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Reflexão
Anti-Capitalismo
Anti-Heteropatriarcado
A guinada à esquerda da Nova Zelândia
Outras Palavras
2020-10-23
Por Antônio João Lima

Jacinda Ardern acaba de ser aclamada novamente Primeira-Ministra da Nova Zelândia, com crescente apoio popular. Com 98% dos votos apurados até aqui, já traz ao seu partido, Labour NZ, o maior da esquerda local, seu melhor resultado em mais de 50 anos. Analistas afirmam: “a Nova Zelândia moveu-se fortemente para a esquerda”.

No ano de 2017, Jacinda surgiu como uma novidade inesperada, sendo lançada candidata pelo Labour (Partido Trabalhista) apenas 7 semanas antes do pleito. Eleita então Primeira-Ministra, liderou a nação ao longo dos últimos anos, tendo enfrentado pelo menos 3 das maiores crises da história daquele país. E agora, acaba de ser reconfirmada para um novo mandato, tendo seu partido conquistado sozinho 49% das vagas do parlamento (crescimento de 12% em relação a 2017). Em aliança com os Verdes e o partido Maori, seu governo teria agora 75 cadeiras contra 45 da oposição. Assim, seu perfil de liderança, as ideias de seu partido (e de seus aliados), e o engajamento que provocaram em seus cidadãos (e ao redor do mundo), apontam uma luz interessante, mostrando que sim, estamos vivos e vivas, e há ainda alternativas reais ao neoliberalismo e esperança à esquerda frente ao ressurgimento da extrema-direita mundial.

Para se compreender o fenômeno que isto representa, é importante ao menos um breve resgate da história recente desta nova líder mundial. Quando Jacinda foi escolhida Premiê da Nova Zelândia pela primeira vez, o Partido Nacional (NZ National Party – maior partido da direita Neozelandesa) vinha de 3 mandatos seguidos governando o país e com todos os prognósticos de conquistar seu 4º mandato consecutivo. Em 11 de Setembro de 2017 (12 dias antes das eleições daquele ano) apareciam ainda com 47.3% da preferência do eleitorado. Hoje, o National alcançou menos de 27% deles, seu pior resultado em pelo menos 20 anos. Em 2017, eles chegaram às eleições com 59 cadeiras no parlamento, e terminam a eleição de 2020 com 24 vagas a menos.

Em verdade, na última pesquisa antes da escolha de Jacinda como candidata do Labour em 2017, Andrew Little, o então candidato trabalhista aparecia com apenas 7.1% de apoio. Mesmo com tão poucos dias para a eleição, o trabalho de base já consolidado do partido e seus aliados, a rejeição às políticas do Partido Nacional e o perfil de Jacinda fizeram com que ela, surpreendentemente, terminasse a disputa liderando um inesperado novo governo de coalizão oposicionista. Já naqueles dias, se começava a falar no surgimento da então chamada “Jacindamania” na Nova Zelândia.

Para formar aquele novo governo, Jacinda liderou um acordo entre 3 partidos então de oposição (seu partido Trabalhista, os Verdes e um partido de centro chamado NZ First), baseado em um conjunto de políticas consensuadas entre eles pós eleições, e tornadas públicas, como medida de transparência. É impossível não considerar aqui seu perfil particular nesta construção, posto que ela pessoalmente defendeu, coordenou e ajustou as arestas para construir este acordo até então inédito na história de seus partidos. A partir daí, seu governo conquistou maioria no parlamento e conseguiu implementar um conjunto de políticas que tinham como foco principal atacar aspectos de desigualdades e desequilíbrios que haviam crescido no país em anos anteriores, e preparar a nação para desafios futuros importantes, como as mudanças climáticas, além de um ajuste nas contas públicas, que lhes permitiu ampliar orçamentos em áreas sociais fundamentais e responder, como poucos no mundo, ao “tsunami” global da pandemia do novo Coronavírus.

Assim, Jacinda conseguiu liderar um governo que se manteve estável ao longo de todo mandato e foi capaz de avançar em importantes políticas de inclusão. Por exemplo, alcançando os maiores investimentos em transporte público e ciclovias da história do país, assim como o maior investimento da história na prevenção e resposta a violência doméstica e sexual; removeu a interrupção da gravidez da legislação criminal, passando a tratá-las como tema de saúde pública; estendeu a licença maternidade/paternidade de 18 para 26 meses; alterou a legislação para que pudesse ter uma cobrança de impostos mais justa sobre as empresas multinacionais; tornou a educação superior novamente gratuita para estudantes neozelandeses; retomou os investimentos em aulas noturnas e educação de jovens, adultos e comunitária; alcançou a quase todas as escolas públicas do país um fundo de até NZD 400 mil para recuperação física, a maior injeção em mais de 25 anos; ofereceu o maior crescimento da história em políticas de suporte à inclusão de pessoas com deficiências; ampliou em 50% a cota anual de refugiados no país, a maior ampliação da história de um governo, ao mesmo tempo em que fez o maior investimento da história do país em saúde mental.

