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O privilégio de poder lavar as mãos
AN Original - Alice Comenta
2021-05-14
Por João Arriscado Nunes

Este artigo faz parte da série Alice Comenta, da autoria da equipa do Programa de Investigação alice-Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


O dia 5 de maio foi designado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) Dia Mundial da Higiene das Mãos. Nestes tempos de pandemia, lavar as mãos passou a ser, para além de um hábito adquirido de higiene pessoal e profissional, uma das medidas que estão no centro das respostas de saúde pública que visam conter a infeção pelo vírus SARS-Cov2.  Estima a OMS que esta ação aparentemente simples permite, mesmo na ausência de situações de pandemia como aquela que vivemos, salvar cerca de 8 milhões de vidas por ano. Ela tornou-se um automatismo integrado nas práticas dos profissionais de saúde, que permite reduzir o risco de contrair infecções em ambiente hospitalar ou em unidades de saúde. E ela está também no centro da higiene e segurança em muitas formas de trabalho ou na higiene alimentar.

Lavar as mãos é um gesto que se aprende e se torna, pela sua prática regular, habitual e rotinizado. A educação para a higiene das mãos é considerada como uma das condições para ultrapassar a ignorância ou incompreensão da sua importância que, alegadamente, levariam a que a desejável universalização deste hábito seja realizada com êxito. Conhecer a sua importância e aprender o protocolo de lavagem de mãos que nos mostram os cartazes afixados em instalações sanitárias não garante, porém, que ela seja viável para uma parte considerável da população mundial. Uma das condições da sua viabilização é a existência de uma infraestrutura de armazenamento e purificação de água, de abastecimento e distribuição desta. Outra condição, inseparável desta, é a da existência de algum sistema de filtragem ou tratamento da água e de saneamento que reduza o risco de contaminação das águas destinadas ao consumo, à preparação de alimentos, à limpeza e higiene, mas também a sua eventual reutilização para fins como irrigação de terrenos cultivados. Tudo isto aparece como habitual e rotineiro, sim, mas é-o nas zonas do mundo caracterizadas pela sociabilidade metropolitana, em que existem equipamentos e procedimentos de distribuição, manutenção, vigilância da qualidade da água e de reparação e eventuais disrupções no abastecimento ou no saneamento. Lavar as mãos tornou-se um gesto tantas vezes repetido, que dispensa a reflexão sobre esse acesso à água e ao saneamento que, cada vez mais, aparece como um privilégio das zonas “civilizadas” ou “desenvolvidas”. A água torna-se assim um dado adquirido na higiene quotidiana, na preparação de alimentos, na hidratação depois do exercício, na toma de medicamentos, no lazer das piscinas, dos spas ou dos parques aquáticos.

Para uma grande parte, senão a maioria, da população do mundo, contudo, o acesso a água limpa e potável está muito longe de ser assegurado, e as tarefas e gestos quotidianos e rotineiros passam a ser episódios de uma luta continuada e sem fim pelo acesso a um bem comum, essencial à vida, um dos pilares da saúde de pessoas e comunidades. Nas zonas de sociabilidade colonial, em que predominam formas de violência e de apropriação e privação de condições básicas de existência a água potável torna-se frequentemente um bem raro, nem sempre acessível. Sistemas de distribuição e acesso de água não existem, em muitos casos, ou são insuficientes para responder às necessidades de quem a eles tem de recorrer. Em algumas regiões, como o semiárido no Noroeste do Brasil, condições climáticas e limitações das políticas públicas tornam a água um bem precioso e escasso. Mas em muitas regiões do mundo a ação humana ligada às políticas de desenvolvimento e aos programas de ajustamento estrutural impostos por organizações internacionais geraram uma escassez associada à degradação ecológica e às mudanças climáticas, mas também à apropriação privada desse bem comum. O saneamento, por sua vez, é uma das carências maiores que a ausência ou omissão do estados e das políticas públicas e a privatização transforma em experiência perene, quotidiana, das populações excluídas da sociabilidade metropolitana.

Segundo um relatório da OMS e UNICEF, em 2017, 2,2 biliões de pessoas não tinham acesso garantido a água potável; 3 biliões de pessoas não dispunham de condições, nas suas habitações ou nos lugares onde residem, para lavar as mãos com água e sabão. A maioria dessas pessoas vive nos países classificados como de baixo rendimento, situados no Sul global. Mesmo em zonas de grande abundância de água, esta é apropriada para outros fins – como a irrigação de monoculturas agrícolas ou de pastagens para criação de gado em grande escala, a mineração ou a apropriação privada e comercialização -, e o acesso a esse bem comum obriga à invenção de práticas de sobrevivência que, frequentemente, se transformam em lutas coletivas pela protecção da água, da terra, da vida e da dignidade. A invasão e ocupação de terras indígenas ou de povos originários é inseparável da protecção e da garantia do acesso à água.

