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Moçambique, as mulheres e a pandemia - III
AN Original - Alice Comenta
2020-10-20
Por Teresa Cunha

Este artigo faz parte da série Alice Comenta da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


Face aos problemas e dificuldades que se apresentam às mulheres e raparigas em Moçambique, porque esse é o meu foco, é muito importante mostrar que elas estão não apenas atentas, mas estão a produzir conhecimentos e a tornar possível colocar em prática diversas alternativas. Além disso tomam posição pública e fazem recomendações concretas para o presente e o futuro.

Nos vários encontros e discussões foram levados a cabo nos últimos 5 meses através das plataformas digitais mais de 300 mulheres, de várias idades e proveniências participaram em diferentes webinárias promovidas pelo Fórum Mulher. Desse processo resultaram várias reflexões que estão na base da visão do mundo e da sociedade se apresenta. A lição aprendida em colectivo é que que nada pode ficar como dantes e que o cuidado com a vida tem que estar no centro das nossas utopias, horizontes, e acção política para vivermos em sociedades de paz e justiça sexual e social.

Um mundo onde a violência não pode ter lugar
No nosso mundo a violência não pode ter lugar e, por isso, a primeira coisa que precisamos fazer é reconhecer que as mulheres e meninas foram, ao longo dos séculos, as pessoas mais vitimizadas por todos os tipos de violência, em especial, em tempos de conflito, desastres, crises e pandemias. A segunda é pedir perdão publicamente, como sociedade, por todas as vezes que nos calámos ou somos, de alguma maneira, instrumentos de violência simbólica, física, sexual, económica ou emocional contra elas. A terceira, é implementar mais políticas públicas com medidas concretas e efectivas das quais destacamos: 

  • abrimos canais permanentes de diálogo entre a sociedade civil, o estado e o governo para identificação colaborativa dos problemas e das soluções a concretizar;
  • formamos e dotamos com meios adequados mais equipas para apoiar as mulheres e as meninas implementando medidas de mitigação como o afastamento imediato de mulheres e meninas dos agressores e mantemos uma rede nacional de Casas Seguras;
  • trabalhamos em conjunto com as lideranças locais, formalistas médicas/os, enfermeiras/os, educadoras/es para deslegitimar cultural e politicamente todos os actos de violência mostrando que eles são contra a nossa cultura e identidade e o bem-estar de todas e todos;

Um mundo onde a saúde precisa de ser bem cuidada porque é um bem de todas e todos
Percebemos também que é preciso inverter a ordem das prioridades nacionais e decidimos investir a maioria da nossa riqueza colectiva nas áreas sociais como educação, segurança social e saúde. Os desastres ambientais, a guerra e as pandemias têm-nos ensinado o quanto é importante prestar uma atenção especial à saúde sexual e reprodutiva das mulheres e das meninas assim como à sua saúde mental e emocional. Assim, é preciso ampliar o que já temos com as seguintes medidas:  

  • criar uma política pública de serviços de planeamento familiar, saúde sexual e reprodutiva e de acompanhamento psicológico à distância e colocar à disposição nas unidades sanitárias o acesso a contraceptivos de longa duração porque cuidar da saúde das mulheres e meninas é cuidar de toda a sociedade; 
  • organizar equipas móveis, devidamente formadas e protegidas, para apoio domiciliário, nomeadamente a grávidas, lactantes e vítimas de violência sexual;

Um mundo onde os trabalhos das mulheres são reconhecidos, valorizados e garantem-lhes direitos
Reconhecemos que a economia do cuidado, levada a cabo por mulheres e raparigas de todas as idades na sociedade é a maior e a mais resiliente de todas as economias.  Alimentar, limpar, proteger, ensinar, produzir e processar a comida, apoiar emocionalmente as/os familiares, ensinar as crianças tudo o que precisam saber para crescerem felizes e com saúde, machambar, são alguns dos trabalhos que fazem parte da vida de quase todas as mulheres do mundo. Estes trabalhos, repetidos todos os dias com esforço e valentia, são necessários para que a vida aconteça e valha a pena ser vivida. Além destes, as mulheres fazem comércios, têm empregos, costuram, pescam, são operárias ou vendedeiras. Se as mulheres parassem de trabalhar, dentro e fora de casa, o mundo pararia. Por isso, neste novo mundo que estamos a construir são muito importantes as seguintes medidas: 

  • valorizar e apoiar os circuitos curtos de produção e comercialização de alimentos e outros bens essenciais com políticas de protecção fiscal e criação de infraestruturas de transporte e venda;
  • estabelecer regras de protecção do emprego e atribuir benefícios fiscais às empresas que mantêm os empregos e cumprem com todos os direitos trabalhistas;
  • estabelecer um Rendimento Mínimo Universal atribuído nomeadamente às mulheres chefes de família, para garantir o direito a uma vida digna;

Um mundo onde a cidadania de todas e todos é um exercício de partilha de autoridade e poder
Constatámos que esta pandemia, como outras crises e desastres, atinge de maneira diferente mulheres e homens. Em muitos casos, o impacto na vida das mulheres não é apenas desigual, mas é mais violento, atingindo-as de forma desproporcional assim como a todas as pessoas que dependem delas. Por isso, é absolutamente indispensável que elas estejam presentes desde o momento em que se começa a pensar sobre o que há a fazer, até ao momento de avaliar o que já se fez e se decidir o que se vai fazer a seguir. Neste novo mundo a partilha da autoridade e do poder é equitativa e decidimos pelas seguintes políticas:

  • implementar a paridade total (50%/50%) entre mulheres e homens em todos os processos de análise, compreensão dos problemas e na tomada de decisões relativas ao estado de emergência como também nos processos subsequentes de recuperação da economia, da normalização da vida cívica, política e cultural do país.
  • estabelecer que a paridade só é substantiva quando são envolvidas mulheres provenientes de várias gerações, dos vários sectores da sociedade, de todas as regiões, falantes de várias línguas e com diferentes tipos de competências. O mesmo deve ser aplicado ao conjunto de homens intervenientes nos processos de decisão;
  • apoiar e garantir a liberdade e a independência dos meios de comunicação social e proteger os direitos de todas/os as/os cidadãs/ãos de informar e ser informada/o;
  • fazer uma fiscalização permanente e democrática da acção das forças de segurança, policiais e militares, junto das/os cidadãs/ãos, em especial das mulheres e meninas;
  • fazer a fiscalização dos preços praticados nos mercados formais e informais dos bens essenciais à vida e criar mecanismos legais de penalização das empresas, comerciantes e outros agentes económicos que provoquem, artificialmente, a escassez com vista à especulação dos preços;

Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde e educação
Estamos seguras que é imprescindível iniciar um processo de reflexão democrática e paritária, sobre o modelo de desenvolvimento de modo a permitir, no futuro, a paz, justiça social baseada na justiça de sexual e cognitiva, na soberania alimentar, na conservação da biodiversidade, no uso dos recursos naturais para benefício de todas e todos e o combate às alterações climáticas. Para tal é preciso:

  • criar comissões paritárias para um amplo diálogo com vista à refundação democrática da nação para atingir um desenvolvimento justo para todas e todos, em harmonia com o ambiente e conseguir uma paz efectiva e duradoura. 

Teresa Cunha é doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena a publicação 'Oficina do CES', os ciclos do Gender Workshop. Coordena a Escola da Inverno 'Ecologias Feministas de Saberes' e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. É professora-adjunta da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra e investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017, foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; outras economias e economias feministas mulheres; transição pós-bélica, paz e memorias; direitos humanos das mulheres no espaço do Índico. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.