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Reflexão
Original
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
O Racismo Obstétrico no Brasil: mais uma herança colonial
AN Original
2023-09-04
Por Karla Costa, Laura Brito

No Brasil, assim como em outros países, inclusive Portugal, as mulheres negras são constantemente alvo de racismo obstétrico - antes, durante ou depois do parto e ainda no abortamento. Este tipo de racismo se configura como uma violência obstétrica em decorrência da raça, e que, na maioria das vezes, também está associada a classe e a identidade de gênero, portanto é uma violência que já em si é interseccional. A violência obstétrica se manifesta sobre as mulheres negras sustentada em estereótipos, como por exemplo: Hiper sexualidade, supercorpos médicos, maior resistência a dor e infantilização.

O último estudo de base populacional de abrangência nacional – Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre o Parto e o Nascimento – realizado em 2011 e 2012, demonstrou o seguinte cenário: 67,9% das puérperas de cor preta e parda (versus 65,7% das brancas) possuíram maior risco de terem um pré-natal inadequado; 33,8% (versus 29,5%) tiveram ausência de acompanhante em todos os momentos; 45,3% (versus 42,1%) não tiveram vinculação prévia a uma maternidade; 10,7% (versus 9,2%) não recebeu anestesia para a episiotomia; 53,9% (versus 50,7%) não receberam informações sobre início do trabalho de parto. No documento intitulado: Pequeno Manual contra Antirracismo Obstétrico, a autora Thais Ferreira (2022), também trouxe que no pré-natal a mulher negra: tem menos consultas e mais rápidas que a média; não são solicitados exames previstos; são desencorajadas a presença de acompanhante nas consultas; não tem acesso à caderneta da gestante. No parto: não é oferecida analgesia com a justificativa de que “mulher negra aguenta dor”; são realizados cortes ou suturas sem anestesia local; são feitos comentários racistas durante o parto; são mais propensas a negligência do cuidado durante a internação; é realizado descolamento de membrana ou rompimento de bolsa sem indicação ou autorização; é negado que a gestante se alimente, beba água ou se movimente durante o trabalho de parto. E ainda, no puerpério: são negligenciadas as queixas de dor e desconforto no pós-parto; sofrem com piadas ou comparações com os órgãos genitais dos bebês; a avaliação da cor do bebê se dá a partir de um padrão de pele branca; existem insinuações de que a mulher vai amamentar com facilidade por ser negra; são negligenciados orientações e cuidados com a amamentação.

Conhecer esta realidade é condição essencial para enfrentá-la, mas concomitantemente, é necessário refletir também sobre a raiz da questão e sobre as consequências médicas, sociais e emocionais que esses desrespeitos, abusos e maus-tratos causam na vida das mulheres negras. Desta forma, devemos questionar: Quais as possíveis explicações sócias históricas para essa alta prevalência de racismo obstétrico? Quais as consequências desse tipo de racismo sobre a vida de mulheres negras?

A nossa intenção não será responder às questões apresentadas, mas trazer elementos para uma reflexão coletiva. Com isto, sobre a primeira, antes de adentrar no contexto específico do racismo obstétrico, gostaríamos de falar rapidamente da formação sócio histórica brasileira que facilmente pode ser transpassada a outros contextos. Os colonizadores portugueses quando invadiram o Brasil, a exemplo do que esses mesmos fizeram nos países africanos e outros países colonizadores, construíram a ideia de raça (exemplo: índios, negros e mestiços) e de diferenças a partir dos traços fenotípicos, estabelecendo assim, que os brancos eram superiores em relação aos negros, puramente por uma questão biológica, transformando os corpos racializados em subalternos e escravizados. As pessoas racializadas, dentro desta lógica de poder, foram transformadas em objetos de posse para servir de mão-de-obra nas colônias, ou seja, coisificadas, sendo com isto, destituídas de direitos.

O lugar dado às mulheres negras era, e ainda é, um lugar de cuidado e servidão ao branco, mas de ausência do seu próprio cuidado. Após o fim da colonização (em termos econômicos), os corpos das mulheres negras passaram a ser, de mão-de-obra de pura servidão, para mão-de-obra barata, e com isso, muito embora, continuem a ser as mulheres negras a sustentar a produção de riqueza, deixou de ser importante que se reproduzissem, então nesse sentido, começa a ideia de esterilização desse corpo e, consequentemente, anulação dessa raça.

Na saúde, o modelo de cuidado, no caso em saúde sexual e reprodutiva, é originalmente ancorado nessas raízes biomédicas coloniais, ou seja, é um modelo que limita as decisões de quem está sendo cuidado, limitação ainda maior quando se trata de corpos com útero, e corpos negros, pois estes são, em geral, reduzidos a corpos passíveis de intervenções físicas e simbólicas. Como desdobramentos, existe uma padronização e patologização do modelo de cuidado no ciclo gravídico-puerperal que, de certa forma, legitima uma série de práticas discriminatórias e violentas.

