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As filhas que romperam com os genocidas
Outras Palavras
2021-04-15
Por Valeria Perasso

Eram ternos, como pais. Um torturava para a ditadura argentina. Outro indicava, aos esquadrões da morte, os jovens inquietos. Agora, elas expõem a máquina psíquica que leva homens “cordiais” a banalizar a eliminação dos diferentes


Imagem: Sallisa Rosa, Resistência (2017)

“Pai, é verdade que você matou centenas de pessoas?” Certamente, essa não é uma pergunta que muitos filhos e filhas sintam necessidade de fazer aos seus pais. Mas, para um grupo de mulheres na Argentina, tornou-se uma questão inevitável e urgente.

Seus pais têm sido acusados ​​e, em muitos casos, condenados, por alguns dos piores crimes cometidos na história recente da Argentina: foram policiais e militares ligados à repressão politica, durante o último regime militar.

Desde 1976 e ao longo de quase sete anos, as juntas militares que controlaram o país perseguiram seus oponentes políticos: comunistas, socialistas, estudantes, artistas, dirigentes sindicais, qualquer um que considerassem uma ameaça. Sequestraram, torturaram e mataram milhares de cidadãos.

Eis aqui a história de duas filhas desses homens — que, após quatro décadas, levantam a voz publicamente contra seus pais.

O temível Doutor K

Analía Kalinec. 40 anos. Olhos claros, grandes e silenciosos. Apresenta-se: “Sou professora, psicóloga, mãe de dois. E também, filha de um genocida”.

Meu pai nasceu em 1952, no seio de uma família de classe média que passou por dificuldades econômicas. Abandona os estudos no penúltimo ano do ensino médio e decide ingressar na Polícia Federal por volta de 1973, quando era muito novo.

Eu nasci em meio a uma ditadura e sempre soube que meu pai era policial. Não nos perguntávamos qual era a função dele, ou o que ele fazia. Em casa era um pai muito presente, mas nunca lhe perguntei nada. Éramos uma “família típica”, a gente costumava fazer churrasco, ir ao clube da polícia ou ir pescar com meu pai … Ele era o pai provedor, muito querido, muito respeitado em casa. Éramos quatro irmãs e vivíamos em nossa bolha. Mais tarde, iríamos nos casar e ter filhos, como era esperado de nós. Das quatro irmãs, eu fui a que mais demorou para casar: aos 22 anos. Imagina só!

Assim foi a minha vida. Até 2005.

Último dia de agosto. Estava em casa quando recebi um telefonema. Era minha mãe. “Filha, não se assuste, mas o papai está preso. Fique tranquila, que ele vai sair”.

Até aquela ligação, eu nunca havia associado meu pai à ditadura, nem remotamente… Nem por um acaso.»

Eduardo Emilio Kalinec, comissário, foi colocado em prisão preventiva. Houve testemunhas que o mencionaram. Denúncias por crimes graves: 181 vítimas, acusações de sequestro, tortura e homicídio. Ele quis acalmar a família dizendo que se tratava de uma operação política contra ele.

No dia seguinte ao telefonema, vamos visitar o meu pai na prisão. E ele nos diz que não temos que acreditar em nada, que muitas mentiras serão contadas, mas que ele não tem nada do que se arrepender. Que ele teve que travar uma guerra e que tudo isso que está acontecendo agora é porque os “esquerdistas revanchistas”, como ele os chamou, chegaram ao poder [em referência ao governo do então presidente Néstor Kirchner].

Eu não entendia nada, para mim a ditadura era uma coisa do passado. Eu era totalmente alienada sobre o que estava acontecendo no país. Trabalhava em uma escola particular, aos fins de semana me reunia com as minhas irmãs, circulava entre as famílias dos colegas policiais do meu pai, e essa era a minha bolha. Eu não tinha como acessar uma tonelada de informações e nem me interessava por elas, digamos. Os meus pais também procuraram manter um estado de assepsia, “não nos envolvemos com política, somos apolíticos”.

