O exército romano foi a maior e mais temida organização militar do mundo antigo. Livremente os seus soldados prendiam, decapitavam, torturavam e matavam em nome do Estado, gerando medo e sofrimento por onde a vista alcançasse. Paradoxalmente, ao longo da história esse exército foi admirado por sua capacidade organizativa. Os legionários como eram conhecidos, causava grande espanto dado a fabulosa velocidade com que imprimiam à imensa formação. Num espaço curto de tempo, o general via à sua frente o letal perfilamento dispostos ao controle dos corpos periféricos e pobres da Roma antiga. Naquele contexto, milhares de vidas foram submetidas à força dos romanos. A mais famosa delas ocorreu na Páscoa do ano de 33 quando Jesus Cristo de Nazaré viu-se preso político e o seu corpo dilacerado com requintes de crueldade. Provavelmente a ordem emitida aos soldados momentos antes do seu calvário foi: PROCEDIMENTO.
Procedimento é uma palavra de origem latina, cuja etimologia remete a ação imediata. Historicamente foi utilizada para estabelecer medo e controle sobre os seus oponentes ao passo que garantia a sua expansão territorial e política à custa de torturas e mortes.
É sabido que o exército romano há muito não realiza qualquer expansão e que o seu império sucumbiu a história. Contudo, a sua lógica ainda permeia viva em muitas mentes de poder. Para compreendê-la sem se perder no tempo, é preciso jogar luz em um espaço que ainda se vale de práticas pretorianas: as prisões.
Foto: Alexandre Carvalho/A2IMG - Flickr
Em tempo, a população carcerária mundial cresce a cada instante. No Brasil, já são 837.443 mil pessoas custodiadas no sistema prisional. O número, apesar de elevado não apresenta a complexidade revelada nas condições de gênero e raça do público envolvido. É possível supor várias causas. O tráfico de drogas; as disputas territoriais; os conflitos urbanos... a pobreza material. No conjunto, é até possível supor uma relação com os ciclos críticos do capitalismo. De mais, a mais, não restam dúvidas que a realidade carcerária brasileira aponta para um doloso modelo de controle penal.
Para avançar nessa compreensão cabe voltar a noção de controle social, em especial no advento da sociedade capitalista. Historicamente o monitoramento social deu-se sobre os corpos dos miseráveis, mediante o controle econômico e físico daqueles que não conseguiam adaptação à nova forma de produzir e consumir. Um dos primeiros a jogar luz a esse tema foi o francês Loïc Wacquant no clássico “As prisões da Miséria.” Nesta obra, o autor reflete como o estado passou a agir para efetivar a vigilância social, a restrição política e privação econômica, abandonando sem muitas reservas a lógica do Estado-providência para assumir com galanteio a função do Estado penitência.
Para Wacquant foi preciso reorientar a ideia de sabotagem aos pobres para sustentar que “a melhor resposta a pobreza tem sido construir esforços para dirigir as suas vidas.” Para ele a política social foi progressivamente utilizada para supervisionar a vida dos miseráveis por meio da polícia política. A adoção dessa postura induzia o combate à pobreza ao comportamento individual, e não ao seu enfrentamento estrutural, de modo ser possível supor uma trama sistémica contra os pobres, capaz de romper os laços orgânicos da cidadania a partir da instrumentalização do encarceramento. Eis o grande objetivo das prisões?
Diante deste quadro, o famigerado “procedimento” romano ganhou, recentemente as páginas policiais do prestigiado jornal brasileiro “Folha de São Paulo” Assinada pelo jornalista Rogério Pagnan a reportagem denunciou a um só tempo um penoso quadro “quase” institucionalizado de tortura nos presídios de cinco Estados da federação, entre eles o Ceará. De faro apurado, Pagnan detectou práticas de torturas como o esmagamento dos testículos dos presos escolhidos aleatoriamente, quando não obrigados a ficar de cabeça para baixa tendo o peso dos seus corpos suportados por suas cabeças. Registros de defensores dos direitos humanos, dos familiares e de fartas matérias jornalísticas somam-se ao relatório oficial do Conselho Nacional de Justiça para apontar que no Ceará a prática da tortura, não só existe como técnica, como conta com a adesão de um grande número de agentes públicos, além de uma silente paciência das autoridades.
