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A democracia como um trabalho sujo: Notas sobre o lugar do corpo no fazer democrático
AN Original
2021-02-17
Por Etiane Araldi

A democracia é um trabalho 

A pergunta pela democracia e pelo fazer democrático tem emergido com força em minha experiência como docente na educação de trabalhadores. Sou professora em um Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia, instituição pública responsável por operar a política brasileira de educação profissional e tecnológica, que tem como princípio a formação para o trabalho em uma perspectiva crítica ao capitalismo e orientada para a promoção da justiça social. Ensinar o trabalho e a gestão sob esses princípios coloca como imperativa a tarefa de educar para a democracia, tanto em nível macropolítico, na perspectiva de uma formação cidadã que compreenda as relações entre Estado e sociedade do ponto de vista da participação social, como em nível micropolítico, das relações de poder e dos coletivos nos ambientes de trabalho.

Tal demanda levou-me a criar, em alguns cursos da área de gestão, a disciplina “Ferramentas para Gestão Participativa”. Quando me propus a ensinar sobre gestão democrática com um enfoque metodológico, a partir de ferramentas, eu não tinha ideia da potencialidade que seria explorar esse âmbito operacional do fazer democrático. Estruturei a disciplina em torno de alguns conceitos chave sobre participação e, sobretudo, em metodologias de facilitação de grupos, ferramentas de diálogo, do ponto de vista da educação popular. Os(as) estudantes realizam, ainda, observações dos grupos sociais de que participam - analisando os graus de participação presentes nesses coletivos - e, ao final do percurso, propõem intervenções práticas que visam ampliar a participação e a democratização desses espaços. Trata-se de um curso de 21 horas e os resultados têm sido surpreendentes, tanto na experiência de docente e estudantes, como para esses grupos/instituições que compõem seu entorno e têm sido afetados pelas metodologias participativas aprendidas nas aulas.

Tenho explicado essa faceta revolucionária de um dispositivo de ensino aparentemente simples como um educar a partir da carne e do chão. Na educação de trabalhadores(as), coloca-se fortemente o desafio de gerar pensamento reflexivo para além do “chão de fábrica”. Nossos referenciais desse campo preconizam que é preciso se deslocar das práticas de treinamento dos(as) trabalhadores(as) em habilidades específicas, para construir processos formativos que abarquem o conhecimento dos fundamentos das técnicas. Nesses discursos, é como se, para superar a dicotomia intelectual-manual do trabalho, fosse preciso direcionar o investimento para esse âmbito intelectual, crítico e reflexivo.

Por outro lado, minha preocupação, como professora do campo das ciências humanas que atua na formação de trabalhadores técnicos, tem sido como deslocar a crítica de um ato meramente reflexivo. A crítica sem dispositivos de intervenção, espectadora, como as práticas educacionais que são geradas no interior de dispositivos escolares marcados por tecnologias representacionais, em espaços fechados ao seu exterior. Em meio à lógica “descorporificada” das instituições acadêmicas, como seria possível propiciar aos(às) estudantes ferramentas para aprenderem a se vincular e intervir em suas diferentes realidades sociais? Não será com distanciamento reflexivo, contemplação, que eles(as) ampliarão sua capacidade de ação com os diferentes mundos que habitam e fabricam. Será, como sugere Paulo Freire, com a articulação de corpos e territórios como mediadores desse espaço educacional: “será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política”.

Relacionamos essas pistas de Freire com as proposições feministas de se pensar o conhecer e o conhecimento de maneira situada. Donna Haraway, em suas problematizações acerca da ciência para o feminismo, propõe uma redefinição do conceito de objetividade que considere a localização e a corporificação como ontológicos em qualquer ação de produção de conhecimento:

Estou argumentando a favor de políticas e epistemologias de alocação, posicionamento e situação nas quais parcialidade e não universalidade é a condição de ser ouvido nas propostas a fazer de conhecimento racional. São propostas a respeito da vida das pessoas; a visão desde um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e estruturado, versus a visão de cima, de lugar nenhum, do simplismo. Só o truque de deus é proibido.