E então, quando meu pai é preso, começo com muita dificuldade a tentar contextualizar isso tudo. Os primeiros três anos foram de negação absoluta. Foi um tempo de entender a ditadura, de entender a luta das Mães e Avós de Maio e sentir empatia por elas, mas continuar a dizer que meu pai não tinha nada a ver com isso. Que devia ter algum erro, que esses julgamentos eram necessários, mas que haviam errado em relação ao meu pai.

Até que, em 2008, levaram o caso para a fase de julgamento oral. Julgamento oral… há algum motivo para passar para julgamento oral? É aí que começo a pensar que o que meu pai dizia, não era bem assim…

Kalinec foi um dos 15 réus no primeiro julgamento do chamado Circuito ABO — sigla para os centros clandestinos Atlético, Banco e Olimpo, que funcionaram sucessivamente entre 1976 e 1979. Tanto os repressores responsáveis ​​como muitos dos presos eram transferidos de um centro para outro.

Li o caso, que até então não tinha lido. Lendo com velocidade máxima e pensando “que não apareça seu nome, por favor, que não apareça”. E ao mesmo tempo, querendo não pular nenhuma linha, para ter certeza de não deixá-lo passar, e de repente surge: Kalinec. Eu me lembro claramente daquele momento…

Li os testemunhos, as descrições daquilo que havia sido um campo de concentração. Criar todo aquele mapa na minha cabeça e localizar meu pai dentro dele era uma tarefa intolerável e difícil para mim

Para os sobreviventes que testemunharam, o pai de Analía era o “Doutor K.” Um pseudônimo, já que muitos membros das forças-tarefas escondiam assim sua verdadeira identidade.

Eu sabia que o apelido dele era Doutor K, porque ele mesmo havia contado isso para mim, embora depois passasse a negar o fato. Uma vez eu perguntei o porquê e ele inventou qualquer besteira, me disse que o chamavam de doutor porque ele sempre foi muito correto e parecia um advogado. Ele deu outra explicação para o meu marido, disse que era por causa de um produto de limpeza que existia na época, chamado “Doctor K”: era ele que fazia a limpeza. Terrível. E aí (descobri) outro fato que não é menor: ele era o doutor e a sala de tortura era chamada de centro cirúrgico.

Então, fui procurar respostas no único lugar que eu tinha, que era minha própria família. E lá encontrei um pai que queria justificar o injustificável; que, quando o enfrentei dizendo: “Como assim você não fez nada, se tem todos esses testemunhos no caso?”, ele terminou confirmando aquilo que eu mais temia.

Ele me confirmou, pessoalmente, a sua participação.

Ele fazia parte das gangues que saíam para sequestrar e levar pessoas para centros clandestinos. Hoje, ele está com 67 anos. Durante a ditadura era um homem de 24 ou 25 anos. Ele era dos que executavam ordens, não daqueles que ordenavam. E ainda assim, em algumas frases textuais, os sobreviventes relatam que o reconheciam como alguém muito cruel dentro dos campos de concentração. Havia alguns repressores que eles temiam mais do que outros. E meu pai era um dos que mais provocavam medo.

A sala de cirurgia e o ferrão elétrico: vozes dos sobreviventes

Dezenas de testemunhas, em diferentes instâncias judiciais, apontaram Eduardo Kalinec como partícipe de interrogatórios e sessões de tortura em centros clandestinos.

Oito deles, no julgamento do Circuito ABO que o levou à prisão perpétua. Ele foi descrito como um jovem de cabelos escuros, “corpulento”, machão, pescoço grosso, voz aguda.

“Muito temido lá dentro” e “muito cruel” com os presos, segundo relatos.

Ana María Careaga tinha 16 anos e estava grávida de três meses quando eles a prenderam. O doutor K chutava-a toda vez que a encontrava na ante-sala do banheiro. Em uma ocasião, ele a repreendeu aos gritos por não ter dito que estava grávida. “Quer que eu abra suas pernas e te faça abortar?”

Miguel D’Agostino identificou-o como um dos três homens que o submeteram a cinco dias de interrogatório com a ferrão elétrico na “sala de cirurgia”.

