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“Os cantos de Maldoror”: cinema de libertação da “realizadora-romancista”
Buala
2020-05-06
Por Maria do Carmo Piçarra

No contexto da produção internacional de um cinema político, engagé, Sarah Maldoror criou e manteve - desde Monangambé a Sambizanga, sobre a luta anticolonial em Angola, passando por Des fusils pour Banta, filmado entre os guerrilheiros da Guiné-Bissau - uma prática singular. Compôs um cinema político, servido por um olhar esteticamente cuidado, e em que, através de elementos ficcionais - e não através das opções documentais e do recurso ao cinema direto então característicos do cinema militante  -, a ação não é tão central quanto a composição psicológica das personagens. Não obstante a qualidade estética dos seus filmes e a densidade psicológica das suas personagens, críticas e tentativas de controlar as opções criativas marcaram fortemente o início da obra cinematográfica daquela que é considerada a primeira realizadora africana, mas que continua sem ter reconhecimento idêntico ao dos seus pares masculinos. 


Rodagem 'Des fusils pour banta', Sarah Maldoror/ Angola, o nascimento de uma nação. Vol. II


Durante as guerras de libertação nas ex-colónias portuguesas, Sarah Maldoror (n. 1939) transpôs para cinema O fato completo de Lucas Matesso (1967) e A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961), de Luandino Vieira (n. 1935), os quais abordam a luta pela independência em Angola e a violência do sistema prisional colonial do Estado Novo.

A adaptação não foi isenta de críticas: o sentido poético evidente em Monangambé (1968) e o enfoque na participação das mulheres na luta pela libertação através do ponto de vista de Maria em Sambizanga (1972) fragilizaram, no entendimento de alguns, o lado didáctico e de defesa da militância no MPLA, que as obras deveriam ter. Estas obras foram particularmente importantes para a realizadora desenvolver um estilo que combina um olhar educado na escola russa de cinema, com implicações na qualidade estética dos seus filmes, e a densidade psicológica das suas personagens, tendo como inspiração primeira a obra literária de Luandino Vieira, o que valeu que lhe tenham chamado “realizadora-romancista” (Jacques, 1971).

Entre as duas ficções cinematográficas “angolanas”, Maldoror realizou, com Des fusils pour Banta (Armas para Banta, 1971), uma ficção documental sobre o processo de consciencialização política do povo guineense que o levou a pegar em armas, com a qual iniciou a fixação do papel das mulheres na luta. Dado o apoio financeiro do Exército Nacional Popular da Argélia1, Maldoror ter-se-á visto constrangida a apresentar a montagem final para aprovação por este. O descontentamento argelino quanto ao resultado – pretendiam um filme militante com enfoque puro e simples na luta e condições em que a mesma era travada no mato guineense – e a recusa da realizadora em prescindir da sua liberdade de expressão, redundou na apreensão das bobinas, mantendo-se a obra desaparecida.

Monangambé, o primeiro dos cantos filmados de libertação

Sarah Maldoror, nascida em Barbados, adoptou o nome artístico em homenagem a Isidore Ducasse (1846-1870), dito Conde de Lautréamont, autor d’Os cantos de Maldoror (1869). Nasceu em Condom, na França, filha de mãe francesa e de pai natural da Ilha de Maria Galante, nas Antilhas Francesas.

Em 1956, Maldoror foi uma das fundadoras do grupo Les Griots2 (Os Contadores de Histórias), a primeira companhia teatral “negra” da capital francesa, que promoveu a Negritude através de adaptações de Jean-Paul Sartre (1905-1980), Jean Genet (1910-1986) e Aimé Césaire (1913-2008), que lhe era próximo e sobre o qual fez alguns filmes.

Com uma bolsa de cinema dada pela URSS, entre 1961 e 1962 estudou no Instituto Nacional de Cinematografia da União Soviética, em Moscovo, onde teve como professores Serguei Guerassimov (1906-85) e Mark Donskoi (1901-81).

Foi com grande proximidade, e através da influência de Mário Pinto de Andrade (1928-1990), de quem foi companheira, que acompanhou os primórdios do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) – de que o poeta foi um dos fundadores em 1952 e a que presidiu entre 1960-62 – no início da luta armada em Angola.

Após uma passagem por Marrocos, Maldoror estabelece-se, com Pinto de Andrade, em Argel, onde foi assistente de Gillo Pontecorvo em A batalha de Argel (1966), Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza em 1966 e épico militante sobre a guerra de independência da Argélia.

Não tardou a iniciar-se ela própria na realização – foi a primeira cineasta a representar, na ficção, a luta de libertação da África lusófona – com a curta-metragem Monangambé (1968). De A batalha de Argel trouxe o único actor profissional, o argelino Mohamed Zinnet (1931-95). O filme foi filmado em três semanas, próximo de Argel, com actores não profissionais e é a adaptação, por Maldoror, Pinto de Andrade e Serge Michel, do conto O fato completo de Lucas Matesso (1967), de Luandino Vieira (n. 1935). Este faz parte do conjunto publicado com o título Vidas novas e terá sido escrito de 28 de Junho a 28 de Julho de 1962 no Pavilhão Prisional da PIDE em Luanda. Após ampla circulação em fotocópias, foi editado em 1968, pela primeira vez e em Paris, pelas Edições Anti-Colonial. Por proposta de Mário Pinto de Andrade, que evocou, para sustentar a mesma, a qualidade da curta-metragem que o adaptara cinematograficamente, foi publicado, em 1971, em conjunto com A vida verdadeira de Domingos Xavier, pela Présence Africaine3.

Para a transposição para o ecrã, Maldoror teve apoio financeiro – 7 mil dólares – e técnico do Departamento de Orientação e Informação da Frente de Libertação Nacional (FLN) e do Exército Nacional Popular da Argélia. O genérico final é uma montagem de fotografias, creditadas à fotógrafa e jornalista italiana Augusta Conchiglia (n. 1948).

Sobre a potência cinematográfica do conto, Maldoror assume (SCHEFER, 2015, p. 144): “é um texto verdadeiramente cinematográfico, o que também facilitou a realização do filme. Foi fácil de fazer. Havia um só décor e poucos actores”.

