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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
A Proteção Social em Moçambique
AN Original
2023-12-29
Por Teresa Almeida Cravo, Maria Clara Oliveira

Nas últimas três décadas, o conceito de proteção social deixou de ser uma preocupação quase exclusiva dos países do Norte Global para passar a abranger as necessidades e prioridades do Sul Global. Entendida como um fator-chave para prevenir a pobreza e a vulnerabilidade, assim como para promover o desenvolvimento económico e social nestes países, a proteção social tem ocupado um lugar de destaque nos debates políticos nacionais e internacionais. De entre uma panóplia de opções, os programas de transferência de dinheiro foram ganhando espaço e adeptos, nomeadamente na África Subsariana.

Moçambique destaca-se, regionalmente, por ter sido um dos primeiros países a adotar um programa de transferências monetárias logo em 1990. Não obstante a sua forte dependência da ajuda externa, tanto o governo nacional como os agentes locais no terreno foram cruciais para determinar o seu alcance e ritmo.

                                   

                                          Imagem de Teresa Cotrim por Pixabay

 

Quando se torna independente em 1975, Moçambique recebe uma herança muito limitada do Estado colonial português em matéria de proteção social. O aparato administrativo na ex-colónia tinha oferecido formas muito diminutas de proteção social – essencialmente pensões e indemnizações por ferimentos e morte –, unicamente a um segmento muito restrito de indivíduos – colonos e assimilados –, e já bastante tarde – apenas a partir do século XX. A figura do abono de família, que incluía os nativos, só foi concebida em 1966, e já perante o surgimento da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o receio da sua atração junto da população moçambicana.

O fim do jugo colonial, e sobretudo a adoção do marxismo-leninismo em 1977, inspirou um esforço redobrado no papel do Estado, que se traduziu na atenção dada à proteção social, particularmente, dos idosos e deficientes, e nas pensões e benefícios para funcionários públicos. No entanto, o impacto devastador da guerra civil entre a FRELIMO e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) reverteu rapidamente este progresso. Além disso, secas severas atingiram fortemente o país durante a década de 1980, resultando num aumento acentuado da pobreza e da insegurança alimentar, ainda agravadas pelas medidas de ajustamento estrutural implementadas em 1987 pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), na sequência da transição do país para uma economia de mercado.
Inicialmente concebido para contrabalançar os efeitos da remoção dos subsídios ao consumo de alimentos, Moçambique adotou o seu primeiro programa para ajudar as famílias vulneráveis em 1990: o Programa de Subsídio de Alimentos (PSA). Introduzido muito antes de ser uma tendência no continente, o processo de tomada de decisão do programa estava sob o controlo do governo moçambicano; e foi também quase totalmente financiado pelo orçamento nacional e, portanto, gerido pelas autoridades moçambicanas. Aplicado, no início, exclusivamente às maiores cidades do país, o PSA foi posteriormente alargado a outros municípios e a zonas rurais. Apesar do nome, o novo programa, na realidade, não era de subsídio alimentar, mas de transferência de rendimento. O PSA destinava-se especificamente a agregados familiares pobres e vulneráveis, sem indivíduos fisicamente aptos. Logo em 1991, o PSA foi alargado a mães solteiras com cinco ou mais filhos, e a indivíduos com doenças crónicas. Os líderes comunitários, bem como os centros de saúde locais, transmitiam informações sobre o programa e recebiam as candidaturas dos potenciais beneficiários. Foi criado o Gabinete de Apoio à População Vulnerável em 1990 para gerir o programa; em 1997, essa função foi transferida para o Instituto Nacional de Ação Social, com delegações em cada província, e os chamados “Permanentes”, indivíduos da comunidade pagos pelo INAS e responsáveis por fornecer informações sobre o Programa, identificar potenciais beneficiários, informar os beneficiários sobre as datas de pagamento e ajudar a distribuir o dinheiro nos dias de pagamento.

Fotografia de Reddy Rohan de Unsplash.

 

Estudos comprovaram impactos positivos importantes, entre eles, a redução da desnutrição entre as crianças, e o consumo de um número maior de refeições entre os beneficiários. Mas também foram apontados vários problemas ao programa, nomeadamente a dificuldade burocrática de inscrição e da verificação da elegibilidade dos beneficiários, interrupções nos pagamentos, desinformação sobre montantes a receber, e custos administrativos elevados.