Delia Barrera também foi vítima de tortura nos 92 dias em que esteve presa no Atlético. Era 1977 e ela tinha 22 anos.

“Estou com uma máscara sobre o rosto e ouço muitas vozes em volta. E uma voz diz ‘podem começar’, e então eles começam a me bater, a me espancar. Depois, eles me arrastam pelos cabelos até o que chamam de sala de cirurgia. Havia três quartos, dava para escutar enquanto outros eram torturados na sala ao lado”, relatou Barrera à BBC Mundo.

Sou obrigada a me despir. Eles me amarram numa cama de metal, abrem minhas pernas, amarram um cabo no polegar do meu pé esquerdo e me fazem ouvir um barulho: shhhhh. E eles dizem “Conhece isso? Pois bem, agora você vai conhecê-lo”. E aí eles começam a me dar choques com o bastão.

Eles me culpavam de ter colocado bombas no departamento de polícia, coisa que eu nunca fiz. Pediam os nomes de outros militantes. E a tortura durava…

Após uma sessão de tortura, ela conheceu Kalinec.

Tinham me espancado muito e me levaram para a enfermaria, fui interrogada por um dos repressores chamado Doutor K, então pensei ‘ah, um médico’. Ele me disse que minhas costelas estavam rachadas, mas que não iria me enfaixar porque eu poderia me enforcar com as bandagens. Mas consegui espioná-lo, minha máscara estava meio levantada e nunca esqueci aquela cara de Kalinec. No julgamento, ele estava penteado, com o cabelo dividido com gel, mas ainda tinha o bigode. Quando os juízes me perguntaram se eu reconhecia alguém, eu disse ‘ali está ele, Doutor K, Kalinec’. Não conseguia me esquecer de Kalinec.”

Delia foi libertada e viveu para contar a história, com sequelas físicas e mentais. Cicatrizes do ferrão elétrico, uma costela mal recuperada e tentativas seguidas de sucídio.

Outros não tiveram o mesmo fim. Entre eles, seu marido Hugo Alberto Scutari. Nunca mais o viu, desde que compartilharam uma cela por algumas semanas no El Atlético. Hoje ele é um dos presos desaparecidos do regime: embora o número exato seja contestado, as organizações de direitos humanos estimam que foram cerca de 30 mil.

As cartas

Analía confrontou seu pai com as provas fornecidas pelo processo judicial.

“Depois de uma conversa na prisão, na qual ele ficou muito desconfortável e nervoso, eu senti uma espécie de alívio. Voltei para casa e escrevi uma carta aberta a um repressor. Na minha família, sempre escrevemos cartas uns aos outros. E eu coloquei o nome “repressor” em tudo. Hoje em dia, para mim é natural, mas eu tinha que botar essa palavra… e como eu não consegui falar na cara dele, eu escrevi.

Aquele dia, na cadeia, foi a última vez que vi meu pai. Mas eu não sabia na época.

Jamais imaginei a dimensão que essa minha rebeldia de ousar duvidar dele iria tomar. Então, começou toda a reprovação da minha mãe e das minhas irmãs: “Como você vai dizer isso a ele, justamente agora, quando ele mais precisa de nosso apoio? Temos que nos manter unidos e você vem com essa história!”. Minhas irmãs, também policiais, sempre ficaram do lado do meu pai. Hoje não tenho nenhum contato com elas.

Naquela época também comecei a fazer além das cartas, um registro narrativo pessoal pensando em meus filhos e em como explicar a eles que de repente eles tinham ficado sem avós, sem primos, sem tias.

E a coisa começou meio verborrágica, contando pra eles toda a verdade. A tal ponto que um dia me ligaram do jardim de infância e disseram “olha, precisamos marcar uma reunião com você, porque o Gino (filho mais velho, então com 4 anos) contou aos colegas que o avô dele estava preso porque matou muita gente”. E os coleguinhas começaram a perguntar se ele tinha metralhadoras, se tinha tanques… E a professora, quase que caiu o queixo.