Monangambé representa o desconhecimento da cultura angolana pelos portugueses e o tratamento brutal a que os prisioneiros políticos eram sujeitos. Após uma sequência inicial que fixa a chegada de vários prisioneiros negros a uma prisão, mostra-se a visita de uma mulher (Elisa Pestana) ao companheiro, Lucas Matesso (Carlos Pestana), um dos detidos. Enquanto se tocam e abraçam, a mulher sussurra algo sobre um “completo” que faz com que o guarda (Zinnet) os separe e leve Matesso [através do conto sabe-se que não há provas contra ele. É o sussurro da mulher dizendo que trouxe o “fato completo”4 que é tido como indício suspeitoso]. Numa sala dominada por um retrato de Salazar, o guarda relata a situação ao director – fala-se, com suspeita, do “fato completo” mencionado –, que manda revistar os objectos trazidos. A busca revela apenas roupa e uma panela com comida. A frustração do guarda é dirigida com violência para o prisioneiro. Maldoror mostra-o na solitária, num diálogo íntimo, em que Lucas se revela frágil fisicamente mas consciente dos ardis da polícia política, aos quais resiste.

Posteriormente, sob o olhar sem vida do retrato do ditador, Matesso é interrogado. É submetido à tortura – mantido como uma estátua – até quebrar fisicamente.

Durante todo o filme, e excepto quando se escutam escassos diálogos em francês, o jazz avant-garde do Art Ensemble de Chicago – que a autora conheceu em Paris, quando o grupo tocava na rua -, improvisado sobre as imagens do filme já após a montagem, é dilacerante, potenciando a perturbação e as sensações de claustrofobia e desespero.

Da obra de Luandino é retido o diálogo íntimo, do angolano silenciado, cuja história é contada numa perspectiva alternativa e contestatária à do colonizador opressor. Maldoror traduz em imagens cinematográficas o diálogo entre a militância e a arte “imaginando” através das palavras de Luandino e usando o jazz como grito libertário.

Nos Papéis da prisão, reunidos e publicados recentemente, há fragmentos elucidativos do espírito com que Luandino escreveu O fato completo de Lucas Matesso, enquanto esteve detido na prisão da PIDE em Luanda. Também o escritor, desesperado com o confinamento, quase sucumbe ao silenciamento imposto:

“Hoje tornei a deixar-me invadir pela decisão tentadora de não escrever mais. (Ontem, no fim de fazer os desenhos, apeteceu-me rasgar tudo e foi por isso que mandei mais cedo para a K.) Não me esqueço que em 1959, rasguei todos os papéis que tinha[m] apontamentos, contos antigos, originais etc. Embora a “prisão” fosse outra, a angústia que sentia era do mesmo género, derivada de não poder fazer algo de útil e achar absolutamente inútil todas aquelas historietas.” (2015, p. 167-168)

O horror da prisão, presente nos fragmentos do diário e transposto para o conto, é imaginado cinematograficamente; ganha substância – em imagens e sons dilacerantes – no filme. A introspecção e da solidão vividas foram inscritas, por Luandino, nos papéis e transferidas para a ficção, também através de Lucas Matesso, sendo recriadas por Maldoror. A violência do encarceramento potenciada pela vivência da tortura assentada através da ficção, é coreografada, depois, pelo olhar cinematográfico de Maldoror (VIEIRA, 2015, p. 18-19):

“Continuam as torturas tendo estado a espancar um moço das 3 menos 10 até às 4 horas. Nem sei como almocei. Era berros horríveis e mesmo assim parecia que lhe tinha posto um lenço na boca, porque chegavam abafados. Estive quase a vomitar o almoço, o estômago recusa-se a digerir e cada vez me sinto pior. Terei ainda que aguentar isto muito tempo? Ficarei a mesma pessoa? Às vezes tenho medo de perder a cabeça, de enlouquecer. […]” (4.4.63)

Monangambé recebeu o prémio de melhor curta-metragem no Dinar Film Festival, em França; o International Critics’ Prize no Carthage Film Festival, na Tunísia; e foi seleccionado para o terceiro Festival Panafricain de Ougadougou (FESPACO) em 1972. Não obstante os prémios, o apreço pelo filme não terá sido unânime. Em 19 de Agosto de 1970, Mário de Andrade escreve, de Argel, a Luís de Almeida e, ao mencionar o prémio do festival de Dinard, acrescenta: “Um sucesso meritório depois de tantas dificuldades e incompreensão da parte da maralha pequeno-burguesa angolana”5. Em carta de 28 de Setembro de 1970 de Lúcio Lara a Mário de Andrade este parabeniza Sarah pelo prémio em Dinard comentando: “Não me parece que seja um elemento negativo [sublinhado do próprio] para o teu dossier, como pretendes, ou melhor, como perguntas”6. Esta observação sugere que as críticas ao filme terão despertado o receio de que tal prejudicasse Mário de Andrade no seio do MPLA.

Não obstante a falta de unanimidade, em 1971, ano em que o cinema engagé dominou a programação do Festival de Cannes, Monangambé foi seleccionado para a secção paralela, não competitiva, da Quinzena dos Realizadores, em representação de Angola que, antes da independência, via, assim, reconhecida a sua luta pela comunidade cinematográfica.

Realizadora-romancista militando através da ficção política

Em “Guinée-Bissau: le mythe et la réalité”, publicado na Jeune Afrique nº 566, de 13 de Novembro de 1971, Sarah Maldoror é citada por Paula Jacques afirmando: “O cinema africano será político, revolucionário, ou não existirá” (JACQUES, 1971, p. 54)7.  Jacques diz que, à realizadora, não se coloca a questão sobre se o cinema é arte ou indústria, se deve ser intemporal, divertimento ou universal. Humildemente, faz filmes como um militante desempenhando tarefas quotidianas.

“Com precisão, sobriedade, aborda temas pouco comerciais, subversivos: as lutas de libertação dos povos africanos ainda oprimidos pelo colonialismo. Evita, no entanto, o panfletismo didáctico cujo alcance é limitado. A sua ambição é a de tocar o maior número de pessoas. Ao modo de uma romancista, ela procede através de pequenos detalhes, em que a psicologia não está ausente e, ao fazê-lo, a ficção torna-se exemplar”8 (JACQUES, 1971, p. 54).

É a sutileza de “romancista” que Paula Jacques retém como característica de Sarah Maldoror – a escolha do nome artístico evidencia a influência da literatura – e que, traduzindo-se através de detalhes em que a psicologia é um dos elementos importantes, torna a sua ficção exemplar.

Se durante as lutas de libertação na África de língua portuguesa outro realizador que acredita numa prática militante do cinema, Joaquim Lopes Barbosa (n. 1944), recorreu também à ficção para filmar “Dina”, conto de Nós matamos o cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, no seu único filme, Deixem-me ao menos subir às palmeiras… (1972), o caso do cinema de Sarah é singular. Lopes Barbosa é movido por um projecto pessoal, pela adesão a um cinema militante. Está, porém, pela sua circunstância – de assalariado da Somar Filmes, a principal produtora de cinema existente em Moçambique durante o colonialismo português, e de operador das actualidades cinematográficas Visor, que incluíam propaganda ao regime português –, isolado do movimento do Terceiro Cinema, desintegrado do Cinema Novo brasileiro e mesmo do Cinema Novo português9. O filme não teve qualquer apoio financeiro de movimentos de libertação – é militante por opção do seu autor; não está alinhado com qualquer movimento, estético ou revolucionário10.

