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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Os esfarrapados do mundo diante do Covid-19
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2020-03-27
Por Maria Elisa Siqueira Borges

Venho de um país que está sendo destruído por um governo de extrema direita e de extrema incompetência. Mas, se venho de um país que está sendo destruído pela ganância do capitalismo e por ideologias perversas de extrema direita, também sou do país de Paulo Freire, do qual sou uma estudiosa há muitos anos. É nele que me apego neste momento, não para repeti-lo, mas para tentar reinventá-lo. E escrevo este texto com raiva e com amor, necessários ambos à esperança, entendida como necessidade ontológica.


@JR

As políticas de educação, ambiente e saúde vêm sendo desmobilizadas e esvaziadas desde a posse deste (des)governo em janeiro de 2019. Mas a chegada imprevista do COVID-19 deixou mais evidente essa necro-política de um governo neoliberal, sem qualquer preocupação com a saúde e sobrevivência de sua população, em especial, os mais pobres e vulneráveis.

O mundo todo se mobiliza para conter essa pandemia. A Organização Mundial da Saúde emite orientações que incluem isolamento, quarentena, cancelamento de grandes eventos. Orientações que vêm sendo seguidas por grande parte dos países que se preocupam, ainda que minimamente, com a vida e a saúde de sua população e não apenas com a economia não distributiva de um capitalismo periférico.

Apesar da mobilização mundial, o presidente Jair Bolsonaro usou a cadeia nacional de rádio e televisão no dia 24 de março para, mais uma vez, minimizar o Covid-19. E pedir à população que leve sua vida normalmente, com exceção apenas das pessoas maiores de 60 anos, grupo de risco da doença. Mensagem que se alinha ao tom adotado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de quem Bolsonaro tem sido um humilde servo. O pronunciamento foi feito no mesmo dia em que a pandemia provocou o adiamento para 2021 dos Jogos Olímpicos de Tóquio.

Autoridades brasileiras como os chefes da Câmara dos Deputados, do Senado e do Supremo Tribunal Federal emitiram notas criticando duramente a posição do presidente e deixando claro a cisão que se coloca hoje entre os três poderes brasileiros. A democracia brasileira também se encontra doente.

O Brasil tem um sistema de saúde, SUS – Sistema Único de Saúde - criado em 1988 pela Constituição Federal Brasileira, que determina que é dever do Estado garantir saúde a toda a população brasileira.

O SUS é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, que deve garantir o acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação. A atenção integral à saúde, e não somente aos cuidados assistenciais, deve ser um direito de todos os brasileiros, desde a gestação e por toda a vida, com foco na prevenção e a promoção da saúde.

O SUS se baseia em princípios como a universalização (direito de todas as pessoas, sem discriminação); a equidade (tratar desigualmente os desiguais, investindo onde a carência é maior) e a integralidade (promoção e prevenção da saúde, tratamento e reabilitação).

A gestão das ações e dos serviços do SUS deve ser solidária e participativa entre os três entes da Federação: a União, os Estados e os municípios, cada um tendo responsabilidades específicas.

A preocupação com a saúde universal no Brasil se torna evidente para quem conhece de perto a realidade brasileira, para além dos guias de turismo.

De acordo com dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletados durante o Censo de 2010, cerca de 11,4 milhões de pessoas (6% da população) viviam em “aglomerados subnormais”. O IBGE identificou 6.329 favelas em todo o país, localizadas em 323 dos 5.565 municípios brasileiros.

Morar em favelas (hoje chamadas de comunidades numa tentativa de diminuir a discriminação de sua população) significa, na prática: viver em aglomerações, muitas vezes sem água e sem condições de higiene.

Famílias inteiras vivem confinadas em espaços mínimos (seis, oito, dez metros quadrados), em barracos (casas feitas de madeira ou papelão), dormindo no chão, muitas vezes, dividindo essa habitação com ratos e insetos.

O contágio do vírus se dará (e já está se dando) de forma muito rápida e sem controle. Com certeza, hoje, os doentes das comunidades não estão em nenhuma estatística oficial e nem estarão, por opção de um governo que se elegeu e governa com base em notícias falsas.

Médicos e médicas das Unidades de Pronto Atendimento (UPA) da favela Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, denunciaram que foram orientados a fazer diagnósticos de gripe comum em todos os pacientes que vierem se consultar com sintomas de COVID 19. A orientação, segundo eles, é para prescrever remédios de gripe e mandá-los para casa.

O representante dos moradores de outra favela, a da Rocinha, uma das maiores do Estado do Rio de Janeiro, afirmou que já existem dezenas de pessoas com sintomas do COVID 19 e que estão sendo ignoradas pelo poder público.

O princípio de equidade, tão caro ao SUS, é frontalmente desrespeitado, os mais carentes sendo, propositalmente, deixados na invisibilidade. Eles não devem aparecer em estatísticas.

O presidente da República ignora e desfaz todos os esforços que o Ministro da Saúde e alguns governantes dos estados têm tentado fazer, utilizando a rede e o preparo dos profissionais do SUS.

A perspectiva é dramática: se nada for feito, um genocídio nas favelas brasileiras será inevitável. Isso precisa ser denunciado. O mundo precisa saber dessa e de tantas outras realidades que insistimos em não ver.

O que diria Paulo Freire aos “esfarrapados do mundo” aos “condenados da terra” diante deste quadro de intensa perversidade?

Esse coronavírus não veio, como afirmam algumas mensagens que tenho recebido, para mostrar que todos somos iguais e outras ingenuidades. O vírus escancara uma realidade trágica com a qual convivemos no dia a dia, que tentamos não ver. E mesmo diante dessa nova realidade, insistimos em ocultar. Como os cegos de José Saramago em seu Ensaio Sobre a Cegueira.

Nunca, na história de meu país, foi tão importante reviver Paulo Freire. Diante de tanta ignorância e mentiras, se faz imprescindível repensar nossas relações económicas, sociais e com a natureza, à qual pertencemos e que não nos pertence.

Nos encontramos hoje naquilo que Paulo Freire chamou de situação-limite, aquelas que se constituem por contradições que envolvem as pessoas, produzindo-lhes uma aderência aos fatos e, ao mesmo tempo, uma sensação de fatalismo em relação ao que está acontecendo. A não percepção das contradições existentes na situação, traduz-se em impotência para ação.

Tornar visíveis essas contradições exige, segundo ele, uma pedagogia da denúncia e do anúncio em busca de um inédito viável, aquilo que ainda não existe mas que pode ser pensado, criado e experienciado. Denúncia de uma estrutura desumanizante e anúncio de uma outra, humanizante.

Não sabemos o que está por vir mas podemos pensar, utopicamente como nos dizia Paulo Freire, que é possível reinventar a vida, reinventar nossa maneira de estar no mundo. Lembrando que utopia, para Freire, não é o não realizável mas sim a compreensão da história como possibilidade. A certeza de que “o mundo não é, mas está sendo”.

Parafraseando o compositor brasileiro Chico César talvez seja isso, a reinvenção da vida, que a cigana analfabeta tenha lido na mão de Paulo Freire. Nos resta, reaprender a ler.


Maria Elisa Borges é Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense – Volta Redonda – Rio de Janeiro – Brasil e Investigadora visitante em estágio pós doutoral no Centro de Estudos Sociais de Coimbra