pt
Reflexão
Original
Anti-Colonialismo
Polémica nas Eleições Autárquicas em Moçambique 
AN Original
2023-12-31
Por Teresa Almeida Cravo

As sextas eleições autárquicas em Moçambique, desde a sua independência, estiveram envoltas em polémica. O país foi a votos para eleger os seus representantes ao nível autárquico a 11 de outubro de 2023, em 65 municípios – 12 adicionais relativamente ao sufrágio anterior, em 2018. Os resultados inicialmente anunciados pela Comissão Nacional de Eleições deram uma vitória avassaladora à Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), o partido no poder e que governa o país desde o fim do jugo colonial português. Este apuramento inicial dava 64 dos 65 municípios à Frelimo, com o MDM (Movimento Democrático de Moçambique) a ganhar apenas a Beira. Surpreendentemente, o maior partido da oposição, a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), emergia desta contagem inicial sem nenhum mandato autárquico.

Fotigrafia de  David Peterson, Pixabay.

 

Os protestos começaram ainda antes do plebiscito ter lugar. Desde logo, com o processo de recenseamento acusado de bloquear intencionalmente o registo dos eleitores da oposição. Suspeitas sobre a idoneidade do processo de votação viram aparente confirmação com membros das mesas de voto assim como diretores do Secretariado Técnico da Administração Eleitoral a nível distrital e também das Comissões Distritais de Eleições a serem acusados de manipulação dos resultados, a favor da FRELIMO. A oposição queixou-se de “mega fraude”, instaurou pedidos de impugnação, e mobilizou a população para vir contestar para as ruas. Em reunião extraordinária, a Comissão Política Nacional da RENAMO decidiu não reconhecer os resultados das eleições autárquicas de 11 de outubro, e declarou a vitória do seu partido nestas eleições. Houve fortes críticas aos resultados anunciados pela Comissão Nacional de Eleições por parte da sociedade civil e de vários dos 133 observadores eleitorais credenciados (76 estrangeiros e 57 nacionais). A coligação de organizações não-governamentais moçambicanas "Mais Integridade" acusou o partido no poder de fraude, afirmando, com preocupação, que “as eleições autárquicas não foram transparentes, íntegras e imparciais”. As forças de defesa e segurança reprimiram violentamente as demonstrações que inundaram as ruas de algumas cidades moçambicanas, nomeadamente a capital, Maputo, que denunciavam fraude nos resultados apresentados pela Comissão Nacional de Eleições e exigiam a recontagem dos votos. A Amnistia Internacional condenou o uso excessivo da força pelos agentes, que usaram gás lacrimogéneo e balas reais contra a população, acabando por provocar vários feridos e, pelo menos, seis mortes.

As acusações de fraude eleitoral e a agitação nas ruas obrigaram o Conselho Constitucional a pronunciar-se, enquanto órgão de última instância com competência para validar as eleições em Moçambique. O Conselho julgou 40 recursos de 32 dos 65 municípios onde se realizaram eleições autárquicas. Após a sua decisão, a 24 de novembro de 2023, a FRELIMO viu cair o número de onde saíra inicialmente vitoriosa de 64 para 56 dos 65 municípios – mantendo, porém, as duas principais cidades do país, Maputo e Matola, reivindicadas pela oposição. A RENAMO viu-lhe reconhecida a conquista de quatro dos municípios e o MDM manteve o que lhe havia já sido atribuído. O Conselho Constitucional ordenou ainda a repetição da votação em 75 mesas de quatro municípios – Nacala-Porto (Nampula), Milange e Gurué (Zambézia) e Marromeu (Sofala) – confirmando as reclamações da oposição e da sociedade civil relativas a irregularidades eleitorais graves.

 

 

Imagem de Felipe Blasco, Pixabay.