Admirador do cinema soviético, é a este que Lopes Barbosa vai buscar a linguagem, em termos de planos, que lhe permita fazer o que quer que seja um filme africano, para um público africano, embora ele seja, ao contrário de Sarah Maldoror, que estudou cinema em Moscovo, um cineasta autodidacta, que emergiu no meio cineclubista português. Já Sarah é companheira de um dos fundadores do MPLA, estudou cinema em Moscovo, viveu em Argel e, para fazer o cinema, recebeu apoios de movimentos de libertação. Mas se enaltece o cinema político, não deixa nunca, porém, que a militância lhe vele o olhar. Mantém um olhar livre, o que lhe mereceu a desaprovação de quem interpretava a militância a partir de uma posição marxista-leninista. Não obstante o carácter político da obra de Sarah, esta é, também, profundamente pessoal e, creio, a partir da leitura da correspondência trocada com Mário Pinto de Andrade, iluminada pela postura e espírito deste. Um pensador, caracterizado pela integridade intelectual, este travava a luta contra o colonialismo – que iniciou desde que, no final da década de 40 do século XX, veio estudar para Lisboa e, na Casa dos Estudantes do Império veio a conhecer, entre outros, Amílcar Cabral e Agostinho Neto – com uma caneta e não com uma arma. Tal mereceu-lhe reparos no partido. Como escreveu Pedro Cardoso em “Mário Pinto de Andrade: a lucidez é um sorriso triste”: “’Troçavam dele porque não ia ao maqui, mas ele […] era incapaz de matar’, defende a companheira do nacionalista, Sarah Maldoror ‘Ele não era um combatente de armas. Era um combatente de espírito’” (CARDOSO, 2010, s/p). No mesmo artigo, Cardoso cita Carlos Moore: “Ele era um homem da esquerda marxista, mas não marxista-leninista. Preocupava-se muito com a liberdade de criação e independência intelectual. Era um pensador, não era um homem de aparelho” (CARDOSO, 2010, s/p).

Militando através do cinema, e afirmando, até hoje, que o cinema deve ser político – em entrevista a Schefer, em 2015, reitera: “o cinema é um instrumento político e, enquanto tal, pode fazer mudar o estado de coisas” (SCHEFER, 2015, p. 144) –, Sarah Maldoror não admite, porém, que a sua autoridade artística seja posta em causa. Escolhe, contra a prática corrente, a ficção, como terreno para fazer cinema militante; enaltece o papel da mulher, e do seu processo de consciencialização política, nas lutas pelas independências; recusa que os financiadores do seu cinema determinem como aborda ela este movimento de libertação da África. Esse seu espírito livre, a sua firme recusa em perder o controle criativo de uma obra, determinará a perda do segundo filme, Des fusils pour Banta, filmado numa aldeia com esse nome, que a realizadora achou bonito11.

Des fusils pour Banta: um filme perdido pela liberdade

Em 1970, entre as adaptações literárias sob a condição do homem angolano e a violência experimentada na prisão colonial, baseadas na obra de Luandino Vieira, Sarah Maldoror quis reconstituir o processo de maturação que conduziu à tomada de consciência anti-colonial do povo guineense e o levou a pegar em armas. No filme que concebeu e filmou, elementos ficcionais potenciavam outros, mais documentais, da luta em curso.

Em Novembro de 1971, Paula Jacques, na entrada da entrevista à realizadora intitulada “Guinée-Bissau: le mythe et la réalité” e publicada na Jeune Afrique nº 566, sintetiza-lhe o tema: “Em Des Fusils pour Banta, a primeira cineasta de África, Sarah Maldoror, conta a luta heróica de uma guerrilheira morta pelos portugueses. Se a história é imaginária, a luta – essa – é bem real” (JACQUES, 1971, p. 54)12..

Sobre o que Maldoror classificou como “ficção política”, e que nunca chegou a ser projectada – este artigo é o único que li em que há a sugestão de que haveria uma montagem finalizada do filme. Em todas as entrevistas publicadas, a realizadora refere que as bobinas foram apreendidas pelo exército argelino antes que pudesse montar os materiais - explicou à Jeune Afrique nº 566, que todos os guerrilheiros, vietnamitas ou africanos, marchavam de pés nus, com as armas sobre a cabeça, afrontando a morte e o sofrimento. As condições da luta eram conhecidas. Achou mais pertinente reconstituir os dez anos anteriores ao início da luta armada “para mostrar as dificuldades dos guineenses em percorrer a distância que separa um negro oprimido e passivo do militante decidido a defender o seu futuro” (JACQUES, 1971, p. 54)13 

Na mesma entrevista, revelou um pouco sobre as condições em que foi feita a rodagem. Com produção e financiamento do Exército Nacional Popular da Argélia, apoiada por uma equipa de técnicos argelinos, e autorização para filmar do PAIGC, as filmagens decorreram durante três meses. Ao longo desse período, realizadora e equipa partilharam o quotidiano de uma base da guerrilha seguindo a população nas suas deslocações. Os bombardeamentos aéreos pelos portugueses duravam horas, durante as quais tinham que abrigar-se. De seguida, era necessário partir, deslocar a aldeia e reconstrui-la, com a escola e o hospital, quilómetros mais distante. Na entrevista, tal como faria no filme, Maldoror realça o papel activo das mulheres – tratando das crianças e dos doentes e procurando garantir a alimentação.

Em entrevista a Raquel Schefer, Maldoror conta que partiu para a Guiné-Bissau sem um guião: “Foi lá que comecei a construir verdadeiramente o projecto. Ao chegar, tinha um esboço, ideias para algumas sequências, um certo encadeamento entre sequências, que comecei a tratar para logo aperfeiçoar e alterar” (SCHEFER, 2015, p. 148). Após um olhar forçosamente breve, mas atento e cúmplice, sobre a mulher em Monangambé, Sarah Maldoror queria pôr agora, em primeiro plano, a guerrilheira Awa. À Jeune Afrique nº 566, revelou que levava uma história em mente, a qual pensava ser real, mas que decidiu preservar, mesmo após saber que era um mito, porque muitos acreditavam nela (JACQUES, 1971, p. 54)14.

