pt
Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
Azagaia, a Violência Estatal e a Geração 18 de Março em Moçambique
AN Original
2023-03-24
Por Edgar Barroso, Boaventura Monjane

Maputo e as principais cidades de Moçambique foram palco de manifestações populares, levadas a cabo principalmente por jovens, para honrar o grande rapper moçambicano Azagaia, que morreu recentemente de epilepsia.  As manifestações foram severamente reprimidas pelo Estado em Nampula e Maputo. Na capital, cerca de 15 pessoas foram atendidas no Hospital Central de Maputo em estado grave. Dois jovens perderam um olho, um dos quais perdeu o olho esquerdo minutos depois de falar à agência Lusa. A morte de Azagaia foi um gatilho para as manifestações, mas a frustração dos jovens vai além da morte do rapper. No seu cerne está a actual crise sociopolítica em Moçambique, que se deve em grande parte à incapacidade do Estado em abordar as principais preocupações do povo moçambicano, particularmente o desemprego juvenil, o que, entre outras coisas, agudiza a ilegitimidade do governo do dia.


Lusa - Luis Miguel Fonseca

Azagaia: o rapper que quis ver o ‘povo no poder’
“Eu falo de povo para povo
Porque eu sou povo e tu és povo
Usamos a mesma linguagem
E quando tu falas eu te oiço
Quando eu falo tu me ouves
Partilhamos as mesmas dores
Se te cansaste de pedir favores
Então venha para marcha”.

(Azagaia, A Marcha).

Azagaia, nome artístico de Edson da Luz, foi um rapper, poeta e activista moçambicano, conhecido pela frontalidade e contundência das letras das suas músicas, que abordam questões de economia política especialmente de Moçambique. Apesar de ter subitamente perdido a vida, a 9 de Março do presente ano, Azagaia é amplamente considerado um dos artistas mais importantes e influentes de Moçambique, e as suas músicas e letras continuam a inspirar e consciencializar os seus compatriotas sobre assuntos de interesse nacional que têm afectado as suas vidas. Suas músicas e demais informação sobre o Azagaia podem ser acedidas aqui. Quem ouve a sua música, sobretudo a juventude moçambicana facilmente se consciencializa, sensibiliza, mobiliza e engaja em causas e movimentos sociais que almejam mudanças significativas na sociedade.

Azagaia, através da sua música, usou o protesto social como uma forma de expressão da insatisfação colectiva perante questões políticas, económicas e sociais de Moçambique, chamando a atenção da opinião pública para essas questões. Com isso, ele foi o que se viu com o rapper ainda em vida, mas que também atingiu contornos mais massivos e mediáticos após a sua morte, nomeadamente aquando do seu velório, e das marchas públicas em sua homenagem que aconteceram muito recentemente nas principais cidades de Moçambique. O impacto foi tal que as autoridades públicas – especialmente a polícia – viram os protestos como uma ameaça à estabilidade política e social do país, chegando a afirmar, num comunicado, que os protestos tinham finalidade obscuro de engendrar um golpe de Estado. Com essa motivação a polícia respondeu com níveis brutais de repressão que colocaram em perigo a segurança e a liberdade dos manifestantes, tendo em muitos casos atentado mesmo contra os seus direitos fundamentais e humanos.

A burguesia nacional, o autoritarismo e os sintomas mórbidos
O regime político moçambicano, embora constitucionalmente ‘democrático’, caracteriza-se pela concentração excessiva de poder no executivo, chefiado por uma única pessoa, o presidente da República. O executivo e, consequentemente, o Presidente da República, tem elevado controlo não só sobre o executivo, mas também influencia os poderes legislativo e judicial.  É justamente por isso que, recorrentemente, ocorre a instrumentalização da lei – onde “ordens superiores” dadas prevalecem sobre a Constituição da República e as demais leis vigentes são subalternizadas ou instrumentalmente usadas para perseguir opositores políticos, restringir a liberdade de expressão e reprimir a sociedade civil.  Alguns analistas notaram a ausência cúmplice do poder judiciário – a nossa Procuradoria-Geral da República em particular – na reacção aos abusos das autoridades policiais na repressão brutal do dia 18 de Março.
Em regimes como o moçambicano, a oposição é frequentemente suprimida e os dissidentes podem ser presos, torturados ou executados, como demonstram estudos. Moçambique ainda possui profundas falhas institucionais e enfrenta sérios desafios no processo de consolidação de um Estado de direito democrático de facto.  Paralelamente, os meios de comunicação social são frequentemente cooptados e o sistema educacional pode ser usado para doutrinar os cidadãos com a ideologia do regime ou, muito mais dissimuladamente, ser sabotado ou instrumentalizado para suprimir qualquer espírito crítico ou autonomia intelectual por parte dos seus gestores e estudantes.

Embora Moçambique seja classificado como um Estado de direito democrático, onde o Estado é suposto ser governado por leis e instituições democráticas que garantem a igualdade de todos perante a lei e a protecção dos direitos humanos, isso é amiúde ausente.  Há evidências que demonstram que, de praxe, as elites políticas moçambicanas, sempre que podem, colocam os seus interesses pessoais e de grupo acima do bem-estar do povo e do desenvolvimento do país. A desigualdade económica e social é um problema sério num país como Moçambique. Por causa da manifesta distribuição desigual de riqueza e oportunidades, com uma pequena elite controlando a maioria dos recursos e do poder político, o país é propenso à eclosão frequente de conflitos armados (no centro e no norte de Moçambique), de crises políticas e de instabilidade social. A par disso, os deslocamentos e a desterritorialização forçada da população – principalmente das áreas onde se têm implantado megaprojectos extractivistas e de agricultura de grande escala – têm tido um impacto devastador na economia e na vida da população, principalmente rural. Perante todas estas privações e descontentamento, a solução certa para as autoridades públicas moçambicanas tem sido, invariavelmente, a repressão e a violência brutal. Isto faz parte de um conjunto de sintomas mórbidos sinalizando que o velho (regime) poderá estar a morrer. Poderá o novo nascer?

