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O barco da ciência na turbulência da crise
AN Original - Alice Comenta
2020-09-22
Por João Arriscado Nunes

Este artigo faz parte da série Alice Comenta da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


Numa imagem que foi muitas vezes evocada para justificar as posições anitifundacionalistas sobre a ciência, Otto Neurath comparou os cientistas a “marinheiros que têm de reconstruir o seu barco no mar alto, sem nunca poderem desmantelá-lo numa doca seca e reconstruí-lo a partir dos melhores componentes”. Apesar da frequente identificação de Neurath com o Círculo de Viena e com o positivismo lógico, é relevante, aqui, notar que a sua atribulada trajetória como filósofo, sociólogo, economista, militante político e participante em movimentos como a Bauhaus coincidiu com um período de permanente turbulência, entre o início da Primeira Grande Guerra e o final da Segunda Guerra Mundial. É conhecido o seu importante papel na efémera República da Baviera, em 1919, e no governo municipal socialista de Viena, enquanto proponente de uma reorganização económica baseada no planeamento – e que lhe valeu, para além da prisão e perseguição política pelas forças contra-revolucionárias da época, ser um dos primeiros alvos da crítica de Friedrich von Hayek, que viria depois a tornar-se parte da fundamentação epistemológica do neoliberalismo.

A imagem da ciência como um barco navegando em alto mar e permanentemente reconstruído pelos seus tripulantes reutilizando os materiais e recursos já existentes a bordo terá sido certamente influenciada por essa existência em que a exceção parecia ter-se tornado uma nova normalidade. No mar turbulento e revolto de uma época em que nenhum porto seguro parecia estar à vista, a esperança nas respostas da ciência era temperada pelo reconhecimento da contingência e da incerteza à espreita nesse alto mar sem abrigo à vista. Mas essa contingência decorria também da própria dependência da sobrevivência do barco da ciência da organização da vida colectiva dos seus tripulantes, da divisão do trabalho, da sociabilidade, dos conflitos, das relações de poder e das formas de decisão coletiva que marcavam a sua jornada, perante as limitações de matérias disponíveis para o trabalho de permanente reconstrução do barco. Esta, por sua vez, seria condicionada pela concepção, partilhada pelos tripulantes, em termos de forma, organização e função, do que tornava a embarcação em reconstrução reconhecível como o “mesmo” barco apesar das reparações, renovações, supressões, acrescentos e, eventualmente, inovações.

Uma limitação flagrante dessa imagem é a da referência sumária ao mar, que parece surgir apenas como condicionamento externo de um processo que depende, sobretudo, da ação de quem está no barco. No alto mar, para além da ausência de um porto no horizonte, não há ondulação, ventos, correntes, tempestades, avistamentos imprevistos de terra, criaturas marinhas. A turbulência que faz parte da própria existência dos mares em que o barco procura navegar parece poder ser suspensa, enquanto procede o trabalho de reconstrução. Se os viajantes não olharem para o que os rodeia para além dos limites materiais do barco e dos fenómenos que são identificados como incidindo directamente sobre a estabilidade, a mobilidade e as próprias condições de sobrevivência deste, a possibilidade de sucumbirem ou de serem afetados de modo indesejado e irreversível por forças ou eventos ignorados ou imprevistos cresce significativamente.

Uma outra ausência flagrante é a de embarcações, com outros seres humanos que navegam, a partir de modelos diferentes de objectos flutuantes, concebidos para outros tipos de viagens, com as suas invenções de materiais, de modos de propulsão, de saberes e práticas da navegação, de ação colectiva e de divisão de tarefas, das suas relações com ondas, ventos ou tempestades. A jornada em alto mar do barco da ciência não parece incluir os encontros, os ensaios de tradução intercultural, os diálogos, as trocas, as aprendizagens mútuas, mas também os confrontos e conflitos ou o evitamento mútuo que esses encontros tornam possíveis. A viagem do barco da ciência pode, assim, tornar-se um imenso exercício de desperdício de reconhecimento da imensa riqueza do mundo, das experiências e dos conhecimentos que que fazem essas riqueza. E esse desperdício pode fazer a diferença entre a sobrevivência e o naufrágio.   