As zonas de exclusão abissal que se encontram na periferia de grandes metrópoles, nos territórios indígenas ou de populações originárias, de águas, campo e florestas, em zonas de guerra ou em territórios devastados pela degradação ambiental decorrente do extrativismo, da monocultura intensiva e da desflorestação aparecem como algumas das situações mais visíveis dessa privação de acesso a um bem essencial, mas também das lutas que, incansavelmente, têm marcado a resposta ao que aparece cada vez mais como um apartheid da água e do saneamento. Daí a importância e urgência de – sem abandonar a luta pela responsabilização dos estados por políticas públicas de acesso a água potável e saneamento – procurar os diálogos e colaborações entre movimentos sociais, comunidades tradicionais e instituições de investigação capazes de construir as ecologias de saberes que permitam responder à ausência, omissão ou intervenção predadora do estado e dos efeitos da privatização da água e do saneamento através de formas sustentáveis e saudáveis de garantir o acesso a esses bens comuns.

Uma entre numerosas iniciativas em curso no Brasil, partindo de uma colaboração entre o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis de Bocaína e uma instituição pública comprometida com a justiça cognitiva, social, sanitária e ambiental, a Fundação Oswaldo Cruz  merece especial referência pela forma como procura mobilizar saberes e práticas locais, enraizadas em territórios e na experiência de populações tradicionais, indígenas e quilombolas, dos povos do campo, florestas e águas, para a elaboração de tecnologias sociais que respeitem e trabalhem a partir dos contextos e condições situadas em que ocorrem as ações de promoção de saúde.  

Nas condições atuais, poder lavar as mãos como mandam as regras da higiene que a OMS postula, e que estão no centro da resposta à atual pandemia, aparece como um luxo inacessível a uma grande parte, a mais vulnerabilizada, da população mundial, sujeita a formas de violência estrutural e de violência lenta que degradam a sua saúde e dignidade. As sindemias entre essas diferentes formas de violência e a exposição a outras patologias, com realce para aquelas em que o acesso a água potável, a hidratação e a existência de saneamento eficaz – como a diarreia responsável por grande parte da mortalidade de crianças, a cólera ou o Ébola – significam a diferença entre a vida e a morte. A luta pelo reconhecimento do acesso a água potável e ao saneamento como bens comuns e como condição de uma vida digna, saudável e sustentável é o caminho para que a prática aparentemente simples de lavar as mãos deixe de ser um privilégio de uma parte da população mundial.        


João Arriscado Nunes é Professor Catedrático de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, co-coordenador do Programa de Doutoramento "Governação, Conhecimento e Inovação" e Investigador Permanente do Centro de Estudos Sociais. Membro do Conselho Consultivo da Associação Portuguesa de Sociologia. Membro da coordenação do projeto ALICE - Espelhos estranhos e lições imprevistas, dirigido por Boaventura de Sousa Santos e financiado pelo European Research Council (2011-2016). Foi Pesquisador Visitante na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no Rio de Janeiro (2011-2012), e Director Executivo do CES (1998-2000). Os seus interesses de investigação centram-se nas áreas dos estudos de ciência e de tecnologia (em particular, da investigação biomédica, ciências da vida e da saúde pública, da relação entre ciência e outros modos de conhecimento), da sociologia política (democracia, cidadania e participação pública, nomeadamente em domínios como ambiente e saúde), Direitos Humanos e teoria social e cultural (com ênfase no debate sobre as "duas culturas"). Mais recentemente, coordenou os projectos de investigação "Avaliação do estado do conhecimento público sobre saúde e informação médica em Portugal", no âmbito do Programa Harvard Medical School - Portugal e "O envolvimento da ciência com a sociedade: ciências da vida, ciências sociais e públicos - BIOSENSE", ambos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Coordenou e participou em vários projectos nacionais e internacionais (com coordenação de equipas portuguesas), entre os quais se incluem "European Patient Organizations in the Knowledge Society- EPOKS"; "Deepening Ethical Engagement and Participation in Emerging Nanotechnologies - DEEPEN"; "Researching Inequality through Science and Technology - ResIST", "Governance, Health and Medicine. Opening Dialogue between Social Scientists and Users - MEDUSE", financiados pela Comissão Europeia. Foi membro do "steering committee" da rede European Neuroscience and Society Network - European Science Foundation, e fez parte da Public Health Genomics European Network - PHGEN. Tem coordenado e (co) organizado vários eventos científicos nacionais e internacionais, entre os quais se destaca o Ciclo "Ciências da Vida e Sociedade: Desafios da Era Pós-Genómica" (2007/08) (em colaboração com o Centro de Neurociências da Universidade Coimbra) e "Exploring Biomedicine" (2007), em colaboração com o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e o Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto. Foi co-organizador dos livros Enteados de Galileu: A Semiperiferia no Sistema Mundial da Ciência (Porto: Afrontamento, 2001); Reinventing Democracy: Grassroots Movements in Portugal (London: Frank Cass, 2005) e Objectos Impuros: Experiências em Estudos Sobre a Ciência (Porto: Afrontamento, 2008) e autor de publicações diversas. Integrou o Conselho Editorial das revistas Cadernos de Saúde Pública (Fiocruz) e Ciência e Trópico (Fundação Joaquim Nabuco). Foi membro do Conselho da European Association for the Study of Science and Technology (EASST).