“Neste filme, conto a história da primeira mulher guineense morta, com armas na mão, pelos portugueses. Inicialmente pensei que era um facto real. Quando cheguei ao mato para fazer o filme, Cabral, secretário-geral do PAIGC, desatou a rir ao ler o guião. Mantive a história, no entanto, dado que este mito se tornou, para muitos, uma realidade.”1516

O trabalho de preparação terá decorrido em Paris, de Janeiro e meados de Março de 1971. Um caderno de trabalho, de 1970, antecipa que, nesse período, será definido o “esqueleto do argumento”, feita a aquisição de filmes sobre Cabral – o que sugere que se perspectivava reutilizar imagens17 - , escolhida a equipa técnica e alugado o material de filmagem. Dos nomes então inscritos nos apontamentos, apenas Suzanne Lipinska, como fotógrafa, integrou a equipa composta pelo assistente de realização Brahim Reguig, o operador Abdelkader Guernoug e o engenheiro de som Brahim Guelil, que tinham lutado com a FNL tendo recebido formação durante o movimento de libertação da Argélia18. A pós-rodagem foi planeada para realizar-se de meados de Junho até Agosto, durante o que seria gravada a música, feita a montagem e mistura de som, além de legendagem em francês, espanhol e inglês. Para a Guiné-Bissau é definido um período de estadia entre fim de março até junho incluído, para repérages, escolha de actores e rodagem19.

O “esqueleto do argumento” é, nesta versão, omisso quanto à história de Awa, a guerrilheira-heroína. Dele constam notas relativas a Conacri, que alinham, em primeiro lugar, a abordagem da formação do partido [o PAIGC], seguindo-se-lhe o massacre dos trabalhadores portuários, conhecido como massacre de Pindjiguiti. Com base no que se sabe sobre a montagem final da obra, as notas de 1970 terão sido bastante alteradas.

Quando Paula Jacques notou que os guerrilheiros interpretavam o próprio papel e perguntou como se prestaram a esse jogo, Maldoror retorquiu que, para eles, não se tratava de um jogo

A reportagem “Filming with the Balanta people” de Lipinska, publicada na Africasia nº 19, de 1970, revela que foi difícil, pelo menos na ilha de Diabada, envolver a população na produção do filme e, por inerência, no processo revolucionário. Não só a protagonista se revelou caprichosa como, por exemplo, as mulheres queriam aparecer com a melhor aparência possível e não com fardas militares.

Não compreendiam a necessidade de repetir dez vezes a mesma cena, assumiu, mas estavam conscientes de que a finalidade do filme era mostrar a sua situação ao mundo. Foram eles a dar indicações sobre como deviam processar-se as sequências de acção, os ataques. O argumento foi sendo rescrito por Sarah no local quando se apercebeu que mesmo para ela, que estava sensibilizada para o que que passava, a guerra era uma noção muito abstracta. Lá, conforme confiou à Jeune Afrique, “sentiu” as coisas: a insegurança, as doenças para as quais não há medicamentos, o não poder alimentar as crianças mais do que uma vez por dia.

Questionada sobre a dificuldade de, por ser mulher, arranjar financiamento para filmar, Maldoror afirma recusar ver a questão sob esse ângulo. Para ela, o real problema é o desinteresse dos franceses pela África Austral e sobretudo por Angola ou pela Guiné. Sintoma disso, sugere, é que o filme está terminado mas a distribuição não está garantida.  Sustenta que há um modo de censura mais eficaz que a interdição – a falta de distribuição (JACQUES, 1971, p. 55).

O filme não chegou a ser projectado publicamente. O material foi considerado insuficientemente político pelo poder argelino, sendo visto como excessivo o protagonismo dado à luta protagonizada pelas mulheres. Após o regresso a Argel, as bobinas do filme foram confiscadas porque a realizadora recusou perder o controle sobre a sua versão final. Em entrevista, inédita, a Mathieu Abonnenc, explicou que quando lhe começaram a ordenar que fizesse isso ou aquilo retorquiu que não era um soldado:

”[…] estava ali para fazer um filme, e não para me integrar no exército. Tratavam-me como um soldado e não queria ser um. Sobretudo a montagem devia ser feita com eles e não queria isso porque queria preservar a minha liberdade e sabia que não seria livre. Queria fazer a montagem em Paris, e não seria livre de fazê-la com eles. Isso ficou claro. […]”20

Eles guardaram o filme mas nunca o montaram e desconheço o paradeiro das bobinas. É esse, o meu problema. Será que as destruíram? Não sei. Quanto a mim, destruíram-nas. Agora dizem-me que não, que foram vistas, mas, bem, vistas é uma coisa, mas eu quero vê-las desde então. É verdade que eles tinham laboratórios, que estavam bem guardados […].

Uma carta de Mário Pinto de Andrade enviada de Argel a Agostinho Neto, a 31 de Outubro de 1970, refere os prémios obtidos por Monangambé como um motivo de esperança quanto a um futuro promissor para Sarah não obstante as dificuldades que está a ter para montar Des fusils…: “Embora a Sarah tenha dificuldades aqui, para terminar a montagem do filme que realizou no maquis da Guiné, creio que ela pode encarar o futuro próximo com certo optimismo”. Uma outra carta, de Cabral para Pinto de Andrade, enviada de Conacri a 9 de Dezembro desse ano, refere que “Com o Turpin faço tudo para que o ‘Banta’ seja finalizado”.

A entrevista dada à Jeune Afrique, em que Sarah Maldoror fala com Paula Jacques como se tivesse terminado a montagem do filme e mantém um tom cordial quando alude ao Exército argelino terá sido uma derradeira tentativa de, à época, poder terminar o filme? É possível que sim. Entretanto, permanece desconhecido o paradeiro de Des fusils pour Banta e apenas as fotos de rodagem de Lipinska, além dos testemunhos publicados na época ou entretanto recolhidos, documentam aspectos do que poderia ter sido a obra.

Sambizanga: da casa para o mundo. A mulher ganha consciência política

Não obstante a separação física do companheiro e do desfecho da rodagem de Des fusils…, Sarah não baixa os braços.

Em 1971, no âmbito da edição conjunta, pela Présence Africaine, de O fato completo de Lucas Matesso e de A vida verdadeira de Domingos, de Luandino Vieira, submete, inspirado nesta última obra e para apreciação pelo Centre National de Cinématographie (CNC), um argumento seu, assinado também por Mário Pinto de Andrade e pelo escritor e jornalista Maurice Pons.

Em carta enviada, de Paris, a 23 de Agosto de 1971, a Pinto de Andrade anuncia que conseguiu um apoio de 30 milhões de francos antigos – o CNC aprovou, no final de Junho, um apoio selectivo que poderia atingir os 300 mil francos21 - para a rodagem do novo filme. Começará a trabalhar no filme sobre Domingos Xavier no final de Setembro, anuncia. Afirma que, sem a ajuda do companheiro, não poderá começar. Escreve-lhe: “Tenho absoluta necessidade de ti”22.

