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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
O direito de punir: o caso Jacarezinho e o silêncio que persegue a morte
AN Original
2021-05-28
Por Marcela Uchôa

'Dois Grandes Assassinos'. Por Carlos Latuff para Brasil 247

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós os sonsos essenciais. (Clarice Lispector, comenta a execução de Mineirinho, pela polícia, em  1962)

Em 1941 a estudante Clarice Lispector que cursava a faculdade de direito naquela que viria a ser a Universidade Federal do Rio de Janeiro, publica um artigo intitulado “Observações sobre o fundamento do direito de punir”. Ela conclui o texto com reflexões em torno de uma questão existencial que a irá marcar por toda sua obra: “Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se acima de um homem dá os homens, acima dos homens nada mais há” (LISPECTOR, 2005, p. 45).

Da estudante de direito à grande escritora e jornalista, as questões existenciais e inquietações sociais continuarão a perseguir Clarice em toda sua trajetória e terão seu reencontro na crônica O Mineirinho. Ao narrar a execução do fugitivo José Miranda Rosa (o Mineirinho) - alvejado com treze balas de metralhadora em maio de 1961, a escritora analisa o sentimento mediático que naturaliza a brutalidade do assassinato daquele que era conhecido como o mais atrevido e perigoso bandido do Rio de Janeiro na altura. A mobilização da opinião pública que destacava a "paz" que o extermínio do suposto criminoso traria a cidade, contrastava com a revolta dos moradores da favela que viam o silenciar daquele que era conhecido por muitos como "Robin Hood". Da imposição de narrativas sobre a barbárie do extermínio, até a análise das marcas deixadas pela violência colonial e a escravização no desenvolvimento capitalista periférico no Brasil, Clarice Lispector de forma sensível relembra as marcas do colonialismo na mentalidade brasileira e construção das suas narrativas históricas.

Da brutalidade das ações comandadas pelo Estado em 01 maio de 1961 (em tempos que antecedem a ditadura militar), à letalidade da ação policial mais violenta do Rio de Janeiro desde a redemocratização do Brasil, ocorrida no último dia 06 maio de 2021 - que vitimou mais de 29 pessoas na favela do Jacarezinho também no Rio, pouco mudou. As décadas não deram mais resguardo de direitos a população marginalizada, antes pelo contrário…. Do resultado da recente ação policial para além do desamparo e da dor ficaram vídeos da barbárie. Em meio a imagens de sorrisos que regojizam-se com a morte, fica a incompetência do poder público e a narrativa de que nas periferias a primazia é matar.

Para além da brutalidade injustificável, em junho de 2020 o Supremo Tribunal Federal (STF) decretou liminar que limita operações policiais a casos “absolutamente excecionais” em período de pandemia. Passados poucos dias do massacre a imprensa burguesa já trata de forma secundária a ação de extermínio efetivada pela Polícia Civil, sob a alegação de combate ao tráfico de drogas. Nesse interregno a lógica do extermínio da população periférica, principalmente da juventude negra favelada é contínua. A política que se auto-intitula como de “guerra às drogas” justifica o assassinato de milhares de pessoas todos os anos, num processo histórico voltado para o controle da classe trabalhadora e dos pobres periféricos. Uma guerra que não atinge os verdadeiros traficantes, que em sua maioria sequer residem nas periferias. Sob a máscara de empresários bem-sucedidos ou políticos – são poupados das chacinas e da violência, ilibados pelos média burgueses. Tratamento diferenciado que também é dado a grande parte dos consumidores de drogas filhos das elites, que em sua maioria tem acesso a suas “encomendas” na segurança de seus lares.

Nas redes de ódio, os “carniceiros da morte” regogizam-se com a barbárie do povo negro e periférico respaldada pelo governo brasileiro que cada vez mais dá vazão a discursos e posturas fascizantes.   Da execução da Candelária que vitimou 8 adolescentes em 1993; os assassinatos em Vigário Geral também em 1993; os 8 mortos na favela do Salgueiro em São Gonçalo em 2017, numa execução comandada por milícias - em comum o silêncio resignado que toma cada vez mais lugar na medida em que passam-se os dias e os anos… Da naturalização da dor, ficam as congratulações do presidente Jair Bolsonaro a Polícia Civil do Rio de Janeiro pela eficácia da operação. Já na vida dos moradores das periferias da cidade fica sempre o alerta que a qualquer instante pode ser que em salto mais uma chacina mude a rotina do dia.


Marcela Uchôa é investigadora do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra (IEF); doutora em filosofia política pela Universidade de Coimbra; é colaboradora do jornal português O Público, e no Brasil da Carta Maior.