Segundo os relatos, em ambientes carcerários os presos costumeiramente são conduzidos a espaços específicos onde obrigados a ficar em posição de agachamento, enfileirados, nus e com as mãos sobre as suas cabeças, veem os seus dedos quebrados por tonfas. Ou ainda como já dito antes, seus testículos esmagados, seus corpos virados de ponta cabeça, enquanto suportam violências físicas e psíquicas. Consta que tudo se inicia quando o portão da rua, como é chamada as divisões internas ao cárcere, é aberto e um grande grito ecoa nos corredores:Procedimento!
Seriam os legionários dispostos a controlar, conquistar e matar? Não! Desta vez são agentes públicos, cuja função deveria ser ressocializar as pessoas condenadas.
Em tempo, graças ao “procedimento” a corregedoria de justiça no Ceará afastou várias autoridades do sistema penal que segundo relatório oficial; não foi um, ou dois, ou cinco, mas setenta e dois casos de torturas registradas nas galês cearenses. Ou seja, o procedimento mudou de técnica para preservar a forma. Como se não bastasse, as autoridades locais se apressaram em defesa dos torturadores e buscaram atribuir as notícias ao crime organizado.
Nesse contexto, a prisão se transforma, por excelência num ato político. Uma profunda trama de sabotagem social, cujo ponto de partida não poderia ser outro senão um processo mal planejado de sociedade. A essência de sua busca consiste na captura do objeto último de todo indivíduo que se concretiza pela busca da liberdade. Desta forma, a prisão passa a operar a partir do imperialismo cultural, tal qual o antigo exército, movido que era pela força e poder de mando, até acrisolar a utopia realizável dos direitos humanos. Reduzido a objeto, o indivíduo é despido de sua dignidade e exposto a uma antropologia negativa e estigmatizadora que passa a produzir o caos e não a cidadania. A prisão, é portando a própria reprodução da miséria estruturada e retro-alimentada nos miseráveis.
Sob a prática da tortura, o ato político da prisão encontra a sua instância social mais sagaz, pois passa a normatizar a raiva ao invés da justiça, o ódio à paz. O miserável experimenta assim, a pobreza em grau zero como pena de sua condição. Aqui a prisão se transforma em instrumento de ameaça a manter sobre controle os(as) desfiliados(as) e marginalizados(as) resultado que são da desigualdade que distância, da exclusão que afasta, e da miséria que mata. Foi precisamente nesses termos que Michel Foucault na sua obra “Vigiar e Punir” observou que o excesso, a vingança e a cólera, foram atualizadas pela vigília, gestão, punição e até a tortura dos corpos dos empobrecidos, fazendo com que a liberdade, expressão maior da sua alteridade, já não sub-exista à tarefa de sociabilidade.
Finalmente, como bem colocou uma junta de juízes cearenses “resta saber se a tortura no Ceará é fato isolado ou se é método”, de uma forma ou de outra, o Estado brasileiro tem muito o que apurar. Se for fato isolado como fazem supor as autoridades, que se apure e puna no rigor da lei. Se for método como sugerem as centenas de denúncias, relatórios e matérias, passa da hora de aplicar a justa medida e punir todos os torturadores. No conjunto, é o próprio estado que precisa reinventar a sua institucionalidade na tarefa de ressocialização. Isso se este não quiser evitar o destino daquele imenso exército falido como foi o romano.
Tortura Nunca Mais!!!
Rafael dos Santos da Silva - Universidade Federal do Ceará – UFC. Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra – FEUC/CES.