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Reflexão
Original
Anti-Colonialismo
#quemdeuaordem: um exemplo da luta pela democracia no Recife  
2021-07-03
Por Jessica Morris, Manoel Moraes

Photo by Nayani Teixeira on Unsplash.

O Brasil vem sofrendo o denominado “apagão de políticas públicas” na saúde e nas áreas sociais em decorrência de um governo negacionista, que defende medicamentos sem eficácia comprovada para o enfrentamento do coronavírus e que negou oportunidades de comprar vacinas para sua população. Seguindo essas políticas, o Brasil ultrapassou a triste marca de 500 mil mortos. Além do impacto causado pela doença, a resposta do governo federal à pandemia também tem gerado impactos desastrosos no âmbito econômico causando um crescimento vertiginoso no desemprego e insegurança alimentar. Hoje mais de 12% da população brasileira vive abaixo da linha de pobreza.


Diante desse contexto, movimentos sociais fizeram várias ações, de panelaços a atos virtuais, manifestos e notas, mas nada se compara ao que ocorreu no dia 29 de maio de 2021. Pela primeira vez, as ruas vazias voltaram a pulsar com milhares de manifestantes insatisfeitos com governo Bolsonaro, indignados, em parte, pelas revelações da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal (que avalia se houve falhas por parte do Governo Federal no enfrentamento da pandemia), como também pela lentidão da vacinação. Assim, no dia 29 de maio em 213 cidades do Brasil e 14 cidades no exterior, mais de 420 mil pessoas participaram pacificamente dessa mobilização exigindo responsabilização do governo federal pelos erros na reposta à pandemia da Covid-19 bem como exigindo a aceleração na compra e administração de vacinas para toda a população.


Porém, de todas as cidades onde se realizaram manifestações contra o governo federal, apenas uma foi palco de repressão violenta contra os manifestantes: Recife. Apesar de ter uma trajetória de vida política ativa e manifestações vibrantes, a cidade viveu momentos de violência policial dificilmente vistos antes em protestos na capital pernambucana.


A concentração de milhares de manifestantes tinha se dado sem maiores problemas e os grupos e organizações da sociedade civil saíram em filas e com distanciamento social liderando os manifestantes em ato pacífico e respeitando todas as regras de segurança, como uso de máscaras e distribuição de álcool para todos os participantes.


Apesar disso, o comandante da Polícia Militar de Pernambuco mobilizou o batalhão de choque para dispersar o ato. A primeira iniciativa foi reter os carros de som para que não pudessem seguir na manifestação. Já no final do ato, justamente quando os ativistas se dispersavam, o batalhão de choque, sem nenhuma mediação por parte dos órgãos de segurança, decidiu usar a força para dispersá-los. Os vídeos feitos na hora da dispersão mostram a surpresa dos manifestantes e a desproporcionalidade da repressão policial. Tiros de bala de borracha e bombas de gás lacrimogênio foram disparados contra a população.


Conforme o próprio Caderno de Instruções do Exército a munição conhecida como “bala de borracha” deve ser lançada contra alvos a uma velocidade média de 110m/s a uma distância de 20 metros pois em distâncias muito pequenas esse projetil representa um perigo podendo ocasionar danos irreversíveis (Caderno de Instruções do Exército 2017, p.32). Além disso, devem ser utilizadas como alvo dessas munições as pernas de indivíduos e não se recomenda disparos que mirem a cabeça, genitais ou coluna (Domingos 2019, p.33). Similarmente, o gás lacrimogêneo “possui capacidades inquietantes e incapacitantes [...] no corpo humano” (Domingos 2019, p. 36).  A literatura especializada descreve que quem tiver contato com esse gás pode experimentar dores intensas, lacrimação excessiva nos olhos, dificuldade respiratória além de forte sensação de queimação e náuseas (Domingos, 2019).