Anuncia o plano de trabalho da rodagem, no Congo Brazzaville: Dezembro será dedicado à preparação da rodagem que acontecerá em Janeiro e Fevereiro. O processo, indica-lhe, integra a reconstituição de um musseque; descobrir quem possa assegurar, localmente, a escrita dos diálogos; a selecção dos actores que serão, maioritariamente angolanos. Refere que Toto será Maria – tratar-se-ia provavelmente de Toto Bissainthe, actriz co-fundadora, com Sarah, do Les Griots, e que protagonizou La Noire de… (1966, Sembène) –, personagem que acabou por ser interpretada por Elisa Pestana, que já filmara em Monangambé. Insiste que é um trabalho que requer a participação de Mário Pinto de Andrade. Pergunta-lhe ainda se o interesse deste filme para o MPLA será compreendido pelo partido.

Sambizanga – nome de um bairro de operários em Luanda, em que situava uma prisão cujo assalto, em 1961, constituiu o primeiro acto de sublevação armada contra o regime português – foi rodado durante sete semanas em Brazzaville e foi montado, ao longo de dez semanas, em Paris. Sobre a opção de filmar no Congo, explicou que se deveu à impossibilidade de fazê-lo em Angola e a opções estéticas:

“Filmei no Congo-Brazzaville porque não era possível fazê-lo em Angola. O Congo Brazzaville era independente e, além disso, interessava-me a arquitectura da prisão de Brazzaville. O rio Congo também era impressionante. Quando faço um filme, os décors são tão importantes quanto o texto. […] Quando vi o rio Congo, soube imediatamente que era ali que iria filmar. Cinematograficamente, tanto a prisão, quanto o rio me pareciam excepcionais.” (SCHEFER, 2015, p. 149)

Filme político – embora o MPLA não o tenha financiado – mas com uma sensibilidade visual inegável, Sambizanga mostra o quotidiano em Angola sob o jugo colonial, o processo de consciencialização da necessidade de empreender a luta de libertação e os laços de solidariedade existentes. A equipa técnica era predominantemente francesa e os actores não profissionais foram recrutados sobretudo entre militantes do MPLA e do PAIGC, os quais, em função da sua origem, se exprimiam em português ou em Lingala e Lari.

Tanit d’Or do Festival de Cinema de Cartago e International Catholic Film Office Award no FESPACO em 1973, Sambizanga aprofunda a abordagem da violência da prisão colonial feita em Monangambé e recria acontecimentos que provocaram, em 1961, o despertar da consciência anticolonial. O registo intimista – potenciado pela beleza da fotografia – e o não ter feito uma obra com enfoque mais directo na luta armada valeram, contudo, mais críticas à realizadora. Se Sambizanga pretendia tornar o mundo consciente da luta que se travava em Angola, não era, porém, um “filme de retórica política”. Maldoror esclarece que não é um filme de guerra  (Ecran, 1973, p. 71:

“O filme pretende filmar uma história real que ocorreu nos anos 60 no início da resistência anti-colonial em Angola. Mostro como as pessoas tentam organizar um movimento de resistência. As pessoas culparam-me… por ter escolhido actores que, disseram, são demasiados belos. Bem, são de facto pessoas negras que são belas e é tudo… Em termos de ritmo do filme, tentei recriar o ritmo lento que caracteriza a vida africana. Nada é inventado. Tudo o que mostro no filme deriva da minha própria percepção dessa realidade. guerra.”

A longa-metragem dá enfoque à crueldade da polícia política portuguesa e ao sadismo dos seus elementos.

”[…]Fui muito criticada pelas cenas de tortura, por ter feito os actores emagrecer. As agressões e os golpes, na sua dimensão física, de contacto entre os corpos, têm muito mais efeito do que uma cena de chicotearia. Aquilo que me interessava era o sofrimento que cada novo soco representava.”

A sequência familiar, do início – uma representação belíssima de amor familiar –, é uma das sequências-chave do filme. Sublinha a harmonia familiar para contrastá-la com a prisão, sem culpa formada, de Domingos, e sequência da tortura a que este sucumbe. Entre uma e outra das sequências, Maria sofre, também ela, a tortura que, no seu caso é psicológica, do desespero e ansiedade.

Sambizanga sublinha, pois, a importância da participação das mulheres na luta pela libertação através do ponto de vista de Maria. Nos Papéis da prisão, de Luandino, esta importância fica também documentada de modo profundo e tocante e é hoje interessante notar as afinidades entre as duas sensibilidades dos autores, não obstante a diferença de géneros e dos modos de expressão artística.

Se a brutalidade do regime colonial português e as dificuldades da organização, clandestina, da luta pela independência estão em foco, o que fica em primeiro plano é o movimento de busca – e a consciencialização política – de Maria. Com um filho nos braços, quando Maria viaja do interior em busca de Domingos – trabalhador exemplar preso por alegadas razões políticas – e chega a Luanda, já depois deste ter sucumbido à tortura, faz um movimento do interior da casa, onde é mãe e mulher, para o espaço público, como cidadã plena, mulher na luta. É uma mulher investida de dignidade pela maternidade e pelo companheirismo mas, sobretudo, pela coragem de sair da casa e mergulhar no coração das trevas, numa busca que a leva à prisão, e a faz emergir, primeiro inconformada com o silêncio e depois consagrada ao/pelo desafio.

Como propõe Marissa Moorman, em Sambizanga, “negros e brancos, homens e mulheres reconfiguram as suas relações e papéis, no contexto da luta contra o colonizador”23 (2001, p. 111). A identidade de Maria, no centro do filme de Maldoror – não era central, no conto de Luandino –, vai-se recriando em relações constitutivas quando, na sua busca, conta com a solidariedade de outras mulheres e homens. Reconhecendo, não obstante, o lado engajado do filme – que termina numa festa de apoiantes do MPLA, Moorman sublinha o processo de (re-)identificação de Maria: da casa para o mundo, da família para a comunidade, da mãe-esposa para a mulher de luta. Em Reclaiming images of women in films from Africa (1996), Frank Ukadike admite que Sambizanga dá especial atenção à subjectividade feminina. Aquilo com que Marissa Moorman discorda de Ukadike – uma crítica que partilho – está inscrito em Black african cinema (UKADIKE, 1994, p. 234):

“O filme está estruturado com um ponto de vista deliberadamente feminino com o propósito de credibilizar a participação activa e o envolvimento da mulher nesta perigosa luta pela libertação. Esta ênfase, num ritmo lento, dilui o impacto da preocupação do filme com a luta armada da guerrilha. Por isso, e no que se refere ao seu efeito, alguns críticos consideraram que esta deficiência resultou numa romantização do que poderia ser uma delineação forte da emergência do movimento de libertação.”24

A percepção do filme como sendo relativo à luta armada é questionável. Não o é, de fato. A realizadora afirmou-o e o visionamento da obra confirma isso mesmo. Aqui, Ukadike dá eco aos lamentos daqueles que criticaram Maldoror por não ter feito um filme mais especificamente sobre a luta pela independência, em vez de ter dado tanta atenção a Maria, a ponto de lhe dar mais protagonismo do que a Domingos, vítima da tortura. Se Ukadike considera que tanto Domingos como Maria são símbolos de “coragem desafiadora”, Moorman (2001: p. 117) critica a sua leitura segundo a qual apenas Domingos pode simbolizar a angolanidade. Moorman sustenta que a leitura de Ukadike figura o tema da nação como masculino relegando as especificidades sobre o estatuto e actividades das mulheres à categoria de distracção dos “assuntos sérios”.


