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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Coronavírus: Uma reflexão sobre fronteiras, isolamento e xenofobia, na direção de um futuro pós-crise.
AN Original
2020-03-29
Por Rafael Peçanha de Moura

DO QUE FALAMOS?

O pensamento do grupo de autores organizado por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses a partir da obra Epistemologias do Sul, parece fundamental para debatermos a pandemia do Coronavírus. Nossa proposta é discutir alguns fenómenos sociais decorrentes do caso, especialmente relacionados a fechamentos de fronteiras, isolamentos de famílias e casos de xenofobia em relação ao povo asiático, buscando ainda responder à seguinte pergunta: Quais caminhos poderemos traçar após o fim da epidemia?

Na ótica de Meneses, todos os tipos de fronteiras, na globalização, reivindicam a propriedade e o direito, ligadas ao fundamentalismo econômico e a busca pelo lucro, tendo, nos últimos cinco séculos, dividido nações, a partir do Tratado de Westfalia (1648), marco histórico da discussão sobre o conceito de soberania. Nasce, assim, o “Estado-nação soberano”, baseado na “declaração do direito a estabelecer fronteiras” (p. 185).

A lógica da colonialidade, assim, se mantém mesmo após as independências. As estruturas sociais seguiram, apesar das mudanças geopolíticas, concordando com Quijano e Grosfoguel.

FRONTEIRAS E ISOLAMENTOS

Bem antes da declaração da OMS em março, Rússia, Mongólia (final de janeiro), Estados Unidos e Austrália (início de fevereiro) já adotavam o fechamento de fronteiras a viajantes que tivessem passado pela China.

Esse tipo de ação se deu não apenas entre nações, mas dentro destas, com isolamentos regionais. Em 23 de janeiro, na China, foi iniciado o isolamento da província de Hubei, onde fica a cidade de Wuhan. Em 8 de março, o governo italiano isolou a Lombardia, além de 14 províncias noutras quatro regiões. No mesmo mês, no Brasil, foi isolado um cinturão com mais de 20 cidades ao redor da capital do estado do Rio de Janeiro.

Na esteira dessas ações macro, surgem centenas de atitudes governamentais de limitações de acesso, que, embora não possuam o caráter jurídico de fechamento de fronteiras, geram, na prática, o mesmo efeito, em menor escala. É o que vemos no Brasil com a vedação do acesso a praias nos município de Arraial do Cabo e Cabo Frio, ou ainda na disputa entre o governador do Rio de Janeiro e o Presidente da República sobre o bloqueio de estradas interestaduais.

A extensão desse estabelecimento/reforço/fechamento de fronteiras alcança âmbitos ainda mais específicos, em efeito cascata, para dentro das nações, alcançando a unidade mais fundamental da sociedade – a pessoa humana. O isolamento protocolar torna, assim, a parede da casa uma fronteira física contra a proliferação do vírus. Para Ramose, essa “corporalidade é o nível decisivo das relações de poder”. A própria família, confinada, agora, em seu lar, é uma fronteira, “assim como da cidadania e da nacionalidade” (p. 140).

Ramose entende esta ótica relacionada à globalização, pois “se o direito a fundar uma família é um direito humano, então a incursão da globalização nesta esfera deve ser julgada em termos de direitos humanos”, momento da obra no qual o autor decide abordar a “incursão da globalização dentro das fronteiras da nação, da família e do matrimônio”.

Para o autor, há uma íntima ligação entre as “normas e valores formal-ideais da família burguesa” e a “colonialidade do poder”, já que o fundamentalismo econômico prefere “família baseada no matrimônio monogâmico”, tendo em vista o favorecimento da principal característica da globalização: a derrubada de fronteiras para a livre circulação do capital.

