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O envenenamento e a atualidade de Pablo Neruda
Outras Palavras
2023-03-17
Por Ariel Dorfman

Por Ariel Dorfman em The Atlantic | Tradução: Maurício Ayer

A notícia do assassinato do poeta recoloca em pauta os crimes da ditadura, que a extrema-direita chilena gostaria de ocultar. E convoca jovens a conhecer a ecologia radical e o pan-americanismo dos versos de Residência na Terra e Canto Geral

Regimes repressivos tendem a não ter muita imaginação. Eles perseguem e censuram seus oponentes, os conduzem a campos de concentração, os torturam e os executam de maneiras que raramente variam de país para país, de época para época. À medida que a infâmia se acumula, a opinião pública vai ficando exausta.

Acontece, no entanto, de aparecer alguma história que é tão surpreendente, tão perversa, tão inaudita, que dá uma sacudida nas pessoas, e elas são tiradas de sua fadiga.

As recentes notícias sobre a misteriosa morte, em 1973, de Pablo Neruda, o chileno vencedor do Prêmio Nobel e um dos maiores poetas do século XX, criaram uma dessas situações. De acordo com a família de Neruda, um novo relatório forense elaborado por um grupo de especialistas internacionais concluiu que ele foi envenenado quando já estava gravemente doente – uma vítima, muito provavelmente, dos militares chilenos aos quais ele se opunha politicamente. É capaz que mesmo o espectador mais fatigado se sinta incomodado e preste atenção – não apenas pelo que esse desdobramento revela, caso ele se prove verdadeiro, mas por como isso pode refigurar o legado de um dos poetas mais complicados e talentosos da história. A reputação de Neruda já está manchada, suas consideráveis ​​falhas morais como pessoa ofuscaram a aclamação outrora universal por sua arte.

Por muitos anos, acreditei que Neruda havia morrido de câncer de próstata em um hospital de Santiago em 23 de setembro de 1973, 12 dias após a derrubada do governo democraticamente eleito de Salvador Allende. A viúva de Neruda, Matilde Urrutia, me disse que essa foi a causa de sua morte, embora tenha enfatizado que a destruição da democracia e da revolução pacífica que seu marido abraçou com tanto entusiasmo acelerou sua morte.

Já naquela época havia rumores de que ele havia sido morto por um agente da polícia secreta do general Augusto Pinochet, mas eu os rejeitei por sua falta de fundamentos ao longo de todos esses anos, afinal, eu me perguntava, por que os militares se dariam ao trabalho de assassinar alguém que já estava morrendo? Por que arriscar que algo tão escandaloso fosse descoberto e manchasse ainda mais sua já rota imagem internacional?

Em retrospecto, eu me pergunto se eu não estava tão cansado de histórias de tortura e desaparecimentos, tão cheias de morte e de dor, que já não conseguria lidar com mais uma afronta. Preferi proteger da violência a sagrada figura de Neruda. Isso se tornou ainda mais verdadeiro quando a democracia chilena foi restaurada em 1990 e meus concidadãos tiveram que retirar das dunas, cavernas e fossas os restos de tantos homens e mulheres que realmente haviam sido massacrados pelo Estado. Por que não deixar Neruda, pelo menos, descansar em paz?

Comecei a mudar de opinião em 2011, quando Manuel Araya, o motorista de Neruda, anunciou que tinha certeza de que o poeta havia sido envenenado, que a causa da morte foi uma substância injetada em seu abdômen. O Partido Comunista ao qual Neruda pertencia exigiu um inquérito, que levou à exumação de seu corpo dois anos depois. Um primeiro exame certificou que Neruda havia morrido de câncer, mas um segundo painel de especialistas em 2017 rejeitou que o câncer fosse a causa da morte e determinou que sua morte provavelmente deveu-se a uma infecção bacteriana, sem estabelecer se sua fonte era endógena (originada dentro de seu corpo) ou exógena (introduzida em seu corpo externamente, por alguém ou alguma outra coisa).

E agora, seis anos depois – quão lentamente as rodas da justiça se movem… – o sobrinho de Neruda diz que viu o relatório de um painel de especialistas do Canadá, Dinamarca e Chile que concluiu que a morte de Neruda pode ser atribuída à Clostridium botulinum – a mesma toxina causadora do botulismo –, que efetivamente pode ter sido injetada em seu corpo. Ontem, o relatório foi enviado a um juiz que deverá pronunciar-se oficialmente sobre as conclusões e, presumivelmente, estipular as medidas que devem ser tomadas para apurar os supostos culpados, embora seja duvidoso que alguém chegue a ir a julgamento.

Se o vergonhoso meio século que se passou desde sua morte parece garantir a impunidade daqueles que podem ter ordenado e levado a cabo sua execução, a descoberta que vem à tona precisamente em 2023 altera a história anteriormente aceita tanto de Neruda quanto do país que ele amava, de maneiras que são significativas e únicas.

Para começar, à medida que se aproxima o 50º aniversário do golpe de 1973, o modo como provavelmente morreu o poeta demonstra, uma vez mais, do que Pinochet e seus cúmplices civis foram capazes, lembrando aos chilenos e tantos outros ao redor do mundo as atrocidades de uma ditadura perversa, tornando mais difícil, como gostariam os conservadores chilenos, encobrir o passado e apagar seus próprios pecados. Quanto ao próprio Neruda, os relatos de assassinato ocorrem em um momento peculiar de sua vida após a morte, após uma série de terríveis revelações.