Como fica claro nos registros visuais e testemunhais, mesmo com todos esses dados e devido treinamento, a Polícia Militar de Pernambuco não respeitou essas instruções. Os policiais atiraram balas de borracha a menos de 20 metros de distância mirando as cabeças dos manifestantes bem como usaram o spray de pimenta para atingir o rosto de muitos que lá estavam.
Especificamente, dois transeuntes (Daniel Campelo de 51 anos, e Jonas Correia de França de 29 anos) que nem participavam da manifestação foram atingidos nos olhos por “balas de borracha” e ficaram cegos de um olho. Daniel, que não participava do ato, relatou: “Fui ao centro comprar material para meu trabalho e acabei cego de um olho”.  Além disso, a Vereadora Liana Cirne que se aproximou dos policiais para questionar as razões para o uso da força contra uma manifestação pacífica foi alvo de agressão com o spray no rosto. Assim, o desfecho do 29M em Recife foi trágico: duas pessoas ficaram cegas por balas de borracha atiradas pelos policiais e a Vereadora Liana Cirne foi alvo de uma agressão com spray de pimenta no rosto.


A resposta dos movimentos sociais e de direitos humanos a essa repressão foi ágil e eficiente. Um exemplo foi a ação coletiva do Cendhec (Centro de Estudos e Ação Social Dom Helder Camara), o MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos), o MST (Movimento Sem Terra) e a CUT (Central Única dos Trabalhadores) que divulgaram em uma coletiva no dia 3 de junho, que haviam enviado informes à ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA sobre a violência desproporcional e contra a liberdade de expressão, e da visível imperícia ou negligência com que foram usados utensílios de dispersão não letais nas ruas do Recife.


Em resposta a estes informes a Comissão Interamericana de Direitos Humanos manifestou, em sua conta oficial do Twitter, apoio aos pernambucanos que sofreram com a violência policial durante o ato em Recife. Expressou também preocupação e chamou atenção para os órgãos de controle externo da atividade policial no sentido de atuarem com medidas efetivas para a não repetição.
O govenador de Pernambuco depois da repercussão negativa nacional e internacional do 29M foi às redes socais e negou qualquer ordem de repressão desproporcional da Polícia de Choque, o que fez viralizar a pergunta, “quem deu a ordem?” (#quemdeuaordem). Em resposta às denuncias dos movimentos sociais e a indignação da sociedade civil, o comandante da PMPE foi exonerado, bem como o Secretário de Defesa Social que era responsável pela segurança pública do Estado.


No dia 19 de junho, novas manifestações ocorreram levando às ruas mais 750 mil pessoas em todo o país. No Recife, vários grupos, incluindo Cendhec, MST, CUT, Renap, entre outros, monitoraram a ação da polícia e estavam a postos para responder e prestar assistência em caso de alguma ocorrência. Desta vez os manifestantes puderam protestar sem nenhum incidente grave mostrando assim a força da articulação dos movimentos sociais na luta pelos direitos humanos e pela democracia no Brasil.   


Manoel Severino Moraes de Almeida. Advogado, doutorando em Direito e Catedrático da Cátedra UNESCO/UNICAP de Direitos Humanos Dom Helder Camara. Presidente do Conselho Diretor do CENDHEC - Centro Dom Helder Camara. Ex-Conselheiro da Comissão Nacional de Anistia/Ministério da Justiça. Membro Titular da Comissão da Memória e Verdade Dom Helder Camara de Pernambuco (2012/2016). Docente da Escola de Ciências Jurídicas da UNICAP.

Jessica Carvalho Morris. Advogada, ativista de direitos humanos Doutoranda em Direitos Humanos (CES/III, Universidade de Coimbra). Juris Doctor (Universidade de Miami). Diretora do Programa de Pós-Graduação em Direito e Professora de Direitos Humanos e de Direito Constitucional Americano da Universidade de Miami (2008-2015). Conselheira da Anistia Internacional dos EUA (2008-2014).