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Escola de Inverno 
Ecologias Feministas de Saberes
Coimbra - CES-Alta | 21-24 de Janeiro, 2019
AN Original
2019-01-16
Por Teresa Cunha

A Escola de Inverno ‘Ecologias Feministas de Saberes’ é uma iniciativa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul que tem dois objectivos principais. O primeiro é partir da premissa teórica de Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual não há justiça social sem justiça cognitiva, para a ampliar e a radicalizar.

Sabemos que, ao longo da história, as mulheres1 têm sido o grupo humano que a mais sistemas e camadas de opressão tem estado sujeito. Ora, esse carácter transversal, estrutural mas também plural das suas experiências tanto de vitimização, quanto de emancipação, deve ser completamente visível e crucial para as Epistemologias do Sul. Deste modo, afirmamos que não há justiça social e cognitiva sem justiça sexual. Ou seja, não há justiça social e cognitiva até que todas as mulheres, e demais identidades que se representam como femininas, assim como as suas práticas, conhecimentos e trabalhos, estejam livres de qualquer forma de discriminação, violência ou subalternização. Interrogamos, pois, qualquer epistemologia, feminista ou não, que não ponha em evidência o perigo constante da single story; que não procure compreender a existência de várias estruturas narrativas e de conhecimento que homogenizam e amalgamam a intensa diversidade e, potencialmente infinita dos saberes e experiências das mulheres; e, não questionam as relações de poder que, de uma forma ou de outra, continuam a inferiorizar as suas funções, actividades, modos de vida e de dizer o mundo. Argumentamos, pois, que uma hermenêutica feminista das Epistemologias do Sul nos convoca a colocar sob escrutínio os questionamentos teóricos e analíticos no que respeita a qualquer naturalização da subalternidade das mulheres. Pretendemos desconstruir qualquer aparato androcêntrico que esteja, explicita ou implicitamente, presente nas nossas análises e teorizações, por mais críticas que elas aparentem ser.

O segundo objectivo desta Escola tem como como raiz conceptual a ecologia de saberes para buscar reconhecer, valorizar e validar ecologias feministas de saberes.

Assumida a incompletude de todos os conhecimentos e a arrogância e o autoritarismo de qualquer ciência que não seja profundamente feminista, um diálogo exigente entre diversos conhecimentos feministas e as Epistemologias do Sul abre a possibilidade de construir novos campos de saber, pensar e agir. Isto significa reconhecer, valorizar e validar a potência epistémica e social do mundo pensado e marcado pelas experiências e conhecimentos das mulheres, na busca de uma vida abundante e digna para todas e todos. Enfim, possibilita-nos ampliar conhecimentos para ler e captar as tensões e as desigualdades sexistas que existem e persistem e, perscrutar, nesse Sul, que é a metáfora dos conhecimentos nascidos nas lutas das mulheres, a sua formidável energia de superação e transformação. Esta Escola de Inverno procura desenvolver um pensamento feminista crítico, reflexivo e dialogante e um espaço de discussão e de construção de conhecimentos fortemente contextualizados e que visam alimentar as solidariedades Sul-Norte e Sul-Sul.

A nossa proposta de construção de Ecologias Feministas de Saberes em diálogo com as Epistemologias do Sul pressupõe três exercícios principais. O primeiro é conter as nossas memórias e narrativas de emancipação para abrir espaço a outras, porventura divergentes e mal compreendidas por nós. Para tal, é preciso praticar o auto-silenciamento para abrir os ouvidos e fechar a boca e, colocar, em causa a lógica abissal e de banda estreita com que costumamos pensar e escrever; desaprender para poder aprender de novo; e praticar a compaixão contra-condescendente para poder ouvir outras palavras, os silêncios ou os gritos escolhidos com que, muitas mulheres, dão conta da compreensão que têm delas mesmas e dos seus mundos. Trata-se, pois, de ultrapassar a pulsão de elaborar e se apegar a uma qualquer narrativa-mestra de emancipação das mulheres.

O segundo exercício é construir uma epistemologia feminista insurgente que rompa com a persistente obsessão colonial que define, reduz e descreve asmulheres, no seu conjunto, através de três características fundamentais: as vítimas, subjugadas pela sua própria incapacidade ou incompetência; as excecionais, capazes de ser como os homens, medida de todas as coisas; e as intocáveis, retidas na incomensurabilidade de divindades separadas radicalmente da vida. Neste sentido, as ecologias feministas de saberes são buscas plurais, tanto epistémicas quanto políticas de relações sociais que, por diferentes razões, se apresentam livres, ou em processo de libertação, do controlo colonial cognitivo. Este exercício implica, pois, assumir a importância dos conhecimentos que emergem a partir dos escombros provocados pelo colonialismo, em articulação com o capitalismo e o hétero-patriarcado, e credibilizar o que neles são, já, prefigurações de descolonização epistemológica e subversão das relações sociais sexistas e de exploração capitalista existentes.

O terceiro exercício é metodológico. Construir conhecimentos feministas, insurgentes, contextualizados e emancipatórios significa submeter as nossas metodologias a um intenso questionamento crítico que as impeça de prolongar e alimentar a deriva extractivista e autoritária inscrita na ciência moderna ocidental. Para isso, destacam-se dois conceitos geradores: a ciência como conhecimento de retaguarda e a auto- reflexividade como insubmissão. Com o primeiro, vai-se muito para além da oposição positivista entre quem pensa e quem age. Ser-se crítica de retaguarda significa, sobretudo, não se contentar com o que já se sabe e estar apoiando, alimentando, numa relação tensional, mas amorosa, as lutas, as possibilidades, os desafios colocados às ciências sociais ao serviço das transformações sociais pelo máximo de dignidade para todas e todos. A auto-reflexividade como insubmissão não é conhecimento per se mas amplia os campos de confrontação e de argumentação porque requer a presença do lugar de enunciação e da emoção. A auto-reflexividade permite transitar do trabalho reprodutivo e repetitivo do estado da arte para o trabalho produtivo de construção de conhecimento criativo e inédito porque é um campo de luta pelo poder de interpretar.

Pensar, construir e levar a cabo esta Escola de Inverno tem sido, em si mesmo, um processo colectivo e colaborativo. Somos uma equipa que conta com mulheres e homens, intelectuais e activistas feministas de vários países e sensibilidades e que coloca em diálogo conceitos, práticas, emoções, conhecimentos mas também sabedorias diversos. Vamos usar diferentes tipos de linguagem para pensar e dizer o mundo sem deixar de o querer transformar num lugar onde caibam todas as vidas. O programa que propomos é disso mesmo um exemplo uma vez que envolve a realização de seminários, oficinas, teatro, viagens e passeios (vd.: PROGRAMA )

Nós somos:


1 Como não é objectivo deste texto não desenvolvemos a discussão em torno do potencial colonial e heteronormativo do conceito de ‘mulher’ quando pensado como um universal. No entanto, assinalamos aqui, não apenas o debate, como a nossa atenção a ele e a nossa partilha das críticas levadas a cabo por várias feministas. Ver bibliografia da Escola.