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«Memórias da Plantação: episódios de racismo quotidiano» de Grada Kilomba 
AN Original
2023-03-08
Por Sofia José Santos

«Memórias da Plantação: episódios de racismo quotidiano» é um livro de Grada Kilomba que procura visibilizar, a partir de uma perspetiva interseccional, o que a autora intitula de «racismo quotidiano» - um racismo enraizado nas sociedades patriarcais brancas desde os tempos coloniais e que, hoje, apesar de conhecer rostos e intensidades diferenciadas, se conserva violento e permanente.  Neste livro, a violência, a atemporalidade e as narrativas do racismo quotidiano são colocadas à vista de quem o lê, fazendo desta obra  um contributo fundamental para quem procura entender as sociedades contemporâneas e os seus silenciamentos históricos. 

Grada Kilomba é uma teórica, escritora e artista interdisciplinar, como ela própria se define e se apresenta. Nasceu em Lisboa, tem raízes em Angola e São Tomé e Príncipe e vive em Berlim, cidade onde se doutorou. Esta obra é, na verdade, a sua tese de doutoramento que foi publicada em livro, em 2008. Talvez no contexto de outro livro, a naturalidade e as geografias que contribuíram para a construção da obra não fossem tão relevantes, mas num livro tão pessoal e político, conhecer este percurso ajuda a conhecer o lugar de fala de Kilomba e, assim, a compreender melhor o que nos conta.

Um dos ganchos principais do livro é o silêncio e a marginalização a que pessoas negras e racializadas, em sociedades brancas, têm sido votadas. Especificamente, Kilomba mostra como historicamente não se lidou nunca com o sujeito negro, mas antes com “as fantasias brancas” do que a negritude parece ser, explorando causas e implicações do racismo quotidiano nos dias de hoje.

Para a autora, apesar do fim formal do colonialismo, o racismo que o produziu e sustentou perdura – estando hoje presente em emoções, opções, comportamentos, escolhas, reconhecimentos e validações que, de alguma forma, reencenam, validam e corporizam o passado colonial e, por consequência, o racismo.

A plantação (arquétipo do colonialismo) é constitutiva da nossa memória, dos nossos imaginários e continua, nos dias de hoje, a oferecer critérios de validação, de inclusão e exclusão e, nesse sentido, a produzir e legitimar configurações muito desiguais de poder, que se mantêm normalizadas. Há  um continuum de palavras, imagens e imaginários que, plantados nas nossas memórias desde os tempos coloniais, cimentam as referências através das quais a sociedade patriarcal branca vê e olha para si própria e para as pessoas negras e racializadas. Kilomba concretiza o seu argumento recorrendo aos corpos e ao quotidiano, visibilizando-os enquanto dimensões não negociáveis da nossa existência. Existem, inevitavelmente, sempre que existimos. E, por isso, o racismo quotidiano assenta na produção de um permanente “choque violento” para o sujeito negro, colocado numa posição semelhante à da plantação colonial que, sendo historicamente anacrónica, deixa de o ser. O passado vira presente e a sua violência também. É a ativação de um trauma. Tal acontece em episódios explicitamente violentos, mas também em episódios que podem ser (erradamente) interpretados – por ignorância ou fingimento - como inocentes. Não apenas nas vidas individuais, mas também na conceção do coletivo. Na Europa, por exemplo, o racismo é frequentemente considerado “uma coisa externa”, “algo do passado”, apesar de estar no centro da política europeia, nomeadamente em termos de segurança e insegurança e da construção da Europa fortaleza.

Uma das expressões e dos pilares da permanência do racismo nas sociedades patriarcais brancas é a correlação entre poder e conhecimento.  Aqui, ciência e discursos mediáticos, com clara primazia para o primeiro, são referidos. Assumir que a ciência, para garantir o seu rigor, tem de abordar a realidade de forma neutra, como se a realidade nos fosse dada e não construída e como se quem investiga não o fizesse a partir do seu lugar de enunciação, é contribuir reiteradamente para a naturalização e legitimação científica das relações de poder desiguais. No caso do racismo, e como fala Kilomba, a “ciência não é (…) simples estudo apolítico da verdade”. Ela reproduz “relações raciais de poder que definem o que vale como verdadeiro e em quem acreditar” O que escolhemos estudar e como o fazemos “refletem não um espaço pluralista de teorização, mas os interesses específicos da sociedade branca.” Para além disso, as vozes de pessoas negras “têm sido sistematicamente desqualificadas como conhecimento inválido; ou então têm sido (ironicamente] representadas por pessoas brancas”. Também os media dominantes privilegiam, nas suas escolhas editoriais do que deve ser noticiado e de como deve ser noticiado, entendimentos alinhados com os interesses da sociedade patriarcal branca, securitizando e/ou inferiorizando quem não se alinha com esse imaginário de nação branca.

