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Moçambique, as mulheres e a pandemia – II
AN Original - Alice Comenta
2020-07-21
Por Teresa Cunha

A escala global do fenômeno da infecção pelo novo Coronavírus, a rapidez da sua disseminação e a sua letalidade são, para além da tragédia, uma oportunidade para pensar colectivamente sobre as possibilidades que temos diante de nós para que nada fique como dantes. Estamos convencidas de que o estado das coisas a que chegamos ‘antes da pandemia’ é a razão profunda do desastre planetário que estamos a viver. Para isso precisamos perceber melhor os impactos que a pandemia está a ter na vida das pessoas, em especial na vida das mulheres.

As regras de confinamento que implicam restrições às actividades económicas e da mobilidade desdobram-se em vários impactos com uma especial incidência na vida e nos corpos das mulheres. É preciso ter consciência que as mulheres não param de menstruar, de engravidar e de enfrentar a escassez e a crescente violência dentro e fora das suas casas. Às mulheres continuam a caberem as tarefas de cuidar das crianças, de procurar medicamentos e comida nas machambas. As mulheres e as meninas continuam a ser as pessoas mais susceptíveis aos abusos e à má-nutrição porque as crenças e as práticas culturais não se modificaram apesar da pandemia. As mulheres continuam a tentar atravessar as fronteiras para levar por diante os seus comércios e modos de vida. Sabemos também que todas as dificuldades se agravam em contextos de emergência social.

Os impactos da pandemia na vida e na saúde das mulheres e raparigas moçambicanas são vários e profundos. Muitas delas têm-se reunido para pensar, reflectir e partilhar conhecimentos, procurar alternativas e contrariar o isolamento a que estão a ser obrigadas. A análise que se segue é o resultado de muitas conversas e de muitos testemunhos mediados pelo Fórum Mulher através das webinárias que tem promovido, semanalmente, ao longo destes últimos 4 meses. Nestas rodas de conversa participaram mulheres de muitas associações e instituições moçambicanas tais como: AMMCJ, AMOG, AMUDHF – Associação de Mulheres para a Promoção de Direitos Humanos e Combate às Fístulas, AMUEDO, Ca-Paz, COMUTRA, Direcção Nacional da Assistência Médica – MISAU, FOFEN Niassa, Fórum Mulher, Gabinete de Atendimento à Família e Menores Vítimas de Violência, Hixikanwe, KUTENGA, Marcha das Margaridas, MULEIDE, Mulheres no Comércio Transfronteiriço, NAFEZA, N’WETI, Pathfinder, Rede de Direitos Sexuais e Reprodutivos, Rede HOPEM, Universidade Unilúrio, UPC – Cabo Delgado, UPC – Nampula e ainda várias artistas da área da música, teatro e cinema. Participámos nestes diálogos algumas activistas-intelectuais do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – Portugal, a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e o Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil.

Os 13 IMPACTOS principais na vida das mulheres e raparigas em várias esferas da vida:

VIOLÊNCIA

1- O aumento da violência tanto em contexto doméstico como no espaço do trabalho, nomeadamente no exercício do trabalho sexual e doméstico;
2- O aumento de roubos, ataques sexuais devidos à mobilidade das mulheres quando se deslocam para irem às suas machambas, fazer pequenos negócios, compras ou prestação de auxílio;
3- O aumento das violações sexuais perpetradas no âmbito da família e das gravidezes indesejadas

SAÚDE

4- O aumento das infecções por HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis por falta de protecção na vida sexual, aumento da prostituição para obtenção de renda ou recursos, retorno de familiares emigrados infectadxs;
5- O aumento dos riscos de infecção COVID 19 por falta de protecção adequada no trabalho, especialmente as profissionais de saúde, da alimentação e trabalhadoras domésticas;
6- Aumento de doenças do foro mental provocado pelo isolamento e o medo: depressão, ansiedade, falta de auto-estima, ataques de pânico;
7- O aumento da má-nutrição por escassez de alimentos e pelas regras culturais que deixam as mulheres e meninas para o fim no acesso aos alimentos e que piora de forma trágica em caso de calamidade pública;
8- O aumento da mortalidade materna e materno-infantil pela falta de acesso a cuidados adequados de saúde;

TRABALHO E RENDIMENTO

9- O aumento da sobrecarga do trabalho não-pago no contexto da família e da comunidade e o reforço da divisão sexual do trabalho devido à ausência de infra-estruturas públicas de apoio (escolas, creches e outras); além disso o confinamento no domicílio, sobretudo nas cidades e vilas, inviabiliza o apoio familiar ou de vizinhança;
10- O aumento do stress e do cansaço pela obrigação de levar a cabo várias tarefas ao mesmo tempo – multitasking – como o trabalho profissional a partir de casa e todas as tarefas do cuidado no âmbito familiar e comunitário;
11- O aumento da pobreza por perda do emprego, o aumento exponencial dos preços de bens essenciais, a restrição drástica das actividades económicas levadas a cabo pelas mulheres e a ausência de medidas de segurança social proporcionadas pelo Estado;

CIDADANIA BEM-ESTAR E PODER

12- O aumento do abuso de poder sobre os corpos e a vida das mulheres por parte das forças de segurança, policiais e militares;
13- Ausência das mulheres e das suas perspectivas e necessidades, sobretudo das mais atingidas, nas análises dos problemas da nação e na formulação de políticas e tomada de decisões tanto para o período de emergência quanto na fase de recuperação social e económica subsequente de pós-emergência.

Para terminar quero afirmar que esta pandemia, entre outras coisas, revela a trágica profundidade das desigualdades no mundo e, especialmente, a permanência das vulnerabilidades, das discriminações e das violências especialmente impostas às mulheres de todas as idades e de todos os cantos do planeta. Fica ainda, é claro, que nem todas as mulheres e as raparigas sofrem com a mesma intensidade, nem enfrentam em igualdade de condições as consequências da pandemia. Porém, é bom não esquecer que a experiência milenar das mulheres nos tem ensinado que, não importa a crise, a calamidade ou a tragédia, elas são sempre as mais atingidas, as menos protegidas e as que menos são ouvidas em todas as esferas da vida. Por isso, parece-nos fundamental levar a cabo uma reflexão feminista sobre a economia política onde radica a experiência da pandemia para, em seguida, a sabermos enfrentar com maior lucidez.

No próximo texto que dedicarei a pensar sobre a pandemia, Moçambique e as mulheres, além de explicitar as recomendações e exigências que as moçambicanas estão a levar por diante na sua sociedade, destacarei, a partir das suas reivindicações, algumas reflexões feministas sobre o carácter antropogénico e androcêntrico que está no âmago desta realidade.