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Reflexão
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Anti-Heteropatriarcado
Trabalhadoras domésticas e migrações: entre a emancipação e a precariedade 
AN Original
2022-12-02
Por Marcela Uchôa

O trabalho doméstico que por muito tempo aprisionou a mulher ao lar a colocando como responsável pela reprodução de novas gerações não desapareceu, mas é cada vez menos condição suficiente para aceitação social. A Organização Internacional do Trabalho, OIT, em seu último relatório divulgado em 2022 assinala que apenas 6% dos trabalhadores domésticos em todo o mundo têm acesso a algum tipo de proteção social.  Esse dado quando interligado a questões de gênero e migrações, reacende um debate antigo, a saber que a necessidade das mulheres de emigrar, sair de casa e levar seu trabalho produtivo para as ruas para melhoria de vida e/ou garantir o sustento da família acabou por infringir a elas novas formas de violência.

Aquilo que no período colonial era percebido como exterioridade, que Dussel situou como tudo que vinha de fora do território europeu, com o tempo passa a ser negociado dentro de suas próprias fronteiras. Esta “exterioridade” que passa a habitar dentro da própria Europa é criada na interpelação de migrantes e refugiados não europeus ou da Europa de Leste como racializados, etnizados e percebidos como um “outro” da nação. Um “outro” que se estabelece nas condições materiais de vida, impostas pelas políticas migratórias configuradas na lógica do capitalismo.

A busca crescente das famílias dos países mais ricos da Europa do Norte por trabalhadoras domésticas imigrantes – seja do leste europeu mais pobre, ou da América-latina, segue as demandas de uma economia pós-fordista flexível e também precarizada. Nesse sentido, o trabalho de uma migrante não-legalizada permite às mulheres de regiões mais ricas da Europa se dedicarem à carreira e ao seu desenvolvimento pessoal.

Segundo Encarnación Gutiérrez-Rodríguez (2010), contrariando as expectativas de que a divisão sexual do trabalho nos lares das nações da Europa do Norte faria com que as relações no capitalismo global tivessem se tornado mais equilibradas, o que assistimos é a perpetuação das relações de gênero nos países subdesenvolvidos. O emprego dado a uma outra mulher para cumprir o trabalho doméstico, evita eventuais desgastes na tentativa de convencer o homem de uma participação doméstica mais igualitária. Além disso, a mulher de classe-média bem-sucedida em suas relações de trabalho sustenta o bem-estar da família e permite que seus membros busquem suas carreiras ou tenham uma boa vida profissional.

A transmissão de afetos num lar, deixa clara a complexidade do encontro de mulheres nas relações de dependência e exploração na lógica da desigualdade global. Encarnación Gutiérrez-Rodríguez enfatiza que essas relações não são somente marcadas por aspectos econômicos, mas são também caracterizadas por desigualdades geopolíticas e raciais. Enquanto as trabalhadoras domésticas latino-americanas migrantes sem documentos, veem seu trabalho associado a estratégias de sobrevivência e mobilidade social - para a “patroa”, esse vínculo está relacionado à chance de delegar uma tarefa não prazerosa para outra mulher. Privilégio que possibilita se dedicar à carreira profissional ou mesmo ter mais tempo para livre. Elas não moram no mesmo bairro, não tem o mesmo círculo de amizades, e demarcam-se que sua única relação em comum, é a trabalhista. As relações afetivas entre donas de casa e trabalhadoras domésticas e a relação de colonialidade contínua do poder nos processos de transculturação faz-nos defender a urgência de se pensar a relação trabalho e migração desde um ponto de vista dos estudos feministas.

O reconhecimento social do trabalho doméstico e de sua força de trabalho, comumente racializada e feminilizada, revela como o trabalho não é constituído apenas por sua qualidade, mas por seu caráter quantificável em termos de quem faz o trabalho doméstico.

Nesse sentido, o trabalho não é apenas mal pago porque é considerado improdutivo, mas porque quem faz esse trabalho é sujeito feminilizado e racializado, considerado “menor” diante do sujeito hegemônico. Posto isto, é necessário perceber a qualidade biopolítica específica deste trabalho, para tanto, precisamos partir do valor afetivo em relação ao valor de uso e valor de troca, que representa o caráter relacional e social de interações humanas. Ele se concentra no valor produzido dentro de um sistema hierárquico de classificação colonial, arraigado na lógica e dinâmica do sistema mundial moderno.

Ora, na medida em que a família denota a esfera privada como locus privilegiado de reprodução da vida social, também é um objeto de interesse para decisões políticas. De forma que, cuidar da família ainda está no centro da governabilidade liberal; no entanto, as políticas nesta área sempre foram cuidadosas em não interferir na privacidade da família, postura que oculta violências e silenciamentos. Essa análise é importante para reconhecermos o papel da mulher no processo de reprodução capitalista.

Mas, será possível pensar estratégias sociais e de cuidado entre mulheres com relações de poder e realidades socioeconômicas tão distintas? Em primeiro caso é necessário reconhecer que a migração do "Sul global" para “Norte global” recria instâncias que remetem a um exterior, dentro das fronteiras dos Estados-nação europeus. A fim de desestabilizar este projeto de desumanização, baseado na exploração das condições precárias de vida e trabalho para sujeitos de gênero e racializados projetados como o "outro" da Europa, é necessário reforçar estratégias políticas que promovam uma ética decolonial de responsabilidade. Sendo que esse processo de transformação não é possível sem que rompamos com a lógica de conflito entre capital vida que incide não só sobre as relações de trabalho e violência, como sobre as relações entre mulheres, a partir das diferenças de classe e raça.

Diante de todo o exposto, também é importante perceber que foi o trabalho doméstico que nos permitiu compreender o capitalismo como estruturador da esfera privada, na medida em que atua em defesa de um modelo específico de família, sexualidade e procriação, como esfera das relações de produção – essa percepção nos permitiu compreender que é esse o terreno para as lutas anticapitalistas.

Imagem: Alfredo Cáceres para La Tercera 


Marcela Uchôa é investigadora integrada ao Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra (IEF); doutora em filosofia política pela Universidade de Coimbra.