear da Guerra Fria. Em face da necessidade de testes, de medidas de distanciamento físico e da provisão de unidades de cuidados intensivos, as repostas que as diferentes sociedades têm dado ao novo coronavírus, marcadas que são pela contingência da data da chegada do vírus, serão certamente escrutinadas no futuro. Olhando a cada caso, falaremos de coisas tão distintas como sistemas de saúde, de lideranças políticas, de democracia, de Estado, de práticas sociais de cuidado, de solidariedade, de violência doméstica, de pessoas sem abrigo, de neoliberalismo, de violência doméstica, de degradação ecológica, de desigualdade social, de racismo, de eugenia, de patentes ou de teletrabalho.

Neste quadro, resulta curioso percebermos como os países africanos tem surgido nas notícias sobre a Covid-19: estranhamente sem o alarde de uma erupção de violência ou das lamentosas desditas, tropos que normalmente justificam algum destaque a temas de África no espaço público dos demais continentes. Mais se tratando de uma doença infeciosa, ficou um pouco transtornado o guião de uma ideia de progresso que aventava uma transição epidemiológica em que as doenças infeciosas seriam uma causa de mortalidade entretanto superada, agora reservada, qual resíduo histórico, aos ditos países em vias de desenvolvimento. Pelo contrário, nos primeiros meses da circulação internacional do vírus os países africanos viram-se na posição de terem de se defender dos fluxos vindos da Europa como principal ameaça à entrada da COVID-19.

Defendo, contudo, que de modo algum devemos romantizar imaginando uma fábula em que os países africanos superem sem dor este vírus, até porque a reversão do preconceito colonial é frequentemente a romantização ingénua. Na verdade, sabemos que o impacto do novo coronavírus em África poderá estar grandemente subnotificado por escassez de testes, que a pirâmide etária no continente constitui um fator que minora o risco de falência respiratória, e que o pior – o pico, como se diz - pode estar ainda para vir em função da deflagração tardia do vírus. O que temos testemunhado até agora é já instrutivo de como as narrativas unilineares do progresso a cada momento têm que ser confrontadas com aquilo a que Boaventura de Sousa Santos chama ecologia dos saberes. Fica igualmente claro como as receitas universais pouco atendem a um mundo tão desigual e diverso.

A primeira ideia que me parece ser importante sublinhar é que a exposição à precariedade não é apenas uma história de desastres cumulados e anunciados, é também uma história de resistências aprendidas. Sendo verdade que precariedade preda precariedade e que o vírus irá afetar desproporcionadamente as populações mais carenciadas e expostas a desastres no passado, também sabemos que o impacto do vírus não será radicalmente novo em populações que numa luta diária pela sobrevivência e que vivem com o espetro do HIV-Sida, com o ébola, com a tuberculose ou a malária. O enfrentamento continuado de doenças infeciosas e desastres proporciona a ativação de estratégias aprendidas mesmo em contextos habitacionais insalubres ou em situações de escassez em que ficar em casa não é uma opção. 

Em segundo lugar, devemos considerar que a ausência de um estado social e de um sistema de saúde estruturado, penalizador como é, há muito promoveu formas de organização comunitária que permitem suprir muitas das carências estatais. A este propósito, num texto recente Arjun Appadurais (2020) afirmava que o coronavírus, longe de afirmar o poder Estado em momentos de exceção, mostra como os estados soberanos são frágeis. Por um lado, pelas relações de interdependência trazidas por um vírus que não conhece fonteiras e que obrigou, por exemplo, a Itália a socorrer-se dos médicos cubanos e aos países ocidentais a comprarem equipamento médico da China. Por outro, afirma o autor, os Estados dependem de uma mobilização social e de formas de organização comunitária e de práticas de cuidado em que a agência das pessoas que se confinam, que se automonitoram e que se mantêm distantes é essencial. Neste sentido, falar em estado de exceção é uma leitura eurocêntrica e privilegiada que desconsidera como em muitos lugares do mundo a vida depende crucialmente das formas de ordem e cuidado produzidas na ausência de agentes e dos recursos do Estado.

Finalmente, quero ressaltar que o novo coronavírus assalta muito da opinião pública do mundo eurocêntrico como uma “morte evitável” para a qual, justamente, devem ser mobilizadas todas as forças e recursos da sociedade. Mas se falamos de mortes evitáveis o mundo novo trazido pelo COVID só é realmente novo quando visto a partir dos lugares de privilégio. Com tanta gente a morrer em resultado da mineração, do desmatamento, de diarreia, de fome ou de malária, seria bom que um levante contra as mortes evitáveis democratizasse e descolonizasse a sensibilidade neoliberal há muito instalada nos lugares de conforto do Norte Global.   


Bruno Sena Martins é Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC). É licenciado em antropologia e doutorado em sociologia. É Cocoordenador do Programa de Doutoramento "Human Rights in Contemporary Societies" e Docente no Programa de Doutoramento "Pós-Colonialismo e Cidadania Global". É Co-coordenador no Programa de extensão académica "O Ces vai à Escola". Foi Vice-presidente Conselho Científico do CES/UC (2017-2019) e foi Cocoordenador do Núcleo "Democracia, Cidadania e Direito" (DECIDe) do CES/UC (2013-2016). Os seus temas de interesse incluem o corpo, deficiência, direitos humanos, racismo e colonialismo.