'Tournage Sambizanga', Sarah Maldoror/ Angola, o nascimento de uma nação. Vol. II
À asserção de que o foco de Sambizanga é uma “deficiência” da obra e uma “romantização” subjaz à ideia de que as mulheres não podem ser figuras centrais nas nações e nas lutas de libertação. Ao caracterizar como romantização a intriga à volta de Maria questiona a centralidade da participação da mulher nas lutas pelas independências ,obscurecendo o papel eferivo que estas tiveram e conotando os movimentos de libertação com um gênero  masculino.

Durante o processo de realização e subsequente estreia, Luandino encontrava-se preso no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Após a libertação, e em Lisboa, onde é mantido num exílio de cinco anos para que não se envolva em actividades políticas em Angola, o escritor escreveu, a 15 de Maio de 1973, uma carta a Mário Pinto de Andrade. Agradece a este a “divulgação e interpretação crítica da sua obra”, que o ajudou na reflexão sobre os problemas culturais de Angola, feita quase “a solo”. A gratidão, escreve, é também para com Sarah Maldoror. Refere que tem tomado contacto com as críticas e referências sobretudo ao Sambizanga. Escreve ainda que do pouco leu das declarações dela sobre o filme, a sua matéria e o tom em que o construiu, “é reconfortante ler aquela pequena passagem em que refere o ‘heroísmo quotidiano’ numa revolução em marcha, o levar uns quilos de arroz para os guerrilheiros da mata por quilómetros e quilómetros” (VIEIRA, 1973, s/p).

“A profunda compreensão desse fenómeno de “paciência” revolucionária é – sei-o – um pouco difícil para as esquerdas europeias que tem sempre tendência a ver nos revolucionários do dito 3º mundo essa agitação e acção intempestiva e heróica (o herói a morrer de metralhadora na mão é o único que concebem) de que só têm já a nostalgia. […] Por isso a minha grande alegria por ler as declarações de Sara, a sua coragem de ir contra o cliché que (ainda) nos querem impor da realidade que nós conhecemos.”

Distribuído na Europa e EUA, Sambizanga foi pioneiro e distinguiu-se por três motivos: por ter prenunciado a criação de uma produção de cinema especificamente africana; por ser uma obra ficcional inspirada pelos movimentos de libertação africanos; e pela opção em assumir um ponto de vista feminino. Visualmente bem conseguido – com grandes planos notáveis –, bem montado, é fragilizado por um certo didactismo político embora a opção de Maldoror de filmar num registo íntimo o distinga de um cinema militante de vocação colectivista, dominante no período em que foi realizado.

Importa determo-nos na história da sua projecção em Portugal. Juntamente com Saló, de Pasolini, foi o filme proibido após a censura aos espectáculos ter sido extinta, depois do advento da democracia em Portugal. A apresentação do filme foi  suspensa por ordem do então Primeiro-Ministro, Vasco Gonçalves.

Um texto do crítico de cinema Lauro António, intitulado “Sambizanga, finalmente” e publicado no Diário de Lisboa, em 24 de Outubro de 1974, documenta a suspensão temporária da exibição. Explica que a estreia esteve prevista para 20 de Setembro, no S. Luís, mas que Sambizanga viu “a sua exibição cancelada através de um comunicado do Ministério da Comunicação Social, proveniente directamente do Gabinete do Primeiro-Ministro, Vasco Gonçalves”. Motivo: “[…] impedir manobras da reacção e por constituir propaganda de um dos movimentos emancipalistas, ainda em guerra”25.


Sarah Maldoror/ Angola, o nascimento de uma nação. Vol. II

O produtor e então exibidor António da Cunha Telles confirmou-me a suspensão de Sambizanga mas esclareceu que o processo não ficou documentado. Recorda que o filme deveria ter estreado numa data politicamente sensível. Foi chamado, na qualidade de distribuidor do filme, ao Palácio Foz onde o então Director Geral da Cultura e Espectáculos, Vasco Pinto Leite, lhe disse que não queria imiscuir a instituição no assunto e que Cunha Telles teria que deslocar-se a S. Bento, à residência do Primeiro-Ministro. Aí, Cunha Telles reuniu com várias pessoas, entre as quais o Ministro da Defesa do I e II Governos Constitucionais, Mário Firmino Miguel. Este informou-o simplesmente que o filme não podia ser exibido nas “circunstâncias que então se viviam”, pois grandes “conflitos emocionais” dividiam a sociedade portuguesa. “Foi um pouco embaraçoso. Não se tratou de espírito de censura. Receava-se que a exibição do filme exacerbasse a situação de conflito e viesse a causar distúrbios por parte das pessoas que estavam contra a independência de Angola”.

A data crítica a que Cunha Telles se refere [de que não lembrou durante a nossa conversa] foi o 28 de Setembro de 1974 – um sábado – para o qual sectores mais conservadores da sociedade portuguesa convocaram a que foi designada “maioria silenciosa” para manifestar, em Belém, o apoio ao presidente da República, General Spínola, visando reforçar o poder político deste e contrariar “extremismos”. Otelo Saraiva de Carvalho, do Comando Operacional do Continente (COPCON), e Mário Firmino Miguel reagiram e a manifestação foi interditada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). Os partidos políticos de esquerda distribuíram entretanto comunicados apelando “à vigilância popular” contra o que chamaram “Minoria Tenebrosa”.

Quanto a Spínola, tentou reforçar o poder da Junta de Salvação Nacional e, em vão, estabelecer o estado de sítio. Derrotado, Spínola demitiu-se a 30 de Setembro sendo substituído pelo general Costa Gomes.

