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Reflexão
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O Senhor Presidente. Ou Mensagem de Miguel Ángel Asturias para o Brasil de Bolsonaro
ALAI - America Latina en Movimento
2021-01-27
Por Franklin Frederick

Miguel Ángel Asturias, prêmio Nobel de Literatura de 1967, desde seu pequeno e sofrido país manda sua mensagem para o Brasil de hoje.


El señor presidente

...Alumbra, lumbre de alumbre, Luzbel de piedralumbre!

Assim começa O Senhor Presidente, obra fundamental da literatura latino americana, da qual procedem ao mesmo tempo o realismo mágico e os grandes romances políticos sobre as ditaduras que causaram tanto sofrimento e destruição por todo o continente, como Eu, o Supremo do paraguaio Augusto Roa Bastos e O outono do patriarca do colombiano Gabriel Garcia Márquez.

O livro teve uma longa gestação, foi escrito entre meados dos anos 20 e início dos anos 30 do século passado por Miguel Ángel Asturias em Paris, onde se auto-exilou por mais de dez anos fugindo da ditadura de Estrada Cabrera em seu país de origem, a Guatemala. À ditadura de Estada Cabrera, que durou de 1898 até 1920, sucedeu-se a ditadura de Jorge Ubico, o que fez com que o livro só fosse publicado em 1946, no México, ano em que também se publicou no Brasil o primeiro livro de um outro escritor fundamental: Sagarana de João Guimarães Rosa. Os caminhos desses dois escritores se cruzariam em 1965, quando se realizou em Gênova o Congresso de Escritores Latino-Americanos e foi criada a Primeira Socidedade de Escritores Latino-Americanos, com Miguel Ángel Asturias e João Guimarães Rosa na sua direção. Em um intervalo durante este congresso em Gênova, Guimarão Rosa concedeu uma famosa entrevista ao crítico de literatura alemão Günter Lorenz, na qual fez um interessante comentário sobre Asturias ao responder a uma pergunta:

Guimarães Rosa: Acho que você me entendeu mal. Aparentemente está se referindo ao que aconteceu em Berlim. Acerca disto queria dizer que estou do lado de Asturias e não de (Jorge Luis) Borges. Embora não aprove tudo que Asturias disse no calor do debate, não aprovo nada do que disse Borges. As palavras de Borges revelaram uma total falta de consciência da responsabilidade, e eu estou sempre do lado daqueles que arcam com a responsabilidade e não dos que a negam.

Esta citação é muita curta, não contém muitas informações sobre o contexto, mas ainda assim me parece suficiente para indicar que Guimarães Rosa reconhecia em Asturias um escritor com quem compartilhava uma mesma posição: ambos assumiam a responsabilidade do escritor diante de sua época.

Em O Senhor Presidente, Miguel Ángel Asturias confrontou a sociedade, a política e a literatura da América Latina de seu tempo como nenhum outro havia feito até então. Para o estudioso da literatura Latino-Americana Gerald Martin, autor do influente livro Journeys through the Labyrinth: Latin American Fiction in the Twentieth Century, trata-se de um romance único na literatura Latino-Americana, o primeiro a ‘combinar sua chamada à revolução na linguagem e na literatura com uma chamada à revolução social e política e o primeiro a desmascarar o autoritarismo e o patriarcalismo ao nível da consciência, ou seja, da interiorização do totalitarismo.’

Relendo O Senhor Presidente hoje, enquanto o Brasil sucumbe à incompetência generalizada, à corrupção desenfreada e à ignorância voluntária de uma parte significativa da população, reconheço muito em comum entre nosso país e o mundo descrito por Asturias em seu romance, o de uma sociedade sofrendo sob uma ditadura militar mesquinha e violenta. E diante das ameaças do Senhor Presidente Bolsonaro de um golpe de estado e do estabelecimento definitivo de uma ditadura, o romance de Miguel Ángel Asturias se revela uma mensagem, uma advertência sobre o que ainda pode se transformar o nosso país. Porque tudo pode, sempre, piorar: o poço não tem fundo, nem limites a estupidez.

Uma personagem do romance, o General Canelas, cai em desgraça junto ao Senhor Presidente e tem que fugir da ditadura militar que ajudou a impôr. E durante a fuga pelo interior do país, confrontado pela miséria que o governo ditatorial tinha criado e que até pouco tempo atrás era invisível para ele, escondida que estava pelos privilégios de que ele desfrutava, pensa consigo mesmo:

Qual era a realidade? Não ter pensado nunca com a sua própria cabeça, ter pensado sempre com o quepe . Ser militar para manter no comando uma casta de ladrões, exploradores e traidores egoístas (...).

Quem tiver ouvidos, ouça. Quem tiver olhos, veja.

Num outro episódio do romance, uma empregada de um comandante da polícia recebe a solicitação de uma mulher humilde que apenas quer saber onde foi enterrado seu marido assassinado nos cárceres da ditadura. A empregada promete ajudar e fala com o comandante da polícia, que responde deste modo:

Não tem que dar esperanças. (...) A gente permanece nestes postos porque faz o que lhe é dito e a regra de conduta do Senhor Presidente é de não dar esperança e de pisoteá-los e espancá-los a todos porque sim.

Diante dos milhares de mortos pela pandemia do COVID 19, diante da destruição da floresta amazônica e do pantanal, como não ver nestas palavras a descriçâo exata da condura do Ministro Pazuello, do Ministro Salles e de tantos outros em cargos importantes do governo do Senhor Presidente Bolsonaro?

Quem tiver ouvidos, ouça. Quem tiver olhos, veja.

E diante da inércia de grande parte da classe política, incapaz de tomar uma atitude diante de tanto descalabro, mortes e destruição, sem nenhuma vergonha de seu próprio oportunismo, estas palavras escritas por Asturias e ditas por uma personagem do romance, parecem sair da boca de milhões de brasileiros:

Não há esperança de liberdade, meus amigos; estamos condenados a suportá-lo até que Deus queira. Os cidadãos que ansiavam pelo bem do país estão longe (...) As árvores já não dão frutos como antes. O milho já não alimenta. O sono já não descansa. A água já não refresca. O ar torna-se irrespirável. Às pragas seguem as pestes, as pestes às pragas e não tarda virá um terramoto para pôr fim a tudo isto. (...) Para onde virar os olhos em busca de liberdade?

Miguel Ángel Asturias, prêmio Nobel de Literatura de 1967, desde seu pequeno e sofrido país manda sua mensagem para o Brasil de hoje. Há que ler O Senhor Presidente. Resistir e buscar forças nas palavras encantatórias do romance. Volto ao seu começo:

Alumbra, lumbre de alumbre, Luzbel de piedralumbre, sobre la podredumbre! Alumbra, lumbre de alumbre, sobre la podredumbre, Luzbel de piedralumbre!Alumbra, alumbra, lumbre de alumbre..., alumbre...,alumbra..., alumbre de alumbre...,alumbra,alumbre...!



Conteúdo Original por ALAI - America Latina en Movimento