A família tradicional, assim, favorece o controle das “exigências das forças de mercado”, através da “juridificação da relação entre o progenitor e criança”, que faz com que esta célula social possa ser considerada “natural” e então subscrita à Seção 3 do Artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dessa forma, a família surge como “unidade básica” social e política, relacionada com a cidadania e a nacionalidade. “Consequentemente, a globalização está implicada na família e no Estado-nação” (p. 144).

XENOFOBIA

A mesma lógica da colonialidade, segundo Maldonado-Torres, permitiu que líderes políticos fossem chancelados não só a definir fronteiras, mas também a delimitar “eixos do mal”, grupos que indiquem ameaça à nação, “homens maus que vêm de sítios maus” (p. 372) – exatamente o que temos visto nestes tempos de pandemia.

O deputado Federal Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente da República do Brasil, causou um incidente diplomático ao apontar a China como culpada pela pandemia. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, igualmente desferiu críticas ao país diante da situação.

Com a explosão da doença, o mundo viu uma onda crescente de atos xenófobos contra asiáticos. Em 1º de março, o jornal New York Post relatou o primeiro caso do vírus na cidade. Embora no texto fosse evidenciado que o paciente infectado era uma mulher que havia voltado do Irã, a foto usada era a de um homem chinês em outro bairro da cidade.

O líder do partido republicano no congresso norte-americano, Kevin McCarthy, chamou o coronavírus de “o vírus chinês”. No Brasil, um condomínio publicou nota segregando moradores e funcionários, apresentando medidas de segurança que somente asiáticos deveriam tomar.

As estatísticas do Ministério da Saúde afirmam, porém, que a doença chegou ao Brasil vinda da Itália. Dos 52 casos confirmados até 15 de março, nenhum tira origem na China. As fronteiras físicas se reforçam e novas são criadas, da unidade jurídica territorial máxima (nação) à mínima (casa/família/pessoa).

CONCLUSÃO

Dessa maneira, nota-se que a globalização neoliberal defende a destruição de fronteiras “apenas no sentido metafórico”, como defende Ramose. Assim, esse sistema acentua isolamentos por necessidade de defesa em momentos de crise, assim como o tatu-bola brasileiro penetra em sua própria estrutura corpórea, isolando-se e individualizando-se mais ainda do que já é, como mecanismo de proteção.

O período de isolamento pode e deve despertar reflexão sobre a necessidade de se derrubarem as fronteiras físicas pós-surto, em favor de um caráter governativo propriamente universal, no qual os aspectos estruturais de segurança, tecnologia e economia sejam compartilhados de forma mais equânime entre os seres que, afinal, habitam o mesmo solo, sem fronteiras.

Passada a pandemia, é urgente acelerar o processo de reinvenção da cidadania, da democracia e da emancipação social, a fim de que, numa próxima crise, já tenhamos outra ordem, que nos permita uma preocupação menos centrípeta e mais centrífuga, concentrando menos e espalhando mais rapidamente soluções e curas, de maneira mais igualitária pelo mundo, ao invés de buscar culpados.

Para Grosfoguel, isso pode ser obtido mediante uma espécie de “organização global democrática autogerida”, que busque a “socialização do poder”, implicando na criação de “instituições globais para lá das fronteiras nacionais ou estatais”, que ocasionem propriamente uma efetiva “igualdade e justiça na produção, reprodução e distribuição dos recursos mundiais”, baseada numa “autoridade coletiva global com o fim de garantir a justiça social e a igualdade social à escala mundial” (p. 411).

O tempo de isolamento físico, ao qual devemos obedecer, pode permitir que daqui, do Sul, brotem novas epistemologias de fronteira (como disse Walter Mignolo), dispostas a rever o sistema da globalização neoliberal, sem cair no conto do fundamentalismo, mas, ao contrário, flexibilizando fronteiras no pós-crise, a fim de que, num futuro próximo, elas não precisem mais isolar aqueles a quem amamos.


Rafael Peçanha de Moura é brasileiro, historiador, especialista em Sociologia Urbana (UERJ), Mestre e Doutor em Antropologia (UFF).