A 15 de Outubro, Luandino Vieira escreve a Pinto de Andrade a propósito de alguns assuntos26. Refere a proibição de Sambizanga, “a poucas horas da sua exibição, já quando a casa estava vendida” (1974: s/p). Esclarece, sem rodeios, que a razão apresentada é que “é um filme do Mov., e o MPLA ainda está em armas, por isso a sua exibição poderia dar azo a provocações de direita”. Aproveita para escrever que já o viu e que o achou “bastante bom (talvez demasiado chegado à letra do livro o que quanto a mim o espartilhou um pouco)” (1974: s/p). Afiança que farão tudo para que seja visto pelo público português. Pede informação sobre se há cópias em 16mm porque seriam necessárias para Angola. De resto, parabeniza, sem reservas, Sarah e Mário, pelo trabalho que fizeram.

Pouco tempo depois destes eventos, o distribuidor recebeu indicação de que o filme já podia ser visto. Luandino Vieira esteve na estreia e Cunha Telles tem memória que várias pessoas do MPLA ou com uma relação com Angola foram ver o filme ao Universal. Hoje a análise de Sambizanga é também fundamental no quadro da representação fílmica das memórias de cárcere, deslocando uma importante discussão, sobre um gênero de literatura, para os estudos sobre cinema e imagem.

Quanto à obra de Sarah Maldoror, cineasta “engajada” nas lutas de libertação dos povos africanos, a dimensão poética do seu cinema político, com enfoque na luta dos movimentos de libertação dos países africanos de língua portuguesa, faz extravasar a categorização do seu cinema como militante. Para isso muito contribuíram as adaptações cinematográficas das obras de Luandino Vieira, potenciadoras de uma abordagem cinematográfica singular, no contexto do cinema militante feito para apoiar e dar a conhecer as lutas pelas independências então em curso, em que o uso de elementos ficcionais é uma constante potenciando a densidade e poesia das obras. A singularidade e resiliência da realizadora custaram-lhe a perda de Des fusils pour Banta e, durante décadas, a dispersão da obra [agora a ser reunida pelas duas filhas, Henda Ducados e Annouchka de Andrade] além de menor reconhecimento do que aquele dado a outros realizadores africanos. Os filmes que realizou nos países de língua portuguesa após as independências destes tiveram, também eles, um percurso difícil, marcado pela incompreensão dos responsáveis políticos que não resistiram a tentar orientar o olhar e a domar o livre-arbítrio de uma realizadora que acreditou sempre no cinema político mas nunca capitulou quanto à perda de controle das suas obras.


Referências

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  • ANTÓNIO, Lauro. Sambizanga, finalmente. Diário de Lisboa. 24 de Outubro 1974.
  • CARDOSO, Pedro. Mário Pinto de Andrade: a lucidez é um sorriso triste. Publicado em 10 de Dezembro de 2010. Disponível em: http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/mario-pinto-de-andrade-a-lucidez-e-um-sorriso-triste.  Acesso em: 31 Ag. 2017.
  • Cinema Novo Português 1960/1974. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1985.
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  • RIBEIRO, Margarida Calafate; VECCHI, Roberto. Papéis críticos avulsos. In RIBEIRO, Margarida Calafate; SILVA, Mónica V.; VECCHI, Roberto (org.). Papéis da prisão: Apontamentos, diário, correspondência (1962-1971), de José Luandino Vieira. Lisboa: Caminho, 2015.

Documentos:

ANTT, SNI, IGAG, caixa 474.

Fundação Mário Soares. Fundo Documentos Mário Pinto de Andrade. Pastas: 10197.003.001; 04350.004.001; 04311.004.016; 04333.001.011; 04311.006.005; 04311.004.040; 04311.003.036; 04311.003.019; 04311.001.006; 04619.100.018; 04311.001.005. Consultadas em 11 de Agosto de 2017.

O texto foi originalmente publicado na revista Mulemba.