De forma histórica contextual, cabe referir a que a ginecologia moderna, representada pelo denominado “pai da ginecologia moderna”, James Sims, teve sua origem com a utilização de corpos de mulheres negras como cobaias para teste de cirurgias e procedimentos médicos, sem o consentimento das mesmas e sem qualquer tipo de alívio de dor. Portanto, nasce dentro da medicina moderna, dentre vários outros, o conceito preconcebido e perpassado até hoje, de que as mulheres negras são mais resistentes a dor. No entanto, não longe do solo brasileiro, no início da cesárea no Brasil, os testes também eram feitos em mulheres pretas escravizadas. Estes tratamentos partem da ideia de que o corpo da mulher negra é um corpo público e vulnerável. Essa associação é violenta e discriminatória e vai se expressar na criminalização da gestação e na violência obstétrica contra as mulheres negras.

Existe atualmente a discussão que diante de tantas intervenções que acontecem nos partos, o fato das mulheres negras serem menos intervencionadas pode parecer algo positivo. No entanto, essa leitura não pode ser direta e simplista, pois o que é um parto humanizado para mulheres brancas não é o mesmo para mulheres negras, porque o racismo inscreve essa relação de forma diferente. Desta forma, a suposta autonomia feminina que o não intervir no corpo de uma mulher branca representa, pode significar, ao contrário, uma negligência em um corpo racializado.

A respeito das consequências, já mencionamos algumas associadas diretamente à gravidez, parto e pós-parto demonstradas nos estudos anteriormente citados. Dentre as quais, destacamos o desfecho mais cruel desta realidade e dessa consequência colonial, a mortalidade materna. De acordo com o Relatório Socioeconômico da Mulher, produzido pelo Ministério da Saúde do Brasil, no ano de 2020 a mortalidade materna em mulheres brancas foi 30,1%, em mulheres pardas de 54,3% e 11,7% em mulheres pretas.

Ademais, ressaltamos o sentimento de abandono, de insegurança, de humilhação e de fragilidade emocional durante a após o parto, em consequência da forma de tratamento dos profissionais que cometem a violência obstétrica, representada nos seguintes exemplos, apresentados na cartilha Violência obstétrica em pessoas negras: “Negra é como coelho, só dá cria”; “Não grite!”; “Mulheres bomba”. E visto na fala das próprias mulheres expressas na reportagem intitulada O racismo obstétrico na prática, no jornal Alma Negra, Jornalismo Preto e Livre (2018):

“Eu estava com muita dor por causa da dilatação. O médico injetou em mim um remédio que não me lembro o nome, mas era algo para induzir meu parto. Só que eu não queria que ele fizesse isso [...] Quando eu disse que não iria aguentar de dor, pois estava muito forte, tive que ouvir que por ser gorda e negra eu deveria aguentar qualquer coisa. A gente é alvo dessa ideia de que somos infalíveis e fortes, mas não somos sempre, nós também sofremos e sentimos dor”.

“Suplicava por uma anestesia, mas não tinha nenhuma enfermeira no quarto. [...] Em momento algum me perguntaram qual era meu plano de parto. Eu queria o mais natural possível, mas não respeitaram e já injetaram oxitocina em mim. Não permitiram que meu acompanhante entrasse comigo, sendo que é um direito por lei. Ele também usou o fórceps sem consentimento e sem anestesia [...]”.

“Foi muito traumatizante. Tenho pesadelos até hoje com isso. Meu parto foi normal pela medicina, mas psicologicamente e fisicamente digo que foi anormal”.

Por fim, tudo que nós, mulheres negras, queremos, é termos domínio sobre os nossos corpos e não precisarmos ter medo de sermos maltratadas apenas pelo fato de sermos negras. Queremos poder usufruir deste momento, que deveria ser tão prazeroso na vida de qualquer mulher e familiares, como qualquer outra mulher tem direito. Para isso, para além de reivindicar pela saúde sexual e reprodutiva, ressaltamos a necessidade de fortalecer a luta pela justiça reprodutiva, ou seja, uma reparação histórica pelas consequências que a colonização portuguesa marcou nos corpos negros e indígenas, levando a capacidade desses corpos de se apropriarem de suas decisões, da sua sexualidade, da sua reprodução, de ter acesso aos recursos materiais e políticos. Assim, uma condição integral enquanto sujeitos constituídos de histórias e de saberes.


Karla Costa - Doutora em Saúde Pública e vice-presidente da Associação SaMaNe

Laura Brito - Doutoranda do programa de Pós-Colonialismos e Cidadania Global e bolseira da FCT Bolseira de Doutoramento, financiada pela FCT (SFRH/BD/144322/2019)