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Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
A Guerra aos Pobres
AN Original
2023-03-22
Por Rafael dos Santos da Silva

Era por volta das 9:30 da manhã de um dia ensolarado quando me direcionei a um supermercado próximo a minha residência aqui em Fortaleza, nordeste do Brasil. Minha função especial era seguir uma lista contendo alguns itens para viabilizar uma das quatro ou cinco refeições que nossa família faz diariamente. Na porta do estabelecimento me deparo não com uma, ou duas, mas três, quatro ou quiçá cinco famílias a pedir alimento a fim de terem o mesmo direito que eu. Imediatamente uma questão me vem à mente: o que estamos a fazer com nossa economia? Em tradução livre do grego, a palavra economia significa cuidar da casa. Logo, uma boa economia é baseada na justa medida entre produção e distribuição. Razão pela qual, é razoável imaginar que em um ambiente onde a economia cumpre seu papel não deve haver quem passe fome ou quem seja pobre.

Volto em casa e ligo a TV que noticia a insanidade da guerra. Milhares de inocentes mortos e o fracasso da diplomacia antecipa ameaças de conflitos nucleares. Mudo o canal e o noticiário local parece espirrar sangue. Os conflitos aqui narrados são chamados de guerra de facções, e tem ainda a famigerada guerra às drogas que igualmente dão primazia aos noticiários gerais. No primeiro tipo de conflito, é a juventude negra a maior vítima. No segundo, é perceptivo a atualização do chamado “capitão do mato” tarefa agora cumprida por homens fardados cuja origem remonta a mesma condição social, econômica e geográfica de suas vítimas. Não raras às vezes, vítima e algoz mudam de lugar, mas todos são envolvidos numa profunda trama que anualmente mata centenas de pessoas. Na prática, trata-se da modernização do imperialismo colonial.

Unicef/UN0213967/Sokol Crianças rohingya em Cox's Bazar, Bangladesh, durante a época das monções.

Os elementos acima me fizeram levantar por hipótese uma relação direta entre desenvolvimento de uma sociedade e sua guerra contra os pobres. Ou seja, tanto maior o desenvolvimento, maior é sua guerra aos pobres. Isso não significa a priori que tenhamos mais pobres em sociedades desenvolvidas, mas significa afirmar que estar em condição de pobreza em neste tipo de sociedade é mais penoso.

Intrigado com tal cenário fui aos jornais onde vi o grau de exclusão social a que as pessoas pobres estão inseridas. Notadamente, sabe-se que a infraestrutura nas periferias dos grandes centros expõe as pessoas a condições insalubres. Aqui em Fortaleza, por exemplo, mais da metade das famílias ainda precisa conviver com esgoto a céu aberto. A população em situação de rua tisna de vergonha o centro da cidade. Em Crateús, no Ceará, onde fiz minha tese doutoral intitulada a Dinâmica Social da Pobreza, é calamitosa a situação da coleta de lixo. As comunidades não conseguem receber os caminhões de lixo alijando seus moradores deste tipo de serviço essencial. Em tempo, cabe lembrar que tudo isso é resultado da ausência de estado forte que foi embora no golpe de 2016, junto com nosso direito à aposentadoria digna que fora assaltada com a reforma da previdência, e o acesso a uma redistribuição mínima garantida pela constituição federal, minguou na famigerada PEC dos gastos públicos. A esse cenário é preciso somar a assunção do esgoto ao planalto, daquilo que pior já conseguimos reproduzir enquanto humanidade: o bolsonarismo.

Como resultado, o Brasil apresenta dados estarrecedores relativos à fome. Consta que mais da metade da população não sabe se conseguirá alimento nos próximos dias, entre elas estão as famílias que me abordou na porta do supermercado. Aliás, estes figuram em outro grupo mais vulnerabilizado; nomeadamente entre aqueles(as) que passam fome diariamente que já somam, 33 milhões de pessoas.

