pt
Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
O Ciclo da Ilha
AN Original
2022-05-06
Por Léo Cote

Os cascos dos barcos têm outras vozes
na voz que meditam
o mangal a pedra e cal
tem suas inclinações geométricas
todo o cinzento de cores a tomar pássaros
ritmos de casas de macuti
ondas que se quebram em seu sal
Nem a criança chega ao colo
para a vertigem da fotografia
para a inclinação entre as águas
para a cinzenta penugem de sol
ao ter pousado o corpo na areia
e de se ter apercebido uma vertigem nova
a coisa abrupta que nos sai da boca
que é carregar ao colo o azul
que é só o horizonte
a praia nevada de cores
de barcaças sobre suas sombras
com coqueiros altos sem a sensação abrupta de Deus

À Vanessa Riambau Pinheiro

 

estou num dwoh1 e o mar está verde esmeralda
Vanessa Riambau Pinheiro
 

É no mar verde que a vela acorda instrumental
nem um corpo vaga e o mar acontece em suas mãos
tácteis e o dwoh quer o mar que é seu
E deixa o mangal em suas árvores
de pássaros e chilros de ramo em ramo
E assim se recolhe o homem na sua lida
no espaçoso mar
onde se movem seres inumeráveis
e ali passam navios e barcos pequenos
Escondendo o rosto aquilino
que tira a respiração dos pássaros
Daí meditar o mar os seus leves traços
e sua gentil presença
como se as árvores falassem desde o centro
das águas ou da história que nasce
das suas paredes
ou das aves altas
ou dos peixes, pequenos e grandes,
que fundam a ilha
ou a deusa entre a separação das águas

Toda a respiração dos poros da concha
da casa amarela e verde dos peixes
da situada vigília das algas
e suas rumorosas asas
vêem o sol pôr sobre as águas melancólicas
como um Deus distante
ou uma estranha sensação de diluição e apagamento
em força e beleza
E há entre águas meninas a trançar e a dizer
- orera
À deusa aquilina que do cabelo as tranças se destrançam
no trabalho das meninas para resolver o enigma
e a descoberta
no ritual da dança a ensinar os cabelos a serem nós
a dar movimento a fina flor da arábia
as coisas macias que pensam no movimento
de cada mecha que se desfaz inevitavelmente
no nó que ata
como Penélope a adiar o destino
orera é um efémero acontecer de luz
a luz que se apaga rápida
e rápida aparece
e nessa morte e rápida aparição
ela sobrevive
como se dissesse que o resto do corpo é mentira
O canto das casuarinas acorda a ouvir uma saudade
de quem mais ali não está
num chamamento do relógio do mundo
como se preferisse a hora do sol
romper a espreguiçar-se
e a tirar a mortalha da poeira das estrelas
onde só a ilha é verdade
a cidade entre a beleza e os escombros
o mar muito dos pescadores a cantar
os meninos a pedirem fotografias
em suas poses
o sorriso gentil de quem passa
sem pressa nem buzinas

A memória que a si mesmo interroga
dá em ondas de pássaros e soluços de sílabas
ao pisar esse candeeiro brilhante
adragado o paquete como um farol
nessa pequena embarcação, a ilha
no cais sem contradição
o que entra para dentro e sai perto das duas
ilhotas desertas
e oferece três entradas para dentro do porto
onde apenas pequenas canoas velejam
e avistam à fortaleza
e por detrás dela e entre um intervalo
vê-se o arvoredo e suas canoas possantes
o grande turbante do ramadan à cabeça
e o porto interior a cantar o seu eterno pregão
onde o tímido Alah ri-se dos tímidos versos
bem comportados
nas ruas vagarosas do perfil magoado da cidade
ou do colorido da capulana como uma distância alegre

Extenuada sonha entre casuarinas circulares
a deusa aquilina
no laborioso percurso da neblina
entre os anexos para os escravos
e um estábulo onde cabem três cavalos
e uma maciça escada de pedra
ou um sofá indiano, leve,
que parece fresco e convidativo
como para mostrar as predileções do proprietário
e entre a cama e a cómoda
um despertador francês
como para mostrar a brancura encardida do quarto
petrificado o tempo da mulher mítica
em suas argolas excessivas
índica missanga perdida
ou comprada para alguma gaveta de músculos
entretendo-me

Não és igual aos animais que perecem
aos que a morte se alimenta deles
e floresce como a flor do campo
e passa o vento que logo se vai
no entanto, tu permaneces
e cobre-te a luz como um vestido
e é o teu rosto um perfil de aves
onde aninham as estações
e passam navios
Em todo o comprimento da cidade
a extensão da praia
é um mar indeterminado e abstracto
uma nebulosa vaga de hábitos e soluços
como vielas desalinhadas e estreitas
onde se rasga aqui e acolá um rancho de crianças
ou equilibradeiras de alguns frutos e peixes
indo tratar da vida
convertida em sólida pedra de opulentos muros
sentindo-se o mar apenas no odor e na viração
que tremula ao topo das palmeiras
És esse igual a si mesmo
como tamanhos gastos das portas
sobrando-nos os templos e tu
e a morte nota-te intacta como um edifício grande
a lembrar os barcos que partiram
Eras a serena manhã ao longe
estendendo-se
e indiferente ao dwoh que faz a travessia
como riquexós a correrem para o fim do mundo
com o motor a dois tempos
a arfar sobre o silêncio interrogado
é a ponte que veio quebrar a tranquilidade muda dos cactos
ali se liga a ilha com o resto de terra
certa do silêncio da memória, avanças
és o vulto marinho
esse possível amor que a morte nos devolve
Entre as areias e o mar viajas
e teu corpo respira a doçura própria da luz
teus anseios ficam como conchas e buzios
teus seios como a palpitação do sémen e do rio
como paixão muda dos olhos
como corpos dados a volúpia
em soberbo gozo
como a Vénus despida no próprio mar
 


1 -  Barco à vela


Léo Sidónio de Jesus Cote nasceu em 1981, em Maputo (Moçambique). Exerce a profissão de revisor linguístico. Tem publicado Carto Poemas de Sol a Sal (2012) e Poesia Total (2013), este último resultado do prémio literário 10 de Novembro do Concelho Municipal da Cidade de Maputo. Viu a sua reaparição literária com Campo de Areia (2019) sob a chancela da Fundação Fernando Leite Couto e 2020 publica um pequeno e-book, que se pode acessar gratuitamente através do link https://bit.ly/Eroticus_LeoCote, com o título Eroticus: Onze Poemas e uma Quadra sob Medida. Em 2021, publica o livro digital Eva (Menção honrosa Prémio INCM/Eugénio Lisboa), disponibilizado gratuitamente através do link https://imprensanacional.pt/wp-content/uploads/2021/11/Eva.pdf, que a sua estreia em prosa.