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Reflexão
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O sucesso global do K-pop e a fetichização dos corpos asiáticos
Diadorim
2021-12-03
Por Maria Morita

Como filha brasileira da diáspora da população Ainu, é um sentimento estranho me identificar com ícones da cultura pop sul-coreana


O grupo sul-coreano BTS, formado por RM, Jin, SUGA, J-Hope, Jimin, V e Jungkook. Foto: Divulgação
 

A terra inteira é uma ilha, é só ligar o radinho de pilha. Meu radinho não é de pilha. E na verdade não é exatamente um receptor de sinal radiológico, mas um streaming das ilhas. Nele dá para organizar uma playlist com a ordem de músicas da minha preferência, quantas eu quiser, e, como pagante do serviço de streaming, pulando aquelas que não quero escutar neste ou naquele momento.

“Betêéssers” é uma das playlists mais tocadas do meu radinho que não é de pilha. Vez em vez, dada ao estímulo audiovisual, prefiro ligar o radinho dos videoclipes das ilhas. Também no streaming. Só que outro.

Não queria falar do K-pop como fenômeno global do soft power sul-coreano. Porque isso implica falar de política de Estado. Mas vai ser inevitável. Não queria falar do K-pop como uma das políticas de Estado mais eficientes em produzir uma masculinidade asiática cheia de contradições no nada soft capitalismo. Queria mesmo era falar de K-pop naquilo que o K-pop me deu de presente ao me reconhecer muito mais do que nos rostos, mas no modo de movimentar o corpo, transmitir pensamento, ler o mundo e, até, no jeito “ao contrário” de entender perguntas de uma entrevista. 

“Diversidade étnica” é como Kim Nam Joon, membro do BTS, descreveu certa vez a legião global de fãs do grupo em que é um dos letristas, rappers e coreógrafo. Sonho com Suga, rei dos beats, em feat com o Bnegão. J-Hope bem podia se jogar em uma parceria com o Heavy Baile. E aqueles falsetes impressionantes de Park Ji-min, Jin, Kim Tae-hyung e Jungkook? Por que eles ainda não cantaram ao lado da Pabllo Vittar? Fico em choque com a qualidade das letras, das coreografias perfeitamente executadas (de dar inveja a qualquer boy branco da rua de trás). É de cair o queixo o uso do grave do groove pensado por Suga. Eles são gênios.

Era assim que eu queria falar sobre o meu grupo favorito de K-pop. Mas a indústria fonográfica, a política de Estado de “entrismo” da economia soft power (que de soft só tem o nome) e a fanbase branca ocidentalizada não deixam.

Vocês sabem o que é ver, pela primeira vez, rostos asiáticos fazendo sucesso e aparecendo nas mídias? Me fizeram engolir, durante a minha adolescência inteira, a referência pop da trajetória da meninice para a fase dirty girl da Britney Spears e me botaram os Backstreet Boys como referência de homens mais desejados do início dos anos 2000. O mundo pop da Ásia se resumia à política de produção de animes e mangás, e muitos dos caras que flertaram comigo na adolescência eram uns otakus [fãs desses elementos da cultura japonesa] insuportáveis que me fantasiavam personagem de um hentai. Já era o soft power inventando corpos e subjetividades para serem consumidos.

Uma definição rápida antes de continuarmos: soft power é a ação política de moldar as preferências de consumo por meio do apelo e da atração. Os principais recursos de uma política de Estado que pratica o soft power são valores políticos, políticas externas e cultura. E a cultura popular é, atualmente, a fonte mais usada de soft power. A banda BTS ou o seu anime preferido, não são por si mesmos uma prática de soft power. Pois o soft power é uma política de Estado que usa o apelo de recursos soft (acessórios atrativos da cultura pop como estrelas de cinema e ícones pop, atrações turísticas e um ambiente acolhedor para programas de estudo no exterior) e os combina para criar e solidificar mudanças de longo prazo na forma como as pessoas pensam sobre, interagem e consomem o que o país em questão produz. Assim, os países que lançam mão deste recurso, lucram com o desespero de consumir seus produtos culturais ao redor do mundo e, de quebra, não assistem como meros coadjuvantes o desenrolar das decisões econômicas, participando da economia global.

Não vou nem entrar a fundo no assunto do lucro da Big Hit Entertainment (empresa criadora do BTS) nos últimos dez anos ou da indústria fonográfica sul-coreana desde o lançamento de Gangnam Style, do Psy. Apenas tome nota de que 2020 foi o melhor ano financeiro da gravadora (mesmo com a pandemia de Covid-19) – que inclusive comprou a gravadora do Justin Bieber, tá, querida? Os grandes selos de animação japoneses, como a Toei Animation (estúdio que produz a série Dragon Ball Z e One Piece), cresceram na década de 1990 de maneira assustadora, em movimento semelhante ao atual fenômeno fonográfico sul-coreano.

