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Reflexão
Original
Anti-Heteropatriarcado
O vídeo que chocou Moçambique
AN Original
2020-09-25
Por Maria José Arthur

Num ambiente tenso em que prosseguem acções armadas no centro do país e um movimento insurgente cada vez mais activo no norte, e que já fez milhares de refugiados, começou a circular nas redes sociais, por volta do dia 14 de Setembro, um vídeo que mostra uma mulher nua a ser torturada e depois executada por homens fardados como as forças de defesa e segurança (FDS) nacionais.

Este vídeo vem corroborar os poucos testemunhos que conseguem romper a barreira informativa que o governo estabeleceu em torno desta zona de guerra e levantam suspeitas de raptos de jornalistas e de cidadãs/aos civis, bem como torturas, protagonizados pelas FDS e pelos insurgentes.

Pela crueza do vídeo, gravado pelos assassinos, a sociedade manifestou o seu horror e repúdio de várias maneiras, e obrigou o governo a pronunciar-se. Num primeiro momento foi emitido um posicionamento a condenar essas acções, mas posteriormente um porta-voz do governo vem apresentar a hipótese de o vídeo ter sido gravado por insurgentes que usavam o fardamento do exército.

Neste momento a sociedade civil e várias personalidades exigem uma investigação independente sobre o assassinato da mulher (ainda sem nome) e medidas imediatas para garantir s segurança das populações e sobretudo de mulheres e crianças em zonas de guerra.

O tempo da revolta
Há um antes e um depois. Um antes da morte gratuita e humilhante e um depois, quando nós assistimos em directo aos últimos momentos de sofrimento de uma mulher sozinha, desesperada e desesperançada, rodeada por predadores, de quem se calhar já só esperava a bala que pusesse fim à sua agonia. E com ela sentimos a dor no corpo, nos seios caídos, o peso do medo no peito e os olhos que já nada viam. E com ela sentimos a dor dos tiros que a jogaram no chão e a aniquilaram fisicamente, depois de ter sido já completamente destruída.

E por mais vividas e experientes que nos sintamos, com essa morte foi assassinada também a inocência que apesar de tudo ainda tínhamos, porque não poderíamos acreditar que a vida de uma mulher – afinal uma vida humana, embora alguns continuem a crer no contrário – pudesse ser destruída dessa maneira. Cada paulada que ela recebeu cavou mais fundo a nossa desilusão e cada riso triunfante aumentou o nosso ódio e o nosso nojo.

Não podemos impedir o sentimento de que depois de nos irem tirando direitos paulatinamente, agora roubaram-nos de vez a pátria, que já não nos atrevemos a sentir como nossa, das mulheres. São violações que ficam impunes ou nem sequer chegam à luz do dia, são leis que se ignoram a favor dos privilégios e preconceitos masculinos, são crianças de vida desfeita, é uma justiça comprada, ao serviço de quem paga e ainda tem Matalane. Matalane que está lá assim mesmo, há muitos anos, e que agora que se denunciou se minimiza: “Não são quinze grávidas, são só quatro”. E esse só doeu: só quatro vidas destruídas. Também no vídeo, foi só assassinada uma mulher!

E perante o horror mais absoluto e o inenarrável, não adiantam comunicados a condenar. Condena-se a perda da nossa humanidade? Condenam-se os predadores? E depois?

Escrevo este texto sentindo-me só e acuada. Sentindo-me órfã dos meus direitos. Sem saber se amanhã eu, a minha irmã, a minha amiga, a minha colega ou a minha filha estaremos em maior risco nesta sociedade onde os predadores andam impunes à luz dia, filmam as suas façanhas, riem-se sobre as vidas destruídas e ainda fazem bravatas. Nesta sociedade onde os predadores estão nas escolas, nos serviços e até no Parlamento, e onde a vida das mulheres, raparigas e meninas vale muito pouco.

Hoje não trago propostas, não trago esperança. Não consigo. Mas esta minha raiva, com a tua revolta e a nossa determinação, tem que trazer algo de bom.

Para todas as mulheres corajosas de Moçambique, um grande abraço.
Maria José Arthur


Maria José S. Ribeiro Arthur é feminista, antropóloga e activista social. Foi docente na Universidade Eduardo Mondlane, mas desde 2002 trabalha na WLSA a tempo inteiro, da qual é membro fundador. As suas áreas de intervenção são Violência de género e Direitos Sexuais e Reprodutivos