  1. Sarah Maldoror refere essa fonte de financiamento à Jeune Afrique nº 566, o que é corroborado por Suzanne Lipinska na Afriacasia nº 16. Outras fontes referem que o financiamento foi da Agência Nacional do Comércio e da Indústria Cinematográfica da Argélia.
  2. A palavra griot designa os contadores de histórias tradicionais da África Ocidental cuja função principal é entreter e educar. Os griots assumem uma posição social de destaque enquanto guardiões da tradição oral. Crê-se que o termo possa ter derivado da palavra portuguesa “criado”.
  3. O fato completo… foi publicado em Portugal apenas em 1976. A edição francesa foi uma proposta de Pinto de Andrade, feita à Présence Africaine em 19 de Julho de 1970. Na proposta explicava-se que o conto dera origem ao filme Monangambé. A tradução foi assegurada pelo próprio e por Chantal Tiberghien. Fundação Mário Soares. Fundo Mário Pinto de Andrade, Pasta: 04311.003.036.
  4. Como se explica na curta-metragem, o “fato completo” era um prato de feijão com peixe, tudo cozinhado em óleo de palma e acompanhado com banana Era comido e assim designado nos musseques de Luanda.
  5. Fundação Mário Soares. Fundo Mário Pinto de Andrade. Pasta: 04311.003.019.
  6. Fundação Mário Soares. Fundo Mário Pinto de Andrade. Pasta: 04311.001.005.
  7. Traduções da autora. No original: “Le cinéma africain sera politique, révolutionnaire, ou ne sera pas”.
  8. No original: “Avec précision, sobriété, elle s’attaque aux sujets peux commerciaux, subversifs: les luttes de libération des peuples africains encore opprimés par le colonialisme. Elle évite pourtant le pamphlet didactique dont la portée est limitée. Son ambition est de toucher le plus grand nombre. A façon d’un romancier, elle procède par petites touches, d’où la psychologie n’est pas absente et ce faisant, la fiction devient exemplaire”.
  9. Quando a Cinemateca Portuguesa organizou, em 1985, uma retrospectiva relativa ao Cinema Novo português, integrou o filme de Lopes Barbosa na mostra. No debate final, em que Lopes Barbosa esteve presente, este referiu a sua marginalidade, também por não viver em Lisboa, com consequências directas no acesso a financiamento para filmar.
  10. Agradeço a Rita Chaves a troca de impressões sobre o assunto, inspiradoras para estas considerações. Para mais informação sobre Lopes Barbosa e o seu filme, consultar Azuis Ultramarinos. Censura e propaganda colonial no cinema do Estado Novo.
  11. Agradeço a Mathieu Abonnenc, investigador e artista que tem realizado profunda pesquisa sobre Des fusils… a partilha de documentação publicada no âmbito do seu trabalho, e outra inédita, resultante de entrevista feita por si a Sarah Maldoror. Nesta, a realizadora explica: “Pourquoi Banta, parce que le mot était joli, et qu’un village s’appelait Banta, c’est tout”.
  12. No original: “Dans Des Fusils pour Banta, la première cinéaste d’Afrique, Sarah Maldoror, raconte le combat héroïque d’une maquisarde tué par les Portugais les armes à la main. Si l’histoire est imaginaire, la lutte – elle – est bien réelle”.
  13. No original “pour montrer les difficultés des Guinées à parcourir la distance qui sépare un Noir opprimé et passif du militant décidé à défendre son avenir”.
  14. No original “pour montrer les difficultés des Guinées à parcourir la distance qui sépare un Noir opprimé et passif du militant décidé à défendre son avenir”.
  15. “Je raconte, dans ce film, l’histoire de la première femme guinéenne tuée les armes à la main par les Portugais. Au départ, je croyais qu’il s’agissait d’un fait authentique. Je suis donc arrivée au maquis pour tourner le film, et Cabral, le secrétaire général du Front de Libération, a éclaté de rire en lisant le scénario. J’ai pourtant conserve l’histoire, puisque ce mythe était devenu une réalité pour beaucoup.”
  16. A guineense que se tornou lendária chamar-se-ia Canhe Na N’Tuguê. Apesar de, na entrevista a Jacques, Maldoror referir que Cabral afirmou que a história não era verdadeira mas sim uma lenda, a destacada dirigente do PAIGC, Carmen Pereira, em entrevista inédita, a 11 de Fevereiro de 2016, feita por Inês Galvão e Catarina Laranjeiro, contou a história como sendo verídica. Especificou que Canhe era responsável pelo abastecimento e recolhia arroz para levar aos guerrilheiros no mato. Segundo o relato de Carmen Pereira, Canhe “caiu numa emboscada. Ela estava grávida de sete meses, prenderam-na, torturaram – por fim, é difícil dizer – amarraram-na, puseram uma fogueira por baixo até cair a criança e ela morreu. É por isso que ela é chamada heroína porque sofreu muito antes de morrer. Mas dizia ‘o PAIGC é que vai ganhar essa guerra, eu posso morrer, mas o PAIGC é que vai ganhar essa guerra’. Por isso ela foi considerada a nossa primeira heroína”. Agradeço às investigadoras o acesso a este depoimento.
  17. Uma alínea dedicada a “Documentos” – tratar-se-ia dos filmes sobre Cabral? - especifica-lhes as origens: Cuba, Suécia, Itália, ORTF, Argélia, Gana, URSS, RDA e TV Granada, de Londres.
  18. Através da documentação cedida por Mathieu Abonnenc esclareci dúvidas surgidas devido a informações contraditórias ou diferentes em vários textos publicados. Na entrevista inédita que me cedeu, revela-se que a primeira equipa militar destacada para filmar com Maldoror fugiu, com receio dos bombardeamentos, quando ainda estava em Conacri. De regresso à Argélia, estes técnicos militares de cinema terão sido presos, segundo informação de Cabral a Maldoror.
  19. Fontes referem que a rodagem decorreu na Guiné-Equatorial porque, devido à guerra, não haveria condições para filmar na Guiné-Bissau. Porém, à Jeune Afrique, Maldoror confirma que a filmagem decorreu em difíceis condições, sob bombardeamentos da aviação portuguesa, e que o filme documenta as mudanças que uma comunidade em específico vai sendo obrigada a fazer. Foi devido a isso, aliás, que a guerra se foi materializando de outro modo para a realizadora e que o argumento foi sendo rescrito para integrar as indicações dos guerrilheiros sobre como se processava o combate. Numa reportagem assinada por Lipinska para a Africasia nº 19, de 1970, intitulada “Filming with the Balanta people”, explica-se que foi na ilha de Diabada, na República da Guiné, que, em dez dias, Sarah Maldoror filmou as sequências principais do filme, nomeadamente com a personagem Awa – cuja “actriz”, uma jovem local, revelou-se pouco capaz de representar e bastante caprichosa – que de resto foi filmado na Guiné-Bissau e na Guiné-Conacri.
  20. No original: “[…] j’étais la pour faire un film, l’armée pas question. Ils me traitaient comme un soldat, et moi je ne voulais pas l’être. Mais surtout, le montage devait se faire avec eux, et moi je ne voulais pas faire le montage avec eux, parce que je voulais ma liberté, je savais que je ne serais pas libre. Je voulais faire le montage à Paris, je n’aurais pas été pas libre avec eux, ça c’est clair. […] Ils ont gardés le film, mais ils ne l’ont jamais monté, et je ne sais pas où sont les bobines. C’est ça mon problème. Est ce qu’il les ont détruites, je ne sais pas. Pour moi, ils les ont détruits, mais bon. Maintenant on me dit non, on les as vus, mais bon vu, c’est une chose, mais moi je veux les voire de voilà et puis, bon c’est vrai qu’ils avaient des laboratoires, que c’était bien gardé”.
  21. Resposta oficial Centro Nacional de Cinematografia ao pedido de consulta prévia, referente a projecto de filme de longa metragem, intitulado Domingos Xavier, com base numa novela de Luandino Vieira. Fundação Mário Soares, Fundo Mário Pinto de Andrade, pasta 04311.004.016.
  22. .No original: “J’ai absolument besoin de toi”. Fundação Mário Soares. Fundo Mário Pinto de Andrade. Pasta: 04333.001.011.
  23. […] blacks and whites and men and women refigure their relationships and roles in the context of the struggle against the colonizer”.
  24. “The film is structured with a deliberate feminist slant aimed at giving credibility to women’s active participation and involvement in this dangerous liberation struggle. This emphasis, lengthily dealt with, dilutes the impact of the film’s concern with armed guerrilla struggle. Thus, regarding its effectiveness, some critics thought that this deficiency amounted to romanticizing what could have constituted a forceful delineation of a liberationist uprising. However, Sambizanga ultimately ratifies, with an indelible stamp, African revolutionary agitation.”
  25. Consulta ao processo do filme, proveniente do acervo da Inspecção Geral das Actividades Culturais depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não revela censura ao filme nem alude à tentativa de suspensão do mesmo (SNI, IGAG, caixa 474). Aurora Torrodão, com quem falei a este propósito, integrou a primeira Comissão de Classificação de Espectáculos após o 25 de Abril. Nega que tenha havido interferência no processo de análise e classificação do filme. Explicou-me que nos primeiros anos do funcionamento da Comissão havia um grande debate em torno dos filmes – sobretudo dos susceptíveis de causar polémica. Sustentou que lembrar-se-ia certamente se a suspensão do filme tivesse sido discutida pela Comissão, da qual faziam parte vários militares, ou caso tivesse havido pressão sobre esta.
  26. Um deles é relativo ao pagamento de direitos de autor pela Présence Africaine – e ficamos a saber que lhe são devidos não só pelas traduções das suas obras mas também pela exploração do filme.

 



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