No início dos anos 2000, Moçambique adota a estratégia que estava a conquistar o consenso internacional: a elaboração dos Documentos de Estratégia de Redução da Pobreza ao Banco Mundial e ao FMI, por parte dos países de baixos rendimentos. Integrando esta tendência, Moçambique também apresentou o seu primeiro Plano de Acão para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA), concebido para o período entre 2001 e 2005, que enfatiza a liberalização económica e o ambiente favorável ao sector privado como motores para o crescimento económico. Já o PARPA II (2006-2009) reconhece a importância da proteção social proporcionada pelo Estado, incluindo-a como área essencial e traduzindo-se num aumento dos recursos atribuídos a este sector – ainda que longe de serem abrangentes ou suficientes.

Um aumento nos preços dos alimentos e dos combustíveis provocou protestos urbanos massivos em Moçambique, em 2008, e novamente em 2010 e 2012, revelando o descontentamento popular com o governo. Estas revoltas – combinadas com a pressão internacional – ajudaram a impulsionar a necessidade de políticas de proteção social. Um novo plano, PARP (2011-2014), remove a menção de pobreza “absoluta” do seu título, centrando-se no crescimento económico inclusivo e no fortalecimento da proteção social. Depois de 2014, Moçambique abandonou estes planos de acão a favor dos Planos Quinquenais do Governo.

O esforço para expandir o FSA na segunda metade da década de 2000 fez parte de uma estratégia mais ampla para reforçar a proteção social no país. A Lei de Proteção Social foi aprovada em 2007, delineando três pilares distintos, que continuam hoje a constituir o sistema de proteção social de Moçambique: a assistência social; a segurança social (para quem está integrado no mercado de trabalho formal).; e o sistema complementar de proteção social. Apenas cerca de 10% da população está abrangida pelos dois primeiros.

A agitação social de 2008, 2010 e 2012, que ocorreu em particular em Maputo e na Matola, onde a vulnerabilidade face ao impacto do aumento dos preços e das alterações nos subsídios é particularmente grave, e desencadeou um debate nacional sobre pobreza e proteção. Foi estabelecida, para 2010-2014, uma Estratégia Nacional de Segurança Social Básica, em substituição do PSA, e com o intuito de aumentar a cobertura, a eficiência e a coordenação entre diferentes medidas.

Fotografia de Teresa Cotrim, Pixabay.

Em 2020, a disseminação mundial inesperada do SARS-COV-2 provocou uma crise sanitária, económica e social, que representou um fardo adicional para os países em desenvolvimento, acolhendo o maior número de pessoas vulneráveis, e com sistemas de proteção social mais frágeis. As instituições internacionais defenderam a necessidade de reforçar a proteção social como forma de mitigar o impacto negativo da crise e facilitar a recuperação. Moçambique não foi exceção. O governo manteve os valores do orçamento para a proteção social, efetuou pagamentos adicionais aos beneficiários existentes, e famílias em situação de vulnerabilidade receberam transferências de emergência por seis meses.

Medidas adicionais e mais consistentes, como o rendimento básico universal ou a adoção do subsídio de desemprego, têm sido discutidas tanto no plano nacional como internacional. No entanto, o acesso a essa proteção continua a ser entendido como uma ajuda transitória e temporária, e não como um direito. Dado o âmbito mais limitado dos programas em Moçambique, a sua expansão através de medidas de emergência mantém expostas muitas pessoas em situação de elevada vulnerabilidade. No geral, as respostas do país às sucessivas crises têm-se baseado numa ajuda mais de emergência, deixando escapar a oportunidade para reforçar o sistema de proteção social no país, com uma abordagem abrangente para enfrentar a vulnerabilidade.

 

 


 Teresa Almeida Cravo é Professora Associada de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos Sociais, onde lidera como PI o projeto REPLAY : Approaches to peace and the (re)production of violence in Mozambique, financiado pela FCT.

 Maria Clara Oliveira é Professora Auxiliar Convidada no Núcleo de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Professora Convidada no Programa de Pós-Graduação em Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo e Investigadora no Laboratório Colaborativo para o Trabalho, o Emprego e a Proteção Social. É doutorada em Ciência Política.

 


Este artigo baseia-se na investigação conduzida no âmbito do projeto REPLAY – Approaches to peace and the (re)production of violence in Mozambique, financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto “EXPL/CPO-CPO/1615/2021”. DOI 10.54499/EXPL/CPO-CPO/1615/2021 (http://doi.org/10.54499/EXPL/CPO-CPO/1615/2021). Para saber mais sobre o projeto, aceda aqui