É um trabalho constante para reconciliar a imagem do Doutor K com a do pai amado. Dentro do que é o mundo intrafamiliar, lembro-me dele fazendo cócegas, nos abraçando…

Num primeiro momento, a dissociação foi mais forte. Lembro-me de dizer “bem, de um lado está meu pai e do outro lado está o genocídio.” E desenvolvendo na terapia, acabo reconhecendo que não, que é sempre a mesma pessoa, uma única pessoa com uma parte que é mantida escondida, mas que faz parte dele e já não me engana».

Kalinec foi condenado à prisão perpétua em dezembro de 2010 por homicídio qualificado, tortura e privação ilegal da liberdade, pena agravada por ter sido cometido por um funcionário público. Ele nega as acusações.

Dos quase 3.300 investigados por crimes contra a humanidade desde que os julgamentos foram reabertos em 2007, 962 pessoas foram condenadas em 238 casos, de acordo com o último relatório da Promotoria de Crimes contra a Humanidade. Existem ainda mais de 350 casos pendentes.

Mas nem todos os ex-membros das forças de segurança repressora chegam ao banco dos réus. O pai de Paula(*) é um deles.

“Nasci em Buenos Aires, em 1980, quando a ditadura vivia seu maior apogeu.

Desde que eu percebi que as coisas que eu sabia que tinham acontecido na ditadura eram responsabilidade do meu pai, que ele havia trabalhado para eles, esse sentimento de vergonha e de culpa me acompanha, como se eu fosse cúmplice. Porque… eu sei disso tudo e não há nada que eu possa fazer. Sou guardiã de um segredo que não quero guardar.

No meu caso, meu pai nunca foi levado à justiça. Como tenho certeza de que ele é culpado? Bem, porque ele me contou! Eu sei que ele fazia parte da repressão porque ele me disse isso. Meu pai trabalhava para os serviços de inteligência, provavelmente como espião.

Quando eu tinha 14 anos, meu pai nos levou, com meu irmão, a um café e nos contou que era policial. Não fazíamos ideia. Ele nos disse que havia participado da “guerra contra a subversão”, como ele a chamou. E que ele estava orgulhoso, ele se sentia um herói. Eu não entendi na hora. Levei tempo, você sabe, cerca de dois meses para digerir.

Ele costumava se infiltrar em diferentes grupos, de estudantes ou de assistentes sociais, ou de qualquer tipo de pessoas de que os militares não gostassem. E ele ‘marcava’ os militantes, passava os nomes aos seus superiores.

Ele era muito jovem, tinha vinte e poucos anos e, pelas fotos em casa, não parecia um policial. Ele tinha cabelo comprido e usava camisas largas, como qualquer cara dos anos 70. O que eu sabia é que ele era advogado. Nós não socializávamos com outros policiais, em casa ouvíamos música ‘proibida como (Joan Manuel) Serrat… Se você visse meu pai, nunca diria ‘olha lá, um policial’. Em minha casa nunca vimos nenhum uniforme. Nunca.

Quando ele nos contou tudo, eu o confrontei. Eu disse “não interessa se eles fizeram algo ou não. Você não vai e os sequestra ou tortura! Você não os mata só porque eles são, segundo você, subversivos! É uma coisa básica: ninguém faz isso e o Estado muito menos, nunca deveria fazer.”

Tive essa conversa com ele muitas vezes. “Eram terroristas”, ele repetia. E daí? Assumindo que fossem: você tem que agir dentro da estrutura da lei. “Você não entende, a ameaça comunista estava chegando”, retrucava. “Eu não me importo, pai. Não é justificativa para matar, torturar, estuprar, desaparecer pessoas e roubar crianças. Sob hipótese alguma”.

Dez anos se passaram desde que Paula descobriu o segredo de família até cortar os laços com o pai.

«Família é família… Tive que continuar encontrando com ele, mas por um tempo não o vi porque estava com muita raiva. E assim, entre idas e vindas, em parte porque a minha mãe insistia: “Ele é seu pai, como você pode não vê-lo?” Mas quando minha mãe morreu, me senti mais livre e decidi que eu colocaria um ponto final. Cortei o vínculo. Isso foi há 15 anos.

