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Reflexão
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A pandemia da privatização da previdência na América Latina
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2021-04-04
Por Sidney Jard da Silva

Fonte: "Ato contra a reforma da Previdência em frente à agência do INSS em Caruaru (PE)/Foto: Bia Menezes" by Brasil de Fato is licensed under CC BY-NC-SA 2.0.
 

Em 20 de fevereiro de 2019, o presidente recém-eleito Jair Messias Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional um ambicioso projeto de reforma do sistema previdenciário brasileiro. Entre as suas principais propostas estava a criação de um regime privado de capitalização paralelo ao regime público de repartição. A investida neoliberal bolsonarista foi bem sucedida na aprovação de mudanças paramétricas que tornaram mais difícil o acesso dos trabalhadores brasileiros aos benefícios da previdência social, mas diante da pressão contrária dos movimentos sociais, dos sindicatos e dos parlamentares da oposição foi derrotada no seu intuito principal: a privatização do sistema previdenciário.

Inconformado com a derrota, e insensível a tragédia humanitária que já ceifou a vida de milhares de idosos brasileiros, Paulo Guedes, o ultraliberal ministro da Economia do Brasil, mais uma vez, anuncia a privatização da previdência social como uma das principais medidas para a superação da catastrófica crise econômica e social que assola o país.  O presente texto tem como objetivo fazer um balanço crítico da privatização da previdência social na América Latina e chamar atenção para os riscos associados à essa nova investida do governo Bolsonaro contra o maior sistema público de repartição solidário do continente latino-americano.

Uma publicação recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) atesta o fracasso da privatização da previdência social no mundo. A maioria das expectativas otimistas em relação à reforma previdenciária não se concretizou, muito pelo contrário, os países que privatizaram seus sistemas nos anos 1980 e 1990 reduziram drasticamente a proteção social dos trabalhadores e empurraram milhões de idosos para a pobreza.

De acordo com o relatório produzido pela OIT, entre 1981 e 2014, trinta países privatizaram total ou parcialmente seus sistemas de previdência social. A América Latina foi pioneira neste processo: Chile (1991), Peru (1993), Argentina (1994), Colômbia (1994), Uruguai (1996), Bolívia (1997), México (1997), Venezuela (1997), El Salvador (1998), Nicarágua (2000), Costa Rica (2001), Equador (2001), República Dominicana (2003) e Panamá (2008). O Brasil foi a única grande economia latino-americana a não se aventurar, até então, pelos tortuosos caminhos da capitalização individual do sistema previdenciário.

Neste mesmo período, a média de cobertura em nove países latino-americanos que realizaram reformas estruturais dos seus sistemas previdenciários caiu de 38% para 27%. Na Argentina e no México, as taxas de cobertura declinaram 11% e 7%, respectivamente; enquanto no Uruguai, na Colômbia e na Bolívia permaneceram estagnadas desde a privatização dos seus respectivos sistemas de repartição solidária. Ainda segundo o relatório da  OIT, a taxa de reposição dos benefícios previdenciários também declinou. Na Bolívia, “as pensões privadas correspondem em média a apenas 20% do salário médio durante a vida ativa do trabalhador”; enquanto no Chile “a mediana das taxas de substituição futuras é de 15% e apenas 3,8% para os trabalhadores de baixa renda”.

Neste ponto, cumpre observar que se de um lado houve uma propensão de reduzir a cobertura e o valor dos benefícios previdenciários; de outro, houve uma tendência de transferir para os indivíduos os riscos da capitalização privada. Na Argentina, a crise financeira de 2001 reduziu em 44% os recursos acumulados nos fundos de pensão. A crise financeira internacional de 2008, por sua vez, fez os recursos previdenciários acumulados pelos trabalhadores chilenos encolherem em 60%. No Peru, metade dos ativos dos fundos de pensão foi corroída pela mesma crise.

Vários outros aspectos negativos dos sistemas privados de capitalização individual são elencados pelo relatório da OIT, entre os mais relevantes destacam-se: I) aumento da desigualdade de gênero: II) custos administrativos extorsivos; III) captura das agências reguladoras pelos grupos financeiros; IV) incremento da dívida pública; V) eliminação da participação social na gestão dos regimes previdenciários.

Considerando o conjunto de informações e dados acumulados desde a pioneira experiência chilena dos anos 1980, a OIT é categórica em afirmar que o experimento da privatização da previdência social fracassou: “Após algumas décadas de implementação problemática, muitos países começaram a reformar seus sistemas de previdência. Porque a privatização da previdência não atendeu às expectativas, mas gerou frustrações”.

Diante do trágico fracasso que jogou milhões de idosos na pobreza, dezoito países já reverteram total ou parcialmente a privatização dos seus sistemas previdenciários. Entre eles, cinco da América Latina: Venezuela (2000), Equador (2002), Nicarágua (2005), Argentina (2008) e Bolívia (2009). Neste mesmo período, conforme registra Carmelo Mesa-Lago, uma das principais autoridades no assunto, República Dominicana, Panamá e Peru também tentaram voltar para o sistema público de repartição, mas não foram bem-sucedidos na aprovação legislativa da “re-reforma” dos seus sistemas previdenciários.

O processo reformista latino-americano deixa importantes lições para estudiosos e gestores de políticas públicas no mundo. A mais relevante é o aprendizado de que a crise previdenciária não pode ser solucionada com a mera mudança do modelo de financiamento do sistema, isto é, com a substituição de um regime público de repartição por um regime privado de capitalização.
Contudo, não obstante as robustas evidências do fracasso da privatização da previdência social na América Latina, setores importantes da elite econômica, política e intelectual brasileira, entre estes últimos midiáticos acadêmicos à serviço do mercado, insistem em apresentar o regime de capitalização como uma grande inovação institucional capaz de promover o equilíbrio financeiro das contas públicas e a retomada do crescimento econômico.

Vivemos hoje no Brasil, em pleno século XXI, um obscuro período de prevalência de “mitos políticos” e de “decisões irracionais”. Não por acaso, contrapondo-se às evidências aqui relatadas, a privatização do sistema previdenciário ainda é uma das principais agendas do governo brasileiro, desprezando ensinamentos conceituais e pesquisas empíricas sobre a malograda experiência dos regimes de capitalização na América Latina.

Não bastasse o vergonhoso anticientificismo no combate à COVID-19, a terra também é plana nos cálculos atuariais da burocracia civil-militar que comanda o país.



Sidney Jard da Silva é Professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (CECS/UFABC). Doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com doutorado sanduíche no Departamento de Ciência Política do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC).