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Cabo Delgado: contra o desperdício das experiências 
AN Original - Alice Comenta
2021-01-15
Por Teresa Cunha

Este artigo faz parte da série Alice Comenta, da autoria da equipa do Programa de Investigação alice-Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


A cada dia que passa as notícias sobre a guerra em Cabo Delgado multiplicam-se. Também aparecem cada vez mais artigos de especialistas em relações internacionais, sociólogxs, politólogxs, historiadorxs a escrever e a apresentar análises e teorias sobre o que se está a passar na província moçambicana do norte que faz fronteira com a República da Tanzânia. Entre as várias hipóteses de explicação que vão sendo avançadas destacam-se duas grandes tendências de pensamento.

Um ataque terrorista à soberania de Moçambique ou os males vêm de fora
Uma das principais teorias baseia-se no pressuposto de que se trata predominantemente de uma agressão externa. A violência armada é o resultado da acção de terroristas islâmicos treinados, apoiados e financiados por organizações islâmicas internacionais com bases em países da região. A radicalização dos jovens de Cabo Delgado, segundo quem vê nesta, a principal razão para a emergência desta guerra, tem que ver com a presença e a influência de estrangeiros que paulatinamente foram entrando no país e que começaram a espalhar a ideia de que o islamismo praticado em Moçambique estava corrompido, que os infiéis precisam de ser punidos pelos males que trouxeram à província e que tudo isso precisava de ser purificado através de uma jihad. Com mais ou menos detalhes, com mais ou menos nuances, esta teoria de uma guerra islâmica promovida a partir de fora, aproveitando-se das dissensões e ressentimentos entre as comunidades Macondes, Mwanis, cristãs e as muçulmanas foi, até ao final de 2019, a principal explicação oferecida para compreender os ataques no norte da província. Esta teoria de uma agressão externa é a que ainda prevalece nos discursos governamentais nos dias de hoje. A soberania nacional e a reiteração do patriotismo das forças de defesa e segurança são os argumentos mais utilizados para fazer frente a esse inimigo, que de fora para dentro, pretende destruir a coesão e a paz da nação.

Olhar para fora e para dentro: à procura da paz duradoura

Contudo, desde o ano de 2020, o recrudescimento da violência, a maior sofisticação das armas utilizadas pelxs combatentes insurgentes, a mudança das suas estratégias militares e dos alvos a atingir fizeram com que a atenção sobre o que se está a passar promovesse um pensamento mais complexo e mais crítico sobre as possíveis razões, conjunturais e estruturais, para a emergência  desta guerra.

Os contributos de Liazzat Bonate  e Yussuf Adam, ambxs moçambicanxs, historiadorxs e especialistas em questões islâmicas no contexto do norte de Moçambique, foram decisivos para fazer evoluir a reflexão e desmistificar a ideia de que se trata de um conflito religioso ou étnico-religioso. Também Chapane Mutiua, moçambicano e especialista em questões identitárias, tem vindo a partilhar reflexões que procuram tornar mais complexas e mais fundamentadas as reflexões sobre a eclosão da violência armada em Cabo Delgado. Pode-se ter acesso às reflexões partilhadas por estxs colegas através das suas páginas do FB onde também são divulgadas as suas outras publicações de carácter mais académico e sistemático.

Além destes, com o projecto de investigação internacional ‘Territórios em Conflito’, liderado pelo Centro de Investigação para a Paz Gernika Gogoratuz em estreita colaboração com o Centro de Pesquisa e Observatório Social da Universidade Católica de Pemba, desde 2018 que várixs investigadorxs e activistas têm estado a estudar e a reflectir sobre esta realidade apontando várias causas estruturais para o conflito que vão muito além de um problema religioso ou da infiltração do terrorismo islâmico no país. Entre estxs estão xs moçambicanxs Isabel Casimiro, Boaventura Monjane, Valério Ussene, Alberto Ernesto, Terezinha da Silva e Alda Salomão; os bascos, Jokin Alberdi e Eduardo Bidaurratzaga; os espanhois Gonzalo Fernández y Manuel Barroso e xs portuguesxs, Vasco Coelho e Teresa Cunha. Podem-se ler as publicações, ver o documentário e a oferta educativa produzidxs no final dos 2 primeiros anos no site do projecto.