 

 

Após semanas de ausência, em protesto, os deputados da RENAMO regressaram ao Parlamento a 29 de novembro, vestindo-se, porém, de preto e exibindo frases escritas na roupa como "Abaixo ladrões de voto" ou “Tiranos, roubaram o voto do povo" ou ainda "Moçambicanos façam Justiça". Não obstante as decisões do Conselho Constitucional serem inapeláveis, o maior partido da oposição prometeu igualmente interpor recurso extraordinário, exigindo a anulação do acórdão que validou os resultados das eleições autárquicas. Numa nota de 1 de dezembro, a Ordem dos Advogados de Moçambique contestou também publicamente a proclamação dos resultados do escrutínio pelo Conselho Constitucional, acusando-a de carecer de fundamentação legal. Alertou igualmente para o “descrédito total dos moçambicanos” relativamente às instituições de administração eleitoral, e pediu a revisão da sua composição, assim como da legislação eleitoral, antes das próximas eleições que se avizinham em menos de um ano.

A repetição da votação decretada pelo Conselho Constitucional deu-se, finalmente, este mês, a 10 de dezembro, embora novamente sob um clima de elevada tensão, com forte presença policial, relatos de situações de violência, incluindo disparos da polícia, e suspeitas de irregularidades, nomeadamente boletins de voto pré-preenchidos. Vários observadores eleitorais nacionais e internacionais, presentes nesta repetição das eleições, pronunciaram-se, voltando a denunciar a atuação do governo. A Plataforma de Observação Eleitoral Conjunta “Sala da Paz” afirmou que, de facto, a situação de ilícitos eleitorais e de violência de 10 de dezembro foi semelhante à ocorrida a 11 de outubro. No entanto, sem grandes surpresas, a 30 de dezembro, o Conselho Constitucional acabaria por proclamar a FRELIMO vencedora das eleições que haviam sido repetidas, validando, assim, a vitória final do partido no poder em 60 de um total de 65 municípios no país.

 

Avenida da Marginal, Maputo, Mozambique. Fotigrafia de Rohan Reddy, Unplash.

 

As eleições autárquicas de 2023 em Moçambique revestiam-se de considerável importância simbólica e material. O escrutínio foi visto como um teste ao Acordo de Paz e Reconciliação Nacional de 2019, entre o governo da FRELIMO e a RENAMO, para pôr fim aos confrontos armados entre as duas partes, iniciados em 2013. Sendo as primeiras eleições realizadas depois de, em junho de 2023, se ter concluído o processo de desarmamento, desmobilização e reintegração da RENAMO, havia esperança que o partido pudesse ganhar espaço institucional para a luta política. Nesse sentido, a condução do ato eleitoral era suposto exprimir o compromisso da FRELIMO para com uma RENAMO que aceitara esvaziar-se militarmente e perder a capacidade de exercer pressão que lhe era conferida pelos seus 5221 antigos guerrilheiros e guerrilheiras. Porém, os fortes indícios de fraude em detrimento da oposição, a cobertura judicial, e a atuação violenta da Unidade de Intervenção Rápida contra manifestantes evidenciam e, simultaneamente, protegem a partidarização do regime, que há muito beneficia o partido no poder.

No contexto de um processo de paz ainda volátil e perante a perspetiva de novas eleições a 9 de Outubro de 2024, onde os moçambicanos serão chamados a escolher Presidente, Parlamento e autoridades provinciais, a mão pesada do governo da FRELIMO, perante a eventualidade de perder nas urnas neste momento eleitoral, não augura bons sinais para o futuro da democracia no país.

 


   Teresa Almeida Cravo é Professora Associada de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos Sociais, onde lidera como PI o projeto REPLAY : Approaches to peace and the (re)production of violence in Mozambique, financiado pela FCT. 


Este artigo baseia-se na investigação conduzida no âmbito do projeto REPLAY – Approaches to peace and the (re)production of violence in Mozambique, financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto “EXPL/CPO-CPO/1615/2021”. DOI 10.54499/EXPL/CPO-CPO/1615/2021 (http://doi.org/10.54499/EXPL/CPO-CPO/1615/2021). Ver mais.