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A força da democracia, ou a densidade dos corpos em protesto
AN Original - Alice Comenta
2019-06-25
Por José Manuel Mendes

Num mundo dominado pela obsessão da pós-verdade e pela presença esmagadora das redes sociais virtuais na produção e receção de factos e eventos políticos, muitos autores neoliberais interrogam-se sobre a saúde e a sobrevivência da democracia, tal como a defendem e na sua versão ocidentalocêntrica.

Essa visão pessimista, que paradoxalmente pode também ser celebratória e fatalista, acentuou-se com o refluxo dos movimentos sociais que, desde a Primavera Árabe e o movimento dos guarda-chuvas em Hong-Kong em 2014, entre muitos outros em África, no Médio Oriente e na Ásia, indicavam o recrudescimento de dinâmicas democráticas e a possibilidade de formas de governação participadas e assentes nas bases e no poder popular, sem lideranças e reforçando a horizontalidade do poder.

Esse refluxo ficou patente na escolha de "pós-verdade" como a palavra do ano em 2016 pelos dicionários Oxford, culminando em processos políticos como o Brexit e a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, acentuando-se posteriormente no impeachment ilegal de Dilma Rousseff de presidente do Brasil e na eleição de Jair Bolsonaro, no processo de reforço autoritário na Turquia e nas Filipinas, no genocídio dos Rohingya em Myanmar, sob a presidência da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, e na ascensão ao poder de partidos racistas e xenófobos na União Europeia, entre muitos outros processos análogos pelo mundo.

Contudo, a assunção de práticas democráticas e a luta nas ruas com corpos que correm riscos e decidem juntar-se a milhares de pessoas que não conhecem na consecução de um objetivo comum, numa comunidade imaginada de protesto, e com símbolos e cânticos nem sempre convergentes, deixa sempre traços e memórias inscritos, mobilizáveis em circunstâncias e em contextos específicos, reativando rituais, processos e solidariedades, mesmo aparentemente inconsequentes.

Um dos contextos surpreendentes, e já muito discutido e analisado, foi o das eleições europeias, com uma descida geral da abstenção no espaço europeu, uma maior participação dos e das mais jovens, e a não confirmação do processo de consolidação dos partidos de direita e de extrema-direita. E uma das lições a retirar é a seguinte: o discurso político emancipador e radical não está esgotado, mas sim as metáforas, os temas e os símbolos que o têm veiculado. É necessário um exercício de tradução e de proximidade políticas para apreender as causas que são mobilizadoras e as imagens em que os mesmos se podem cristalizar ou sustentar.

Mais recentemente, longe estavam as autoridades de Hong-Kong de imaginar que uma proposta de lei para a extradição de cidadãos e cidadãs par a China seria acolhida e rejeitada de forma tão veemente por ativistas, movimentos sociais e, muito importante neste contexto concreto, por certos líderes religiosos. A memória, as práticas e os reportórios de protesto de 2014 estão presentes nas mobilizações de 2019, e o jogo complexo, contraditório e conflituante da imaginação democrática, ou seja da possibilidade de um exercício partilhado de poder, de uma igualdade quase inatingível e utópica mas que se instala teimosamente como referente do estar/com e do estar/juntos, emerge e manifesta-se, neste caso sem cedências a potências tutelares.

O último exemplo prende-se com o regime ditatorial em vigor na Turquia. A derrota do partido de Recep Tayyip Erdoğan em Istambul no domingo passado, dia 23 de junho de 2019, numa eleição repetida depois de um processo fraudulento de anulação dos resultados da anterior votação, mostra, também, o efeito e a força das grandes manifestações de Gezi Park em 2013. Um protesto nunca é em vão. A sua possibilidade e sua realização revelam as pequenas fissuras emergentes nos aparelhos de poder e das forças de repressão. Um corpo em protesto é algo que fica moldado e pronto para a resistência, para a ação, sempre entretecido em redes sociais, pois um protesto é sempre algo eminentemente social, embora com capilaridade diferencial.

E é para a capacidade de compreensão destas linhas de solidariedade e para a possibilidade de aprendizagens e traduções transnacionais que nos equipa as Epistemologias do Sul, alicerçadas numa opção radical pela copresença e pela complexidade da artesania nas práticas. Destas últimas emergem a possibilidade de alternativas democráticas e a certeza de que os princípios e as lógicas democráticos não se resumem à pobreza da democracia liberal e representativa, e que outras formas e processos de fazer democracia enriquecem e contribuem para a demodiversidade e para a possibilidade de um mundo outro, de emancipação e de igualdade radical.