Foram publicados vários relatórios e artigos nomeadamente por investigadores moçambicanos do Observatório do Mundo Rural como João Feijó e Jerry Manquezi e do Instituto de Estudos Sociais e Económicos, como Sérgio Chichava, Salvador Forquilha, João Pereira entre outros. Outro investigador  que tem estado muito atento e produz regularmente relatórios e comentários sobre este assunto, além de partilhar um clipping de notícias nacionais e internacionais, sobre este assunto é o britânico Joseph Hanlon especialista em assuntos políticos relacionados com Moçambique e a África austral. De todo este trabalho têm resultado análises muito mais complexas que, sem terem a pretensão de serem definitivas, procuram dar conta da economia política global, da conjuntura e ainda das narrativas e conhecimentos locais de quem está a sofrer e a experimentar todo o tipo de violência e sofrimento.

Não se sabe muita coisa ainda mas já se podem elencar um conjunto de questões que devem ser tidas em conta para uma compreensão crítica da violência armada que ocorre na baía de Afungi e que já atinge vários distritos do interior da província como mostra o seguinte mapa:

 

Sabemos que pelo menos 550 mil pessoas – mais de 22% da população da província – já foram obrigadas a fugir e a refugiar-se em outros pontos de Cabo Delgado, no Niassa e em Nampula. Estima-se que cerca de 2000 pessoas já morreram devido aos ataques mas não se tem qualquer ideia de quantas pessoas já faleceram devido à fome, má-nutrição, doenças físicas e emocionais provocadas pela guerra e a deslocação forçada. De uma forma muito breve e sem se analisar cada uma delas, as principais razões para a eclosão desta guerra que circulam em toda esta literatura são essencialmente as seguintes:

  • Uma disputa pelos enormes recursos de gás da bacia de Afungi, e de madeiras e pedras preciosas abundantes no território. Esta disputa parece envolver os interesses das elites locais, de várias corporações transnacionais e da região da África austral;
  • Os interesses das redes de transporte de drogas da ásia central e do sub-continente indiano  cujas rotas atravessam tanto aquele espaço marítimo como terrestre querendo preservar a sua hegemonia neste negócio a nível local;
  • A pobreza, a iliteracia e a discriminação social e política das populações nativas da província nomeadamente xs mais jovens que por acção de um Estado negligente e centralizado se senteam afastadxs de qualquer perspectiva de para melhorar as suas vidas;
  • A história de antigos conflitos por protagonismo e liderança tanto no campo político quanto religioso;
  • A apropriação por radicais islâmicos dos sentimentos de frustração e revolta sobretudo dxs mais jovens por falta de condições de vida no presente e no futuro;

Notas finais ou o desejo incomensurável da paz
Certamente muito ainda há para compreender mas o que é mais importante neste momento é agir para encontrar os caminhos da paz. Começando por apoiar os milhares de famílias deslocadas, separadas e despojadas de tudo, incluindo da sua dignidade; os milhares de famílias que as acolhem redobrando os seus esforços para manter alguma normalidade e oferecer condições de sobrevivência a parentes e amigxs. É urgente cuidar da saúde física, emocional e espiritual destas pessoas assim como agir para transformar as razões conjunturais e estruturais que estão por detrás de tanta violência. Isso requer um diálogo profundo entre os vários sectores da sociedade moçambicana sem desprezar o que cientistas, activistas, jornalistas, e as pessoas em geral já sabem. É necessário que uma solidariedade internacionalista e anti-colonial se mostre capaz de assumir o que tem que fazer sem nunca pretender substituir aquelxs que são os verdadeirxs donxs desta terra e destas riquezas e sabem o que querem para si e para o seu país.


Teresa Cunha é doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena a publicação 'Oficina do CES', os ciclos do Gender Workshop. Coordena a Escola da Inverno 'Ecologias Feministas de Saberes' e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. É professora-adjunta da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra e investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017, foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; outras economias e economias feministas mulheres; transição pós-bélica, paz e memorias; direitos humanos das mulheres no espaço do Índico. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.