A imagem do barco de Neurath pode, assim, ser revisitada e recriada como uma parábola para entender as encruzilhadas da ciência moderna nesse momento de confluência e dinâmica sindémica – de intersecção e potenciamento  mútuo - de crises que marcam o tempo presente, tendo como manifestação mais dramática a pandemia de Covid19. Naquele que, seguindo Boaventura de Sousa Santos, aparece como o verdadeiro momento fundador do século XXI, a ciência e a sua autoridade enquanto modo de conhecimento capaz de estabelecer a distinção entre o verdadeiro e o falso e de produzir conhecimento suscetível de ser mobilizado para transformar o mundo no sentido do progresso e do bem comum , encontra-se sob o assalto de forças que negam essa autoridade, assim como a dos saberes periciais e especializados sancionados pelo Estado e que este invoca como legitimação da suas políticas. Em países como os Estados Unidos ou o Brasil, cientistas e peritos são desautorizados ou silenciados por governos de extrema-direita, acusados de alinhamento com os seus adversários e tratados como inimigos, e o conhecimento científico é deslegitimado ou suprimido. A resposta a esta situação por parte dos cientistas e das instituições científicas e de regulação que se apoiam no conhecimento científico tem sido a de se colocar numa posição que apela à defesa incondicional da ciência se torna um imperativo de cidadania e uma obrigação de todos os democratas que se opõem aos obscurantismos e negacionismos que denunciam como conspirações o aquecimento global, a crise ecológica ou a gravidade da pandemia.

Esta estratégia, contudo, é vulnerabilizada pelas próprias limitações e incertezas que marcam a produção de conhecimento, em particular do conhecimento científico, em situações que associam a incerteza à urgência das respostas. Não estamos, como sugere a parábola do barco, condenados a ter de optar entre a adesão incondicional a uma ciência que, nos próprios termos em que se define, lida com a incerteza de uma forma que se opõe a uma adesão fiduciária aos seus postulados e às suas promessas, e o mergulho no inferno da desinformação, da produção deliberada de ignorância e das fake news.

O conhecimento científico é uma das formas de conhecimento existentes no mundo, e mais do que entrincheirar-se numa defesa da sua autoridade ao navegar nas águas turbulentas e desconhecidas ou mal conhecidas da crise, ela pode encontrar os seus aliados naqueles que se opõem à ofensiva das forças que procuram “aplanar” o mundo, as experiências de vida e os saberes que o constituem. Quando a ciência procura conhecer em tempos de incerteza e de emergência, na urgência de responder a uma confluência de crises que ameaçam a própria sobrevivência do barco da ciência, pensar a coexistência e relacionamento mútuo da diversidade existente dos saberes e experiências como o caminho para a emergência de ecologias de saberes permite abrir caminhos que admitem as limitações, a falibilidade, mas também as capacidades de uma ciência que pode aprender a conhecer com as outras formas de experiência e de conhecimento, num exercício continuado de tradução intercultural e de relação colaborativa e não-extrativista. 


João Arriscado Nunes é Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, co-coordenador do Programa de Doutoramento "Governação, Conhecimento e Inovação" e Investigador do CES. Foi Pesquisador Visitante na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no Rio de Janeiro. Os seus interesses de investigação centram-se nas áreas dos estudos de ciência e de tecnologia (em particular, da investigação biomédica, ciências da vida e da saúde pública, da relação entre ciência e outros modos de conhecimento), da sociologia política (democracia, cidadania e participação pública, nomeadamente em domínios como ambiente e saúde) e teoria social e cultural (com ênfase no debate sobre as "duas culturas"). Mais recentemente, coordenou os projectos de investigação "Avaliação do estado do conhecimento público sobre saúde e informação médica em Portugal", no âmbito do Programa Harvard Medical School - Portugal e "BIOSENSE". Coordenou e participou em vários projectos nacionais e internacionais. Co-organizador dos livros Enteados de Galileu: A Semiperiferia no Sistema Mundial da Ciência (Porto: Afrontamento, 2001); Reinventing Democracy: Grassroots Movements in Portugal (London: Frank Cass, 2005) e Objectos Impuros: Experiências em Estudos Sobre a Ciência (Porto: Afrontamento, 2008) e autor de publicações diversas.