No início dos anos 1930, Neruda se casou com uma holandesa, Maryka Antonieta Hagenaar, que deu à luz em 1934 em Madrid uma filha, Malva Marina. Mas a menina nasceu com hidrocefalia, uma inflamação no cérebro que faz com que a cabeça inche desproporcionalmente – uma deformidade que Neruda claramente não suportou, principalmente depois que se apaixonou por outra mulher. Ele abandonou sua família, e Malva morreu aos 8 anos, na Holanda ocupada pelos nazistas. Segundo consta, Neruda nunca enviou recursos para Hagenaar nem visitou o túmulo de sua filha. Adiciona-se a esta conduta revoltante a sua própria confissão publicada postumamente em suas memórias, Confesso que já vivi, de que ele havia estuprado uma criada no Sri Lanka (então Ceilão) muitas décadas atrás. Este homem, conhecido por sua defesa e compaixão pelas vítimas do mundo, tinha sido um predador.

O fato de Neruda agora ser incluído na série dos revolucionários mártires que morreram lutando pela liberdade da América Latina não torna suas transgressões pessoais menos repugnantes ou desalentadoras. Mas a noção de que ele foi assassinado pode, espera-se, inspirar os leitores a redescobrir como seus poemas ainda nos falam hoje.

As gerações chilenas mais jovens viraram as costas para Neruda há vários anos, e não apenas por causa do que agora se sabe sobre sua vida pessoal. Eles têm favorecido, outrossim, o feminismo e a terna severidade de sua colega de Nobel Gabriela Mistral ou os antipoemas sardônicos e corrosivos de Nicanor Parra. Quando pergunto aos jovens sobre Neruda, eles declaram quase unanimemente que seu estilo solene e grandioso e sua torrente de metáforas intermináveis ​​não combinam com os atuais tempos fraturados e incertos, com suas próprias vidas à deriva, desenraizadas.

E, no entanto, os versos de Neruda continuam a ter uma relevância extraordinária. Obviamente, eles poderiam ensinar os leitores em nossa atual época ansiosa e desencarnada a celebrar o amor e o sexo e a combater a solidão persistente que aflige jovens e velhos hoje. Mas Neruda também é importante porque ele cantou a existência sensual dos objetos mais modestos e comuns da vida – tomates, alcachofras, meias, pão, ar, cobre, frutas, cebolas, um relógio batendo no meio da noite, as ondas espumantes do mar, as coisas cotidianas e os humores como tranquilidade e tristeza, os quais, depois que o poeta os iluminou, não podemos mais deixar passar batido. E para quem quer dar sentido à modernidade e seus descontentamentos, há os hipnóticos poemas de Residência na Terra, que explorou os sonhos e pesadelos de nossa era alucinatória de maneiras que rivalizam com a obra de qualquer outro autor, vivo ou morto.

Mas não é apenas isso. Este ano, o Chile planeja definir para si uma nova Constituição. Neruda pode despertar seus conterrâneos, homens e mulheres, para se perguntarem sobre suas identidades mais profundas e tumultuadas. Numa época, por exemplo, em que a questão da durabilidade do planeta é fundamental, um Neruda supremamente ecológico nos estimula a cuidar da natureza; ensina-nos a venerar as pedras da América Latina, suas areias, matérias-primas, vegetação desenfreada e grãos serenos; proclama que as montanhas e os campos exigem uma sociedade tão generosa quanto a própria Terra; traz de volta à vida a visão indígena que insiste que uma relação diferente com a Terra é possível. Ele foi o autor que, em seu Canto geral, profeticamente reimaginou todo o nosso continente latino-americano, mergulhou em seus minerais, despiu as camadas ocultas de sua virulenta história de traições e insurreições, dando voz aos trabalhadores humildes, pisoteados e rebeldes do passado e ofertando palavras de coragem aos rebeldes do futuro.

A questão de saber se alguém pode amar a arte enquanto deplora o artista não é exclusiva de Neruda, e é um dilema enfrentado não apenas pelos jovens. As faltas morais de Neruda são reais, e esta notícia de como ele parece ter morrido pode não mudar a repulsa que muitos sentem e que para eles manchou sua poesia. Mas também é possível que o conhecimento de que ele provavelmente foi assassinado possa inspirar alguns leitores a revisitá-lo, reconhecer suas imperfeições e ainda apreciar aquelas estrofes que nos convidam a tornarmo-nos mais humanos.

Ouça-o: “Aqui estão minhas mãos perdidas. / Elas são invisíveis, mas você / pode ver através da noite, através do vento invisível. / Dá-me as tuas mãos, eu as vejo / sobre as duras areias / da nossa noite americana, / e escolhe a tua e a tua, / essa mão e aquela outra mão / que se levanta para lutar / e de novo se fará semente. / Não me sinto só na noite / na escuridão da terra /… Da morte renascemos.”

Seria irônico e de certa forma adequado se a morte que seus inimigos desejaram a Neruda levasse os leitores de volta, 50 anos depois, a versos que nos dizem que a pobreza pode ser vencida, que a injustiça não é eterna, que se pode resistir à  opressão, que os mortos podem ser resgatados do silêncio.


Ariel Dorfman - Autor chileno-americano de "Death and the Maiden" e "Voices From the Other Side of Death". Seu próximo romance, "The Suicide Museum", investiga a morte de Salvador Allende.



Conteúdo Original por Outras Palavras