'Parasita', filme sul-coreano dirigido por Bong Joon-Ho. Foto: Divulgação

Todo “Bacurau” tem seu Grupo Globo, e com “Parasita” não foi diferente. Como vocês acham que Bong Joon-Ho arrastou aquele Oscar de 2020? Isso é política de Estado, tá funcionando. E o curioso: me identifico com aquele discurso que falava sobre o humor com capacidade de rir de si mesmo, a maneira de andar e os trejeitos do diretor, mais do que com sua suposta genialidade. Me identifico com a maneira como os Bangtan Boys se sentam, se portam, convivem. Enxergo gente asiática como eu e toda a minha família na forma como se movimentam esses corpos e em como dão o melhor de si para entregar discos excelentes, de uma qualidade musical que pouquíssimos boys brancos norte-americanos que chegavam no Top 10 da MTV foram capazes de executar. Tem carão asiático para consumir e não abro mais mão de me ver nas obras musicais do pop.  

Mas aí é que tá: me vejo mesmo? Representatividade importa, né? Mas não é o suficiente.

Que representatividade está sendo vendida aí? Em primeiro lugar, esse sentimento é estranho e complexo. Como filha brasileira da diáspora da população Ainu — indígenas expulsos do Japão no processo de colonização do Reino de Ezó-chì (hoje, província de Hokkaido) —, é um sentimento estranho me identificar com ícones da cultura pop sul-coreana. O que esses rapazes significam para a população diaspórica, nem ouso tentar definir, só sei que foi um fenômeno interno acompanhar esse sucesso. Uma vez a humorista Thamirys Borsan dizia sobre sua prática de entender as questões raciais como anteriores às questões de gênero — afinal, mulheres brancas estereotipam e são racistas com homens negros. Muito bom vídeo, aliás. Salvei e compartilhei sem dó. Seria desproporcional me colocar em leitura sobre as masculinidades asiáticas em mesma toada que a de Thamirys, uma falsa simetria. Mas sabe, Thamirys? Tu me botaste umas pulgas atrás da orelha sobre como me sinto quando penso sobre, me relaciono e consumo entretenimento de pessoas asiáticas.   

É horrível como esses produtos fonográficos, especificamente os rapazes do BTS, são lidos por pessoas brancas. É perturbador como essa representatividade é colocada e recebida pelo mundo ocidentalizado. Por um lado, rapazes produzidos em suas subjetividades de homens jovens asiáticos; por outro, estamos aqui, frutos das diásporas de diferentes territórios da Ásia, sujeitos ao filtro de como a branquitude se relaciona com pessoas asiáticas: consumindo, sempre.

Foram fenômenos concomitantes: a explosão de BTS em sucesso global e a fetichização dos nossos corpos, mesmo dos que nem descendem de sul-coreanos. Se relacionar hétero-cis-normativamente com um rapaz de descendência asiática parece significar ter para si um garoto coreano fofo, dócil, de masculinidade amena e não-violenta em comparação com a do homem branco. Só me pergunto se ao se deparar com a primeira complexidade desse homem, ele não será racializado e estereotipado como “estranho” ou, ainda, com comportamentos que “devem ser típicos de homens assim, calados e machistas porque de família asiática conservadora e, igualmente, estranha”.

Fico mal só de pensar no como tudo isso fica para os corpos feminilizados, nem quero pensar muito, só sei que docilidade e submissão, além de fantasias perturbadoras sobre a anatomia das partes íntimas, são a toada reforçada no consumo das maravilhosas e talentosas integrantes de Black Pink. Estranha forma de me sentir no menu de um cardápio para a escolha de gente branca, e tudo isso como se nos diferentes territórios da Ásia não existissem pessoas LGBTI+ e pessoas fora do padrão de beleza de gente considerada gata, de corpos impossíveis, magros, de modelo.

Essa é a representatividade do que o mundo ocidentalizado aceita consumir e, ainda por cima, consome na leitura de corpos racializados e fetichizados. Ai. Me pego não querendo mais, então. Vou lá ligar o radinho para continuar sonhando com os feats de Suga e Bnegão, Black Pink e Pabllo Vittar, Lisa e Ludmilla, J-Hope e Heavy Baile, Kim Nam Joon e Mc Carol, gohan e feijão carioca. O resto é o capitalismo na regra dos brancos, no seu power que de soft não tem nada.


Maria Morita - Descendente de fornitura de cidade pequena e da diáspora Ainu, no estado de São Paulo, oscila na filosofia acadêmica perseguindo aspectos das montagens corpóreas da população asiático-brasileira nas suas diferenciações étnicas. Pesquisadora de possibilidades conceituais nas práticas, vivências e narrativas do povo Ainu em diáspora. Ensaia retornos cognitivos da diáspora do povo não-japonês na tentativa de não entregá-los para os caretas.

* Os textos publicados nesta seção não necessariamente refletem a opinião da Diadorim.



Conteúdo Original por Diadorim