pt
Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
MÃE É MÃE: Maternidade e ativismo feminista no Brasil e nos Estados Unidos
AN Original
2021-03-08
Por Nadejda Marques

Relações imperialistas e neo-colonialistas entre os Estados Unidos e o Brasil tradicionalmente dificultavam ou desencorajavam o diálogo e sinergia entre as expressões feministas dos dois países tanto a nível acadêmico quanto a nível de ativismo social. Durante grande parte do século XX, narrativas das lutas feministas no Brasil eram normalmente ignoradas ou simplificadas na história do feminismo moderno. De fato, não era raro que feministas norte-americanas desclassificassem movimentos feministas por toda a América Latina como participação em movimentos de base sem comprometimento com a causa feminista. Possivelmente, nada ilustre melhor o antagonismo que existia entre as duas formas de ativismo feminista do que a relação com o conceito de maternidade. É curioso que seja justamente o conceito de maternidade que, hoje em dia, aproxime as expressões feministas nos dois países.  


Historicamente, feministas norte-americanas centravam-se na ideia das liberdades individuais e na igualdade de direitos e oportunidades. Sendo assim, concentravam seus esforços para garantir que as mulheres pudessem alcançar igualdade em todos os espaços (público e privado) e esferas da sociedade através da redefinição dos papéis e atribuições de gênero e desconstruindo os conceitos de masculino e feminino principalmente em termos jurídicos e legais. Referências à maternidade como símbolo político, geralmente, eram vistas com desconfiança ou desaprovação pois a maternidade era a base na qual se centrava a dominação masculina sobre as mulheres. 

Por outro lado, no Brasil, os movimentos feministas estavam mais alinhados à experiência feminista latinoamerina. Repetidas vezes, feministas brasileiras se mobilizam na defesa dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, por meio da celebração dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres, principalmente a maternidade. Foi assim durante a ditadura militar de 1964 a 1985 quando o ativismo feminista foi direcionado sobretudo contra o aparato repressor vigente. As mulheres participaram da resistência ativa contra a ditadura, na militância nos diversos movimentos estudantis da época e também a partir de comunidades de base e associações independentes. Fazendo uso de sua condição de mãe, brasileiras se mobilizaram perante o Estado na defesa de seus direitos. De fato, embora Las Madres de la Plaza de Mayo, movimento estabelecido na Argentina em 1977, seja um marco da expressão feminista na América Latina e símbolo político ímpar em todo o continente não foi pioneiro na mobilização social de mulheres que assumem o papel da maternidade em protestos contra a repressão do Estado. As mães da União Brasileira de Mães, organização estabelecida no ano de 1968 em meio as manifestações que protestavam o assassinato do estudante Edson Luis de Lima Souto, de 16 anos, por policiais militares, buscavam proteger seus filhos e ajudar estudantes presos e estudantes carentes fazendo visitas às prisões e quartéis onde eram mantidos presos políticos e levando a eles alimentos e trabalhos em tricô. A União chegou a contar com 500 mães filiadas que também participaram de passeatas para impedir a violência contra estudantes e, por sua atuação, foi declarada ilegal e banida um ano depois da sua fundação, em 1969.

Após a ditadura no Brasil, mulheres no papel de mães continuaram atuando em movimentos contra a violência do Estado e em defesa dos direitos humanos. Um exemplo emblemático é o trabalho das Mães de Acari que, em 1990, se organizaram após o desaparecimento de onze jovens moradores do bairro de Acari, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, na busca de seus filhos. O ativismo das Mães de Acari foi fundamental tanto na denúncia dos crimes ocorridos quanto na sensibilização da opinião pública. Além disso, serviu de inspiração e exemplo para outros movimentos onde mulheres reafirmam suas identidades como mães nas suas demandas, na defesa de seus direitos e contra a impunidade em casos de atrocidades cometidas por agentes do Estado.