Além disso, alcançou o menor índice de desemprego da história do país em 2019, elevou o salário mínimo em 20% e em 4.4% a renda média dos trabalhadores; ampliou a força policial do país, tornando-a a maior e mais diversa da história da nação; reduziu a dívida pública, alcançando um superávit sustentável e crescimento do PIB acima da média da OCDE; apresentou o maior crescimento no orçamento do Departamento de Conservação Ambiental em quase 20 anos; construiu um consenso histórico com os agricultores, implementando uma nova precificação para emissões de carbono; e lançou o projeto para a plantação de 1 bilhão de novas árvores no país, tendo plantando já quase 250 milhões delas.

Ao mesmo tempo, Jacinda tornou-se referência mundial ao liderar a Nova Zelândia frente a 3 crises inesperadas que teriam abalado qualquer nação. Primeiro, quando em 2019 o país foi surpreendido com o primeiro ataque terrorista de sua história (após a invasão colonial pelos ingleses nos séculos XVIII e XIX). Naquele março de 2019, um australiano de extrema-direita assassinou 51 pessoas de origem árabe que então viviam na Nova Zelândia, deixando outras 40 feridas. E Jacinda reagiu de forma imediata, garantindo que o nome do terrorista e o vídeo que ele gravou ao vivo no momento dos assassinatos fossem banidos de publicação; em seguida restringindo o acesso a armas no país; e, talvez o mais significativo, mostrando firmeza na resposta ao crime, mas reforçando seu foco na solidariedade às famílias e à comunidade atacada, tornando aquele um evento de ainda maior solidariedade e união dentro do país, em particular em relação à comunidade imigrante.

Poucos meses depois ocorre a erupção do vulcão Whakaari, na qual, apesar dos avisos das autoridades públicas sobre o aumento prévio das atividades vulcânicas na ilha, 21 pessoas acabaram mortas. Ali também, Jacinda agiu rapidamente, garantindo ações imediatas de segurança e prestando concreto suporte a todos os envolvidos. Apesar do pouco controle que a situação lhe permitia, a Premiê demonstrou mais uma vez uma serenidade exemplar. Entretanto, mais alguns meses se passaram, e explodia mundialmente a pandemia do novo Coronavírus.

Como já sabemos, sua resposta aqui também se tornou referência mundial. Em poucas palavras, Jacinda soube liderar novamente uma resposta rápida, eficiente, e que teve o poder de unir ainda mais a nação, ao invés de polarizá-la. Hoje, dia 17 de Outubro de 2020, enquanto países como EUA têm mais de 8.2 milhões de infectados e quase 225 mil mortos, e Brasil mais de 5.2 milhões de infectados e mais de 153 mil mortos, a Nova Zelândia perdeu apenas 25 pessoas (exatamente isso!) e teve 1.883 pessoas infectadas pela Covid-19. E que não se justifiquem os números pelo tamanho das populações apenas. Pois a Nova Zelândia tem uma população 42x menor que a Brasileira e 66x menor que a dos EUA, porém, perdeu 6 mil x menos pessoas que o Brasil e 9 mil x menos que os EUA. É indiscutível, portanto, que se trata aqui de uma questão política.

Entretanto, apesar das importantes conquistas ao longo de seu primeiro mandato, e das respostas dadas às inesperadas crises históricas surgidas, a campanha para a reeleição de Jacinda foi baseada em importantes respostas olhando para o futuro. Apenas para destacar algumas linhas, suas principais propostas se baseavam em reerguer o país após o baque da pandemia mundial com um investimento focado na chamada “economia verde” (priorizando a geração de empregos em projetos de proteção ao meio ambiente), inovação tecnológica e políticas de combate às desigualdades sociais e ao aquecimento global.

Reeleita agora, com um resultado histórico, crescendo fortemente ao mesmo tempo em que ainda mais diminuído o suporte à sua oposição, Jacinda e a Nova Zelândia acenam um novo sinal para o mundo. Mostram que a unidade das forças progressistas pode derrotar o domínio da direita. Mostram que é possível mantermos governos estáveis e com crescente apoio popular, mesmo em meio à graves crises. Mostram inclusive que novas referências são possíveis, e mesmo desejáveis, e que as mulheres representam fortemente este aporte novo que a política progressista do século XXI exige, inclusive em seu perfil de liderança. Vida longa a Jacinda e seu governo de coalizão Trabalhista/Verde/Maori, vida longa à unidade entre as forças progressistas. Que possamos aprender sempre com as lutas de todos os povos irmãos ao redor do mundo.

Publicação orginalmente publicada em Sul21



Conteúdo Original por Outras Palavras