Conta ainda que as estatísticas da violência a cada dia ganham novos adereços. Centenas pra cá, milhares pra lá, e ao final tudo se configura num profundo ambiente de guerra. Qual nome daríamos a está guerra? Guerra às drogas? Guerra entre facções ou guerra aos pobres? Ou ficaríamos com todas essas opções, mas me chama atenção está última, pois é notável e cada vez maior nossa “aporofobia” ou aversão ao pobre. Para ampliar esse debate sugiro o livro de Adela Cortina intitulada por APOROFOBIA. O texto apresenta como a sociedade ao longo da história refinou aquilo que a autora chamou de “rechaço ao pobre.” Sem querer me alongar esse tema parece ser central ao nosso debate. Um simples olhar ao nosso cotidiano nos ajuda a compreender que a aversão a pobreza deriva muito mais de nossa sociedade do progresso e crescimento infinito do que propriamente das circunstâncias casuais. Em outras palavras, a pobreza sendo resultado direto do mau uso da economia incomoda parte de uma pequeníssima população que de alguma forma à produz. Aqui cabe bem lembrar Josué de Castro em seu clássico a Geografia da Fome quando prever que “haverá tempo em que metade da população não dormira porque sente fome, enquanto a outra metade não dormira com medo daqueles que sentem fome.” Parece que isso não está longe.

Nessa direção gostaria de chamar atenção para um outro texto que acabo de ler de autoria de Mário Theodoro, intitulado A Sociedade Desigual – Racismo e Branquitude na Formação do Brasil. Ali o autor é categórico ao identificar que a origem de toda desigualdade brasileira deriva da nefasta lógica do branqueamento da sociedade, em que negros, em suas diásporas, foram (e são) condenados a pena perpetua sendo excluídos dos direitos mais fundamentais como saúde, espacialização urbana, moradia e mercado de trabalho. Após uma refinada argumentação, o autor vai concluir que a desigualdade é socialmente, e moralmente produzida e que seus aspectos gerais confluíram para organizar a vida de nossa gente tendo como pano de fundo a violência e a negação, ou mesmo aceitação das injustiças por parte da elite que compõe, principalmente, o ornamento jurídico.

Ainda sob este aspecto é nosso dever pedagógico visitar a literatura sobre a democracia. Dois ou três cliques no google irá te apresentar um sem números de textos, mas particularmente gosto deste intitulado “COMO AS DEMOCRACIAS MORREM” de autoria de Steven Levitsky & Daniel Ziblatt. Na obra os autores são categóricos ao apontar o sufocar da democracia como modus operandi das novas ditaduras. Onde se esperava tanques, se viu fake news, onde se aguardava ruptura generalizada do Estado de direito, se viu manipulação constitucional e sequestro dos agentes públicos. No final, sem que ninguém percebesse abria-se sob os pês o fosso do golpe. Este dado por pessoas manipuladas que se via no direito de salvar “o mundo contra o comunismo” a partir de argumentos manipulados.

Importa imaginar que a guerra aos pobres é orquestrada de várias formas. Em geral passa pelo mal uso da economia que gera desigualdade, exclusão social e fome. É está guerra que usurpa a dignidade das famílias nas portas dos supermercados ou retira vidas de jovens expostos ao crime em confronto com as forças oficiais. No geral seus mecanismos são arcaicos, mas nem por isso menos sofisticados. Arcaicos, porque são antigos métodos como o racismo, o patriarcado e o colonialismo. Sofisticados porque reinventam-se em figuras como a de Bolsonaro aqui no Brasil, ou encontram novos mecanismos para usurpar a democracia pelas novas tecnologias em várias partes do mundo.

Finalmente, as pessoas em situação de pobreza não precisam de guerra, mas de cidadania. Essa dimensão somente poderá ser encontrada num projeto civilizatório assentado sob as bases da democracia, lugar onde a pobreza material não pode ter lugar e as pessoas de fato podem ser livres da guerra que lhes tomam a dignidade.


Rafael dos Santos da Silva - Possui graduação e mestrado em Administração. Cursa doutorado em Sociologia na Universidade de Coimbra - UC. Faz carreira no Magistério Superior lotado na Universidade Federal do Ceará. Tem experiência na área de Administração Pública, Sociologia e Docência. Atua junto a movimentos sociais no enfrentamento a violência e a toda forma de pobreza, bem como na promoção da justiça social e dos direitos humanos. É membro do Observatório de Políticas Públicas da UFC e do Grupo de Pesquisa sobre pobreza Josué de Castro na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - RJ.