Não voltei atrás. Ele é uma pessoa horrível e não quero alguém assim na minha vida. Ele sempre me disse que tinha feito o que tinha que ser feito, que tinha agido corretamente, que os crimes foram necessários. Ah, e ele não os chamava de crimes, é claro. Ele falava que eram “ações”.

Então, de certo modo, pouco me importa se ele foi condenado ou não, eu sei o que ele fez porque ele se gaba disso. Ele foi um participante crucial dessa máquina de violência que defende até hoje.

Também, não tenho lembranças bonitas, de qualquer jeito. Faço terapia há 15 anos e voltamos muito a este assunto: como é que não tenho memórias? Sei que há fotos em que somos uma família feliz, mas não tenho registro. Se eu tivesse que pensar em uma boa memória… Deixe-me lembrar… Eu tive uma … Bem, eu poderia dizer que meu pai desenhava muito bem. Uma vez ele desenhou para mim uma Cinderela muito bonita. Isso, ele era um bom desenhista.

Todo o resto do tempo, ele me dava medo. Digamos que ele tinha uma aura assustadora (risos). Ele sabia como inspirar terror. Um tempo atrás reencontrei alguns amigos da infância, estávamos nos lembrando daquela época e um amigo meu confessou: “Seu pai me dava muito medo”. E eu pensei “sim, isso mesmo, eu também tinha medo dele”.

Ele não era violento, no sentido de que nunca nos sujeitou a violência física. Mas era um pesadelo psicológico.

Historias desobedientes

Paula e Analía se conheceram. Não faz muito tempo. As redes sociais ajudaram. Decidiram que queriam se manifestar, ir às ruas, ir contra a história familiar e repudiar seus pais diante de todos.

Analía: Começamos a perceber que havia outras filhas e filhos de genocidas que viviam silenciosamente o seu repúdio. Nos encontramos. Era uma coisa espontânea, de dizer “temos que fazer alguma coisa, isso é intolerável”. E de nos perguntarmos como nos apresentaríamos…

Decidimos partir deste lugar de sermos parentes de genocidas que repudiam os crimes e que abraçam as bandeiras da memória, da verdade e da justiça. Decidimos nos chamar de Histórias Desobedientes. Fizemos uma bandeira e fomos marchar na praça. A primeira vez éramos quatro, todas mulheres, com muita energia e alegria…

Paula: Quando descobri, foi um despertar: “meu deus, eu sabia que não poderia ser a única!” Eu sinto que o grupo me entende como ninguém mais poderia compreender. Imagine só, eu sei quem é meu pai desde os 14 anos e nunca tinha falado sobre isso com ninguém.

A primeira vez que contei isso pra alguém, foi à minha psicóloga, mas depois guardei o segredo por 23 anos, até conhecê-las (há menos de dois). É uma loucura… tenho 39 anos e passei 23 anos em silêncio.

Analía: De fato, sim. Temos uma necessidade muito forte de expressão. Fazemos manifestos com frequência, lançamos um livro coletivo, um projeto de lei que tenta mudar a legislação argentina — que até os dias atuais impede que filhos testemunhem contra seus pais.

Queremos garantir que isso não se aplique em casos de crimes contra a humanidade e termos o direito de falar se soubermos de coisas que possam contribuir com as causas.

Paula: Quando você carrega um segredo por tanto tempo, falar sobre isso ajuda a lidar com a vergonha, um sentimento que muitos de nós compartilhamos coletivamente. Vergonha porque você sabe o que sabe, porque tem que calar a boca, porque tem medo do que as pessoas vão pensar.

Por isso, é importante “sair do armário”. E sair coletivamente é muito mais poderoso. Porque podemos desafiar esses repressores de um lugar que ninguém pode: o lugar dos filhos ou filhas. Sabemos que não se arrependem, sabemos que guardam segredos num pacto de silêncio inquebrantável — pacto pelo qual nenhum deles contou o que fizeram na ditadura.

Analía: Eu continuo esperando meu pai falar. Eu sei que ele tem informações confidenciais. Sobre os desaparecidos, eventualmente sobre algum bebê que foi roubado em cativeiro e dado às famílias adotivas.