Seguindo essa pista feminista de deslocar os saberes científicos das “visões de cima” ou “visões de deus”, tenho tentado pensar a educação de trabalhadores(as) sem me abstrair da carne e do chão, promovendo a reflexão a partir dos trabalhos de execução. Pensar a democracia desde esse lugar, de sua execução, possibilita perceber, por exemplo, que o fazer democrático exige a construção de mundos comuns. Afirmar a democracia como trabalho significa isto mesmo: o mundo comum não está dado e será preciso trabalhar para construi-lo. Ou seja, construir processos, dispositivos, caminhos metodológicos para a sua produção.

O fazer democrático é um trabalho de cuidado
Afirmar a democracia como trabalho convoca-nos a pensar sobre qual seria a natureza deste trabalho e por que ele seria, como propus no título deste ensaio, um trabalho sujo. Esta proposição se ampara, sobretudo, no pensamento feminista e suas críticas sobre as características necessárias aos sujeitos da ação política.

Segundo Amana Mattos, a teoria liberal produz também uma teoria do sujeito, a qual pressupõe uma série de características que seriam necessárias aos indivíduos considerados aptos à participação política e à vida em sociedade. A autora afirma que esse sujeito “caracteriza-se por sua coerência, sua racionalidade, sua capacidade de argumentação” e, ainda, que “o sujeito do liberalismo é, via de regra, o sujeito racional, autocentrado, capaz de reflexão e bom senso”.

Tais valores são afirmados em um momento histórico em que apenas os homens, e determinados homens, tinham acesso à esfera pública. Assim, todos aqueles e aquelas que, por uma produção dessa mesma sociedade que se pretende liberal, estão em condição de servidão, dependência, ou que vivem uma vida não orientada pelas capacidades de abstração e argumentação lógica, deverão adequar-se a esse padrão de interação social e política. Do contrário, permanecerão sem voz nos jogos de saber e poder que sustentam a representação oficial da sociedade.

Diferentes autoras feministas têm feito contrapontos a essa forma abstrata e universalista de se pensar a política, visibilizando como essa concepção de sujeito liberal depende da sustentação de um trabalho de cuidado que tem sido realizado predominantemente pelas mulheres. Buscam, ainda, reconhecer os saberes produzidos a partir desse trabalho: uma racionalidade contextual, situada, que não prescinde das relações de interdependência, a qual poderia fundar bases muito mais interessantes para as sociedades e as democracias. Como afirmam Teresa Cunha e Luísa Valle, o reconhecimento dos saberes relacionados à reprodução permitiriam às sociedades assumirem que “a vida é indivisível e que a responsabilidade por ela tem que ser coletivamente compartilhada”.

Desse modo, seguindo essas perspectivas feministas, a distribuição do trabalho de cuidado na sociedade, a partilha de responsabilidades, seriam elementos essenciais na produção das democracias. Esse caminho permite ainda reconhecer que a própria produção de democratização em grupos e instituições é permeada por um processo de cuidado: cuidar das metodologias, incluir as dimensões sensíveis que são necessárias à produção de mundos comuns, entre outros aspectos.

Nesse sentido, pensar o fazer democrático como um trabalho sujo significaria: 1) reconhecer a potencialidade da racionalidade situada que se produz nos trabalhos de cuidado para a produção de modos de vida e relações democráticas; 2) admitir que, no fazer democrático, estão implicadas  essas dimensões que tendemos a desvalorizar: o corpo, o chão, o trabalho real. Eis algumas pistas para se pensar uma democracia em ação, impura e contraditória, a democracia que podemos fazer.


 

Etiane Araldi é psicóloga, doutora em Psicologia Social, professora e pesquisadora no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ).