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Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
“As dores do Norte não movem moinhos”
Reflexões sobre colonialidade em tempos de pandemia.
AN Original
2020-05-16
Por Flávia do Amaral Vieira, Bianca Porto Ferreira

Nas últimas semanas, em meio ao enfrentamento da pandemia do coronavírus, se destacaram na imprensa brasileira notícias de Manaus, capital do Amazonas, que, em colapso funerário, passou a utilizar carros frigoríficos para armazenar corpos de pessoas mortas pela Covid-19, e agora enfrenta também o fim do estoque de caixões.

Paralelamente, reportagens anunciam que Belém, capital do Pará, poderia ultrapassar Manaus em número de mortos e de infectados, principalmente diante de indícios de subnotificação e de um sistema de saúde em colapso. Informações relatavam que os profissionais de saúde estariam sobrecarregados, sofrendo com a falta de equipamentos de proteção e adoecendo massivamente. O déficit da quantidade adequada de leitos e de profissionais de saúde não foi suficiente para evitar que a chegada de médicos cubanos, celebrada pelo Governo do Estado, fosse recebida com críticas e repúdio pelo CRM-PA.

Nesse cenário, vários setores da sociedade pressionavam pela decretação de lockdown na região, por ser uma política mais dura de distanciamento social, que pode até prever sanções para casos de circulação não essencial. A Região Metropolitana de São Luís foi o primeiro local do Brasil a adotar a medida. Em 05 de maio, o Governo do Estado do Pará também decretou lockdown em dez cidades do Estado em controverso decreto que considerou trabalho doméstico como serviço essencial, evidenciando o legado escravocrata ainda presente. Posteriormente, o Estado retrocedeu, restringindo a previsão.

Para quem conhece a região Norte, os problemas de infraestrutura são notórios. Déficits históricos no saneamento básico, rede de esgoto, na quantidade de unidades de saúde, além de ser a região com maior concentração de pessoas por unidade domiciliar; e com menor número de médicos por 100 mil habitantes no país; são fatores que contribuem para que a região se torne o epicentro do coronavírus no Brasil. A despeito dos esforços da imprensa e da maior parte das instituições estatais, a adesão às principais recomendações das autoridades de saúde não está ao alcance de todos.

Recentemente, foi publicado um modelo matemático da dinâmica da epidemia, feito especificamente para a Região Metropolitana de Belém, no qual inseriram as características socioeconômicas de países com elevada desigualdade social. Mesmo para a estimativa mais otimista, prevendo-se uma redução do contágio em 80%, os pesquisadores concluíram que seriam necessários 1200 leitos de UTI para atender a demanda hospitalar da Covid-19. De acordo com dados do Simula Covid, em 07 de maio, a Região Metropolitana possuía 894 leitos destinados a pacientes com coronavírus. Ou seja, não há leitos suficientes para as pessoas que ficarão doentes nas próximas semanas.

Em geral, ao Norte, pouco destaque se dá no noticiário, com exceção de programas de conteúdo gastronômico/turístico, que não raro tratam a Amazônia com exotismo, fetichizando-a; dos casos de violência no campo; e das periódicas crises do sistema penitenciário. O reduzido espaço contribui para o silenciamento dessas dores e ao apagamento de histórias de vida engendradas nesse contexto, questão cujas raízes são coloniais. Até hoje a narrativa que ocupa o imaginário sobre o Norte é atravessada pela ideia de floresta desocupada, terreno livre para ambições desenvolvimentistas do agronegócio, de produção de commodities, da energia e da mineração, e decididas desde o Centro-Sul do Brasil. Nesse sentido, a crise do coronavírus aprofunda o problema de desigualdade regional e exacerba vulnerabilidades historicamente construídas, justo na região de expansão da fronteira do capitalismo.

Esse quadro é ainda mais perceptível quando observamos que a Covid-19 chegou de avião ao Brasil; a “caixa de pandora” foi aberta pelas classes média e alta, que têm a possibilidade de acessar a malha aérea internacional. Ainda que a maioria dos casos da doença esteja concentrada nas cidades sudestinas, São Paulo e Rio de Janeiro, são capitais nortistas que têm seus sistemas de saúde colapsados.

Em Os Condenados da Terra, Frantz Fanon escreveu que o mundo colonial é dividido em dois, a zona dos colonos e a dos colonizados. Dois espaços opostos. Fanon descreve a cidade dos colonos como “uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes do lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas”, enquanto a cidade dos colonizados é “uma cidade faminta” em que “se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras”. As duras palavras do autor revelam a realidade vivenciada pelo povo brasileiro, sobretudo na região Norte que padece de colonialismos sobrepostos.

O Brasil que em outrora foi colônia, hoje como nação soberana, perpetua internamente o colonialismo que sofrera. É que mesmo o período colonial tendo findado após a independência dos Estados nacionais, a marca desse período permaneceu,  atualizada e reelaborada na forma de colonialidade. O sistema de poder capitalista que se instaurou nas Américas está intrinsecamente conectado à racialização de determinados grupos humanos, forjando uma hierarquia entre brancos e não-brancos, cuja leitura dos corpos automaticamente propicie a identificação de um determinado povo ou grupo social como vencido, inferior, que repercute numa desigual distribuição de recursos e direitos. Não à toa, quando Fanon descreve as cidades coloniais, ele pontua: a cidade do colono é a cidade de brancos, de estrangeiros e a cidade do colonizado é a cidade dos negros e dos indígenas.

Quando a pandemia se instala, há a complexificação de uma estrutura social permeada por desigualdades que vulnerabiliza determinados grupos sociais de formas profundas e específicas. Os povos indígenas da região, que historicamente lutam pela defesa de seus territórios, vêem aumentar a prática de atividades ilegais em suas terras (garimpo, exploração de madeira, grilagem) cuja reduzida fiscalização se deu pela crise sanitária. Ademais, considerando que indígenas não possuem memória imunológica, a circulação dos invasores aumentao risco de contaminação e de iminente genocídio, sendo a Covid-19 ainda mais letal nesses casos.

O Boletim Epidemiológico Especial mais recente divulgado pelo Ministério da Saúde informa que Acre, Amazonas e Amapá, estados da região Norte, aparecem com os menores percentuais de indígenas vacinados em relação a outras regiões, mesmo concentrando 37,4% da população indígena do país eu seu território. O Boletim também apresenta a distribuição das hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda em função da Covid-19 segundo marcadores de raça/cor. Tem-se que a população indígena é a que possui menor índice de hospitalização, 0,2%; a população preta, 5,9%; enquanto a população branca reúne 60,3% das hospitalizações no Brasil.

Do outro lado da linha abissal, em Belém, diariamente oito jatos aeromédicos saem da cidade em direção a São Paulo e ao exterior com pacientes infectados pela Covid-19. São empresários que fretam jatinhos para receberem cuidados em hospitais particulares, chegando a custar 120 mil reais o trecho. Tais fatos enunciam tanto o colapso dos serviços da capital, como o escancaramento do desigual acesso à saúde.

A possibilidade de oferecer medidas básicas de prevenção de doenças, como a vacinação, ou os tratamentos devidos de internação para o enfrentamento da Covid-19 parece cada vez mais remota às camadas empobrecidas e diferenciadas étnica e racialmente, como se vê, estes direitos são distribuídos a partir do arbítrio do capital e nos moldes da colonialidade.

Todos estão sob efeito das dores causadas pelo adoecimento em massa e pelas vidas ceifadas pelo coronavírus, mas o quadro de sofrimento social se revela ainda mais aprofundado àqueles que vivenciam as violências perpetradas pela própria estrutura social. As dinâmicas de poder instauradas continental, regional e localmente são responsáveis pelo mal-estar social vivenciado há tempos e, hoje, agravado pela pandemia, determinando as vidas que valem mais ou menos. As dores do Norte pouco ecoam pelo Centro-Sul, mas a história dos que vivem na porção mais alta do mapa do Brasil é de existência e resistência, agora não há de ser diferente.


Flávia do Amaral Vieira - Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará. É pesquisadora visitante da Birkbeck School of Law, com bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no exterior da CAPES. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Bianca Porto Ferreira - Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Pará. Membro do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio (UFPA/CNPq).