A Geração 18 de Março
A violação dos direitos humanos dos seus cidadãos e as desigualdades socioeconómicas vão encontrar sempre formas de resistência popular com potencial de escalar a instabilidade para níveis cada vez mais violentos. Principalmente por parte da nova geração de jovens cidadãos – a recentemente cunhada como ‘Geração 18 de Março’, precisamente o dia em que tiveram lugar as marchas e manifestações em homenagem ao papel iconoclasta que Azagaia desempenhou – nascidos nas últimas duas ou três décadas, que não se revêm no partido no poder, que tem sido a principal vítima da letargia das políticas públicas vigentes, muitos deles ouvintes de Azagaia.

A juventude é uma parcela significativa da população moçambicana. Mais de metade do povo moçambicano é composto por adolescentes e jovens. Consequentemente, a sua participação política é fundamental para garantir uma democracia mais representativa e inclusiva. Todavia, esta juventude ainda é frequentemente excluída dos espaços de tomada de decisão política e não está devidamente representada nos órgãos políticos e nas instituições estatais em todos os níveis, salvo se estiverem nas posições de liderança na Organização da Juventude Moçambique, OJM, o braço juvenil da Frelimo, o partido governamental. Na maioria dos países africanos as estruturas políticas são dominadas por gerações mais velhas, que muitas vezes têm pouco ou nenhum interesse e conexão para com as necessidades e aspirações da juventude.

Apesar desses desafios, a juventude moçambicana, sobretudo a que nasceu nas últimas duas ou três décadas, tem mostrado um cada vez maior envolvimento político, muitas vezes de forma não institucionalizada, através das plataformas de comunicação e de informação digital como são, de forma especial, as diversas redes sociais. Nas suas publicações e comentários, esta juventude geralmente busca chamar a atenção das suas audiências e seguidores para questões como os direitos humanos, a justiça social, a igualdade de género, o acesso à educação e saúde de qualidade, bem como para iniciativas de voluntariado e acções de solidariedade pública. Principais vítimas do desemprego e ausência de perspectivas para o futuro, têm acesso facilitado à informação sobre como as nossas elites políticas enriquecem às custas dos recursos públicos, tornando-se cada vez mais propensos à insatisfação e ao descontentamento. Foram estes e estas jovens que, através da internet e das redes sociais, destacaram-se na mobilização popular para o movimento de homenagem, à escala nacional e internacional, em torno do Azagaia. Presentemente, muitos destes jovens têm estado a usar a sua criatividade e habilidades tecnológicas para trazer questões de interesse nacional para os seus espaços comunicativos e têm estado a exigir mudanças – donde se destaca a recente campanha de cancelamento de figuras públicas do ramo artístico que se mostraram deliberadamente silenciosas aquando da morte do Azagaia.

De novo poderá nascer o novo?
Não há fórmulas prontas para esta questão. É comum em Moçambique ouvir-se, mesmo entre os ‘intelectuais’ considerados progressistas a ideia de que não há alternativa política ao regime. Tais vozes ignoram o facto de que as alternativas podem nascer da luta e que não há fórmulas prontas para contextos políticos complexos como o moçambicano.  Facto, porém, é que protestos antigovernamentais são, em todo o mundo, uma forma legítima de expressão democrática, sobretudo quando motivados por questões como a corrupção, a falta de liberdade e democracia, as desigualdades económicas e sociais, dentre outras. Ao contrário do que as autoridades públicas disseram esta semana, ao tentar justificar a brutalidade com que reprimiram as manifestações, para garantir que tais protestos tenham um impacto positivo, é sempre importante que a sociedade civil e a oposição política progressista trabalhem em conjunto para articular as demandas da insatisfação popular e estabelecer uma plataforma política que inclua horizontalmente a geração 18 de Março. Os jovens da Geração 18 de Março fazem também parte deste Estado e pretendem também ser ouvidos. Reprimi-los violentamente, mesmo quando legitimamente se manifestam –de forma pacífica e organizada –é contraproducente e só irá fomentar ainda mais a sua generalizada indignação e frustração, precisamente o que os levou colectiva e massivamente para as ruas. Como se pode depreender, estes jovens têm estado a desenvolver consciência crítica e de classe, estando cada vez mais dispostos a manifestar publicamente as suas reivindicações e a exigir que sejam ouvidos. Azagaia foi profético ao falar sobre isto, na música “A Marcha”:


Os autores
Edgar Barroso
é Licenciado em Relações Internacionais no IRSL, mestre em Estudos Africanos pela Universidade do Porto e doutorando em Relações Internacionais na Yildirim Beyazit Ankara University. Membro fundador e Vice-Presidente do Conselho Fiscal da ALTERNACTIVA – Acção Pela Emancipação Social.

Boaventura Monjane é Doutor em Pós-colonialismos e Cidadania Global pela Universidade de Coimbra e investigador de pós-doutoramento no Institute for Poverty, Land and Agrarian Studies (PLAAS), Universidade de Western Cape. Membro Fundador e Director da ALTERNACTIVA – Acção Pela Emancipação Social.