Ao contrário de outros repressores senis, meu pai está lúcido, tem uma ótima memória. E saber do dano que ele continua causando com seu silêncio cúmplice e criminoso, me dói muito.

O fim do amor?

A presença dos “desobedientes” nas manifestações pelos direitos humanos nas ruas de Buenos Aires ainda pega muitos de surpresa. Eles são um ator novo em cena, e nem todo mundo conhece o coletivo que os une.

Eles os observam surpresos, perplexos. Os aplaudem quando passam, elogiam sua coragem.

Mas sua presença também incomoda alguns sobreviventes e familiares das vítimas. (Muitos, inclusive, se negaram a participar desta reportagem).

«Sou uma pessoa muito dura perante algumas coisas. Esses filhos desobedientes tiveram outras chances de aparecer para denunciar seus pais, mas não o fizeram. Por que eles não saíram antes”, pergunta Delia Barrera, uma sobrevivente.

“Porque quando você fala e diz ‘meu pai é isso’ e depois diz que o ama, eu ouço e penso: ‘ok, começamos mal’. Você não pode amar um repressor genocida. Se você disse que não o ama, aí já é outra coisa».

É possível deixar de amar o pai que uma vez amamos?

«Olha, é o que eu me pergunto o tempo todo”, confessa Analía Kalinec.

Em primeiro lugar, porque foi uma relação de grande afeto mútuo que durou a minha infância, a minha adolescência e parte da minha vida adulta. Mas depois tive que repensar tudo. Que foi o quê? Carinho, mas com a condição de que eu fizesse tudo que meu pai queria? Quanto amor pode haver, se quando eu começo a discordar dele ou a questioná-lo, ele já quer me deserdar?

Eu me recuso a desistir daquele pai que tanto amei. Sei que há uma parte de mim que quer preservá-lo e não quero ser tão cruel comigo mesma a ponto de desistir disso.

No coletivo, muitas vezes pensamos nisso, dizemos que não podemos amar os nossos pais. Quem pode decidir amar ou não amar? Como você apaga o afeto? Como apagar as memórias? Portanto, por enquanto, vivemos com essas contradições

(Sem) epílogo

Em 2019, desde a prisão, Kalinec deu início a um processo para que Analía fosse excluída da herança de sua mãe, que faleceu em 2015. Fez isso “por motivos de indignidade”: ele considera que sua filha o difamou e que não deve se beneficiar do dinheiro da família, conforme consta em carta também assinada por suas duas irmãs mais novas.

Em resposta ao processo, Analía ofereceu aceitar a demanda do seu pai, mas só se ele admitir a sua culpa e fornecer informações sobre o destino de suas vítimas.

“É muito cínico isso que está acontecendo, mas o que me parece interessante desse processo contra mim é que, depois de 12 anos sem nos vermos, aquele diálogo que meu pai me negou, transformou-se numa conversa por meio de escritos e advogados, onde ele tem que ler o que eu tenho a lhe dizer e onde continuo exigindo que ele fale sobre o que sabe”, diz a filha.

Paula não tem mais essa opção. Ela recebeu uma ligação de seu irmão recentemente, para avisar que seu pai havia sofrido um derrame. Foi operado, mas nunca mais recuperou a consciência.

“Eu não fui visitá-lo no hospital. Também não fui ao funeral”, diz Paula, num telefonema à BBC Mundo.

“Decidi não ir porque achei que seria um desrespeito com aqueles que tinham uma relação com ele. E também porque, honestamente, uma parte de mim já havia vivido esse luto pelo meu pai em vida”.

“Mas com ele vivo ou morto, ainda me sinto responsável, como filha, por falar, por expor que eu condeno os seus atos. Pode ajudar a encorajar outras pessoas a falar, independentemente de seu vínculo de sangue com o perpetrador. Nada disso muda com a morte do meu pai.”


(*) Paula pediu que seu sobrenome não fosse publicado, para preservar a identidade de outros membros de sua família.

Valeria Perasso é jornalista multimídia e correspondente de Assuntos Hispânicos na BBC Mundo

Tradução: Simone Paz 

 



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