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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
O Abandono do Estado versus o poder paralelo no controle da pandemia 
AN Original
2020-05-05
Por Marcela Uchôa

Foi ainda nos anos 70 que o sociólogo português Boaventura Sousa Santos esteve em Pasárgada. Era tempo de ditadura e o nome fictício dado a favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro em sua tese de doutoramento evitava expor as lideranças comunitárias à repressão da polícia e do Estado. Dos diálogos sobre comunitarismo, socialismo e emancipação da classe trabalhadora com as lideranças locais ficou a certeza da existência de um direito paralelo que atua onde o Estado já não responde, ou nunca respondeu.

Trabalho do artista plástico Cor Jesus Santana, colagem sobre papel

Das periferias que viviam a repressão e miséria dos anos de chumbo da ditadura militar brasileira - às minorias sociais que veem seus empregos, suas vidas e sua dignidade serem ameaçadas pela ineficácia do poder público em responder às necessidades mais básicas da população diante da pandemia COVID 19, em comum: o abandono do Estado e os fantasmas do autoritarismo e da repressão. É nesse momento que o ordenamento social comunitário se organiza para chegar àqueles que o Estado já esqueceu.

Gabinetes de crise informais alertam moradores dos riscos e buscam doações enquanto as ações governamentais não chegam. Ritmos conhecidos das comunidades cariocas como o funk e o rap agora ajudam na contenção do vírus e são instrumentos de conscientização na luta pela prevenção e proteção da comunidade: "Tá ligado no coronavírus? Deixa eu te passar a visão. Essa doença triste que afetou nosso mundão. Vamos ter consciência e fazer toda a prevenção para nossa comunidade. Lave as mãos frequentemente, com água e sabão. Evite sair de casa para não ter aglomeração..."

Faixas com mensagens preventivas, carros de som e rádios comunitárias tentam evitar o que pode ser uma catástrofe em um lugar onde a saúde pública há muito tempo não dá conta de atender a população. O desabastecimento de água em várias localidades é um problema recorrente que dificulta a manutenção da higiene recomendada pelas autoridades sanitárias e não faz esquecer que existem vidas que valem menos. Para além dos esforços é importante dizer que as redes de apoio não têm como atender sozinhas toda a demanda da fome e da precariedade.

Em meio ao caos, organizações de base disputam espaço com o poder paralelo dominado pela violência de grupos armados do tráfico e milícias. Nas palavras da teórica e ativista Marielle Franco: “O Estado cumpre o papel de agente para o mercado e não agente de cidadania. Existe negligência e abandono desses territórios de forma que grupos criminosos armados – o tráfico ou as milícias acabam por impor a sua própria ordem seja ela com a complacência, ou a indiferença do conjunto da cidade”.

Uma combinação explosiva que reside em grande medida no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer, em um autoritarismo que não só gere a vida das pessoas, mas delimita seus passos, suas escolhas e o próprio ordenamento social e político das favelas. A combinação de poderes estatais omissos (seja na esfera municipal, estadual ou federal) com uma classe trabalhadora hegemonicamente alienada nos fornece o panorama do caos endémico de uma sociedade que vive as consequências do abandono do poder público.

Na cidade do Rio de Janeiro cerca de 1 milhão de pessoas vivem em casas com um único cômodo - média de cinco pessoas por família. Nesse cenário não é tão simples dizer: fiquem em casa, quando a reclusão no combate a pandemia sequer é um direito. Em São Paulo onde moradores de rua vivem à margem da prevenção contra o COVID 19, sem água para beber, nem mesmo para lavar as mãos, cobrar cuidados básicos de higiene para população de rua é quase impossível. Trabalhadores informais e catadores de lixo reciclável vivem dias e noites de desespero causado pelo desamparo da necropolítica que - como defende o teórico político Achille Mbembe - ao negar a humanidade às pessoas mais vulneráveis as expõem a todos os tipos de violência.

A crise, então, evidencia que proteção social não é luxo, não é excesso. Se as saídas para o colapso são medidas socializantes nos agarremos a elas, não podemos sair dessa pandemia sem compreender o desastre da política neoliberal e sua incapacidade de lidar com a recessão. Passada a crise, o poder hegemónico se utilizará de todas as estratégias possíveis para tentar liquidar as medidas inclusivas propostas.

Orientado para maximizar o lucro em vez de manter a vida, o neoliberalismo mostra diariamente sua verdadeira face de economia sangrenta. “O vírus é uma maneira de o planeta se recuperar, de se livrar dos indesejados”, dizem. Assim, vários países capitalistas do sul global justificam a falta de políticas de fortalecimento e investimento em saúde pública.

Por isso, é preciso ter atenção que nos países periféricos esse discurso nada mais é que um chamado eugenista para dar cabo socialmente dos mais vulneráveis. 

Construir solidariedade entre as diferentes comunidades que são afetadas, bem como fortalecer sindicatos, organizações comunitárias não deve nos eximir de cobrar o Estado e exigir que reconheça que o trabalho de reprodução social é o pilar da existência social. Os governos precisam aprender com as comunidades e replicar em termos de políticas públicas o que as pessoas comuns estão a fazer para ajudar e apoiar umas as outras – nesse sentido, como defende a teórica feminista Tithi Bhattacharya, mais do que isolamento social, precisamos de isolamento físico e solidariedade social


 

 

Marcela Uchoa é membro do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra (IEF); está a concluir o Doutoramento em Filosofia Política na Universidade de Coimbra; é mestre em Filosofia; licenciada em Filosofia; professora de ética e Filosofia do Direito - Brasil.