O conceito de maternidade também está bastante presente no ativismo feminista e esforços pela redução do número de mulheres privadas de liberdade no Brasil. No país, são mais de 40 mil mulheres privadas de liberdade e quase metade delas em prisão preventiva. Segundo estimativas, a maioria das mulheres privadas de liberdade no Brasil é pobre, com baixo grau de escolaridade ou experiência profissional, não-violentas e com históricos como vítimas de abuso. Além disso, elas têm probabilidade de terem filhos ou dependentes que precisam de seus cuidados maior do que homens na mesma condição. Munidos dessas informações, movimentos feministas no Brasil têm apresentado estratégias de mobilização e litígio para garantir que as mulheres permaneçam com suas famílias inclusive através de um Habeas Corpus coletivo a ser aplicado em casos de mulheres grávidas em prisão preventiva ou mulheres com filhos de até 12 anos de idade. 

Nos Estados Unidos, organizações de mulheres como Mothers Against Police Brutality (MAPB), criada após o assassinato de Clinton Allen por um policial de Dallas em março de 2013, se pronunciam a nível nacional com slogans do tipo: “Insultar uma mãe é insultar todas as mães”.  A situação de mulheres privadas de liberdade é semelhante no Brasil e nos Estados Unidos. Cerca de 60% das 219.000 mulheres nos Estados Unidos privadas de liberdade são mães de crianças com menos de 12 anos de idade e grande parte são mães solo. Para reduzir o número de mulheres privadas de liberdade, o movimento social Black Lives Matter, organiza desde 2017, campanhas de arrecadação de fundos para o pagamento de fiança de mães encarceradas para que elas possam passar o dia das mães com suas famílias. Essa abordagem é novedosa no país uma vez que realça o papel das mulheres privadas de liberdade como mães ao mesmo tempo que denuncia o caráter discriminatório e sócio-econômico das prisões preventivas.

A proliferação de grupos que ressalta o conceito de maternidade como o Mothers Unite Against Violence, Mothers Against Gun Violence, Mothers Against Violence, Mothers in Charge entre outros tantos, demonstra não só a popularidade do conceito de maternidade como também a sua versatilidade. O papel de mãe, que a sociedade nos ensina a reverenciar independentemente do ponto de vista político, pode ser utilizado para diversos fins e ambos países já viveram momentos em que o próprio Estado manipula o simbolismo da maternidade para seu benefício. Não é o uso da maternidade como forma de aglutinar e mobilizar as mulheres que é novidade nos EUA mas sim seu uso em situações de violações de direitos humanos como brutalidade policial, contra as péssimas condições carcerárias, em casos de violência urbana e para demandas sociais específicas. É essa expressão feminista que, gradativamente, aproxima o ativismo feminista no Brasil e nos Estados Unidos. 


Nadejda Marques investiga na Universidade de Coimbra - CES os Efeitos das Políticas de Saúde Pública para combater o COVID-19 em Migrantes e Refugiados da União Europeia. Este projeto é parceiro da Rede Covid-19 Humanidades da UFRGS que tem como objetivo produzir conhecimentos que permitam compreender os impactos da pandemia no Brasil. Nadejda Marques é PhD em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha) e trabalha com direitos humanos há mais de duas décadas. Ela é autora de Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley (2018) sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício; e co-autora do livro The Cost of Inaction: Case Studies de Ruanda e Angola (2012) que apresenta e implementa a metodologia de Amartya Sen para contabilizar as consequências e estimar os custos de uma falha na seleção de ações apropriadas para responder às necessidades das crianças e suas famílias. Marques escreveu sobre uma variedade de tópicos, incluindo reassentamento de refugiados, deslocados internos e ex-combatentes em Angola, saúde pública na África Subsaariana, o tráfico de pessoas na Europa e serviços de saúde escolar nos Estados Unidos. Marques trabalhou como pesquisadora em Angola para a Human Rights Watch e como consultora para os principais centros de direitos humanos em Angola e no Brasil. Ela trabalhou como correspondente especial para o Washington Post na América Latina e lecionou e/ou trabalhou em Harvard, Bentley College, Universidade de Massachusetts, Stanford e na Universidade do Colorado em Boulder. Marques é fluente em inglês, português e espanhol.