Em termos de estilo e de acessibilidade, “Memórias da Plantação: episódios de racismo quotidiano" destaca-se pela capacidade de abordar questões difíceis na sua complexidade, sem abdicar, porém, de uma linguagem descomplicada que dialoga diretamente com quem lê. Kilomba recorre a metáforas que, ajudando à compreensão, acentuam, ao mesmo tempo, a complexidade dos temas sobre os quais nos fala. Usa de forma hábil um jogo permanente de avessos reconfigurados (transformar objeto em sujeito; levar o silencio à fala; transformar o medo em afirmação). Traz um registo biográfico partilhando experiências vividas - tanto suas como de duas mulheres negras que entrevistou (Alicia e Kathleen) -, procurando,  “dar voz à realidade psicológica do racismo quotidiano nas palavras de mulheres negras, com base nas nossas narrativas subjetivas, na percepção de si e nas narrativas biográficas”.  Neste sentido, a escrita de Grada Kilomba deve ser vista como “um ato político” porque corporiza essa “passagem da condição de objeto à condição de sujeito”.  Neste ato político, ela é simultaneamente, e como a própria diz, “narradora, autora da [sua]própria realidade, autora e autoridade da [sua] própria história. Assim, torna-se “a oposição absoluta do que o projeto colonial tem predeterminado”.

Para mim, este livro foi um exercício de aprendizagem. Aprendi sobre os silêncios, as invisibilidades, as violências e, sobretudo, sobre as próprias cumplicidades de quem, rejeitando o sistema, usufrui de uma posição de privilégio.

As temáticas e a abordagem de Grada Kilomba constituem, sem sombra de dúvida, um contributo fundamental para alcançarmos algo central na academia e sociedades de hoje: “novas configurações de poder e de conhecimento” que fomentem a presença visível dos diferentes sujeitos e dos seus conhecimentos, expressos nos seus próprios termos.


Texto ligeiramente adaptado a partir do depoimento produzido no âmbito da rúbrica "Clube de Leitura", inserida no ciclo "5 dimensões para 5 décadas”, como parte integrante das comemorações dos 50 anos da FEUC.


Sofia José Santos é Professora Auxiliar de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Investigadora do Centro de Estudos Sociais, onde coordena o projeto DeCodeM como Investigadora Principal, e onde tem desenvolvido, desde 2008, investigação sobre media e intervencionismo global; representações mediáticas, violências e processos de securitização; media e política externa; internet e tecnopolítica; e media e masculinidades. Dentro do CES, é também co-editora do Alice News. Desde 2016, integra como Investigadora Associada o Centro de Investigação OBSERVARE da Universidade Autónoma de Lisboa. É doutorada e mestre em "Política Internacional e Resolução de Conflitos" pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e licenciada em Relações Internacionais pela mesma universidade, tendo também um diploma de Estudos Avançados em "Ciências da Comunicação" pelo ISCTE-IUL. Anteriormente, foi Professora Auxiliar Convidada no núcleo de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2016-2019), investigadora em pós-doutoramento no OBSERVARE/UAL (2015/2016) e no CES (2015), e investigadora e coordenadora de media e comunicação no Promundo-Europa (2014-2015). Pertenceu à equipa de investigação do Flemish Peace Institute enquanto visiting scholar, na linha de "Paz e Sociedade", e foi Marie Curie fellow no departamento de Antropologia da Universiteit Utrecht. Para além de publicações, conferências e projetos de investigação nacionais e internacionais, destaca-se também no seu percurso o seu trabalho de co-coordenação e co-edição do Boletim P@x do Grupo de Estudos para a Paz do NHUMEP, o seu envolvimento com movimentos sociais (e.g. Academia Cidadã; Cidadãos por Coimbra) e redes internacionais (e.g. EDEN, Orecomm, MenCare, MenEngage) bem como trabalhos que desenvolveu para think tanks, fundações e agências de desenvolvimento internacionais, como o NOREF, a UKAid, a Palladium e o Promundo-US. Os seus actuais interesses de investigação centram-se em questões relacionadas com media e relações internacionais; media, masculinidades e violências; estudos críticos da internet; representações mediáticas e securitização; media e políticas externas.