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Reflexão
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Ensaio: Nada deve parecer impossível de mudar
Outras Palavras
2022-11-28
Por Alice Carabédian

É hora de levar de novo a sério a possibilidade de outro futuro. Quando o horizonte está travado, a imaginação é ferramenta poderosa para romper a banalidade do presente e sacudir o velho mundo. Ou, inclusive, reconstruir um país

Imagem: Davide Bonazzi

Trecho do livro Utopie radicale (Utopia radical), selecionado pelo site Lundi Matin e traduzido por Outras Palavras. Subtitulado “Além da imaginação de casebres e ruínas”, este livro é como seu tema: difícil de encaixar nas categorias habituais. Uma obra de crítica literária, um ensaio de filosofia política ou nem uma coisa nem outra, trata das ligações entre ficção científica e utopia, e o lugar desta última no desejo de transformar o velho mundo. O deslocamento que ele introduz, convidando-nos a levar a utopia a sério, a ponto de “não subordinar seu poder político apenas à sua realização futura”, perguntando-nos sobre as imagens e palavras que nos guiam, nos abre a perspectivas, como a de um “tempo não linear”, que poderia nos ajudar a sair de um presente onde “a distopia deixou a ficção para vir e fundir-se na realidade como uma horrível bolha viscosa”. Ficção científica e utopia: a fertilização cruzada destes dois mundos imaginários pode ser vista através da apreensão crítica de autores como Damasio, Le Guin, Iain M. Banks, mas também Hannah Arendt ou Miguel Abensour.

Tudo o que é possível foi inicialmente impossível: que a Terra é redonda e gira em torno do Sol; que o homem não é o centro do mundo nem que o eu é senhor de sua morada; que os reis não tenham direito divino; que os humanos descendem dos macacos; que de uma bactéria surgiu a vida, cujo aparecimento talvez se deva a uma chuva de meteoritos que caiu em nossa rocha redonda com grande estrondo há cerca de 4 bilhões de anos, carregando alegremente em suas malas extraterrestres aminoácidos, bases nucleicas e açúcares.

Que ao se manifestar mãos sejam arrancadas, olhos arrancados, pessoas racializadas mortas durante enquadros policiais; que seja proibido filmar as forças da ordem quando estão soltas nas cidades como hordas de lobos raivosos; que os cidadãos e as cidadãs sejam observados/as em suas formas de usar as faixas de pedestres; que ao olhar para uma tela de publicidade no metrô, seu olhar seja captado por uma câmera que permite o reconhecimento facial; que uma mulher morra a cada dois dias sob porradas de seu marido na França em 2020; que enfileiremos as “Black friday” com os “janeiro sem álcool” (“dry January”); que o ex-presidente da primeira potência mundial tuíte que seu “botão nuclear […] é maior e mais poderoso” que o do presidente norte-coreano; que comer quinoa ou abacate contribua para o desmatamento e empobrecimento dos países produtores; que um governo confie a defesa da biodiversidade aos lobbies dos caçadores e que o imposto sobre a riqueza tenha desaparecido, que as fronteiras sejam fechadas, que os acampamentos se multipliquem tão rápido quanto as milícias privadas; que os estados de emergência perdurem; que em resposta aos desastres climáticos presentes e futuros nos sejam oferecidos patinetes elétricos, tecnologia totalmente digital, cidades inteligentes, carros enviados ao espaço e agora flutuando entre os destroços de satélites, como sacolas plásticas imundas no meio dos oceanos; que, mesmo desligado, um telefone seja “inteligente” o suficiente para ouvir e gravar as palavras-chave de nossas conversas, transmiti-las e que, como em um passe de mágica, anúncios direcionados apareçam em nossos diversos aplicativos e sites; que uma cápsula do tempo, contendo, como um tesouro precioso, os vestígios da vida atual e uma carta afirmando que “[quando] esta cápsula for encontrada, provavelmente isso significará que não há mais gelo nesta parte do Ártico”, destinada a gerações futuras e depositado, portanto, no gelo, ressurja apenas dois anos depois de ser depositada, em vez dos estimados cinquenta anos.

Tantas coisas insanas, estranhas, aberrantes, paradoxais e ilógicas – em uma palavra: impossíveis – que agora são possíveis e, pior, que aconteceram. Basta a gente pegar um tema, dinheiro, trabalho, tecnologia, educação, artes, meio ambiente, moda, saúde, amor, turismo ou serigrafia, pode ter certeza que a nossa boa e velha realidade terá se enganchado com a ficção e que encontraremos medidas, decisões, práticas, notícias relacionadas com essas palavras que nos farão gritar: “Mas isso é ficção científica!”.

Essas tantas coisas impossíveis-possíveis – escolhidas de forma puramente arbitrária – são distribuídas ao longo de dois eixos que poderiam ser descritos como centrais para esse gênero mutável que é a ficção científica. O primeiro leva a questionar o lugar e o futuro da humanidade (mas também do planeta), à evolução das sociedades humanas e não humanas, a questionar as normas e saberes estabelecidos propondo arcos narrativos mais ou menos menos excêntricos, aventurescos, ousados, lúdicos – mas cujo sentido permanece muito sério. Em suma, grandes epopeias que põem em movimento o que achamos adequado chamar de realidade. O segundo eixo, ao extrapolar a partir de dados de um aqui e agora localizado, situado, permite à ficção científica levantar hipóteses, tirar as consequências lógicas e prováveis ​​e, assim, revelar os medos e esperanças sociais, políticas, físicas, biológicas ou tecnológicas, suscitados pelas nossas sociedades contemporâneas. Deslocando essas esperanças e medos para outros espaços, sejam “galáxias muito, muito distantes” ou dimensões paralelas, e para outros tempos, seja no passado ou mais frequentemente no futuro, a ficção científica nos convida a abrir nossas portas trancafiadas em demasia, a olhar fora, trocar os óculos e mais ainda trocar de sapatos para, por um momento, caminhar com as botas cibernético-mutantes de criaturas de outros lugares e assim provocar esta pequena e tão poderosa pergunta “E se? E se fosse diferente?”. Em suma, a ficção científica nos oferece utopia e, infelizmente, o mais comum nos dias de hoje, distopia.

Mas logo aparece um problema, ou pelo menos uma perturbação. O que qualificaríamos de distópico, ou seja, digno das ficções do pior, do “mau lugar”, tem uma infeliz tendência a cruzar fronteiras dimensionais para se realizar, não mais no registro desse futuro distante que devemos temer e que poderia “tornar-se realidade” se não tomarmos cuidado e que assombra as estantes de ficção científica das bibliotecas, mas no nosso presente, no nosso aqui e agora. Que a realidade alcança a ficção é um truísmo. Que a realidade alcança a distopia em vez da utopia é, ousamos dizer, uma catástrofe. Ou para usar uma imagem de Susan Sontag, um desastre: “Pois vivemos sob a ameaça permanente de dois destinos igualmente assustadores, mas aparentemente opostos: uma banalidade implacável e um terror inconcebível. A banalidade da distopia que se tornou terror real. Hoje não é mais o terror que é inconcebível, esse terror que Isabelle Stengers, num eco muito marcante desse texto de Sontag de 1965, chama de “a barbárie que chega”. Coisas impossíveis e improváveis ​​acontecem. Especialmente as piores. O que nos parece inconcebível é, ao contrário, a serenidade, a alegria, o amor, a igualdade, a atenção aos outros, a liberdade, a pluralidade, enfim a boa vida, não “a imaginação do desastre”, portanto, mas sim a imaginação da felicidade. O que nos parece inconcebível é utopia.

Como fazer que as coisas impossíveis, improváveis, principalmente as melhores, aconteçam? Você tem que correr o risco de imaginá-las. Especialmente se forem impossíveis. Para devolver todo o seu poder de impacto à utopia (e esta é mais vigorosa do que cinquenta ogivas de laser neuro-subatômicas), devemos questionar sua relação com a realidade e com a história. A Utopia, muito mais que uma ilha, é um oceano e nele devemos mergulhar por inteiro, com valentia, e deixar-nos levar por este espaço contínuo. Porque a utopia não é um destino, um ponto no final da frase, um fim a ser alcançado, um espaço estriado e codificado, padronizado e normatizado. Na extremidade dos desastres atuais e futuros encontra-se a extremidade da utopia. Essa extremidade, eu a qualifico como utopia radical. E, em primeiro lugar, encontra-se na ficção. Esta é precisamente a molécula de H2O deste oceano: a ficção.

Por isso, pode parecer muito ingênuo, duvidoso ou mesmo ilógico querer contrapor à virulência dos desastres atuais algo tão fútil e superficial quanto a ficção, ou o imaginário. Ainda mais: pode até parecer perigoso que essa ficção destaque histórias irrealistas, ilusórias e quase desconhecidas, como a boa vida, na qual já imaginamos criaturas inocentes e amigas ​​correndo alegremente pelos prados, desconhecendo qualquer dos males que atualmente assolam nosso planeta. O que essas criaturas poderiam nos dizer sobre nosso presente, nosso futuro? A que força eles poderiam se opor diante do ultraliberalismo, totalitarismo, aumento das águas, racismo, sexismo, homofobia, fome e pandemias, autoritarismo e desmatamento, colonização e extinção de espécies, injustiças, massacres e genocídios, vigilância generalizada e o desaparecimento sorrateiro de nossas liberdades? O que essas criaturas utópicas poderiam fazer diante da violência de distopias bem menos fictícias do que reais?


ALICE CARABÉDIAN - Pesquisadora associada do Laboratoire de Changement Social et Politique (LCSP) da Universidade de Paris, cofundadora do centro de pesquisa sobre utopia “L’Archipel des devenirs”, diretora editorial da série de filmes “Science Fiction & Utopia” da Universidade de Paris e professora da École d’Architecture de la Ville et des Territoires da Universidade de Paris Est.

Tradução: Maurício Ayer



Conteúdo Original por Outras Palavras