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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
A Europa no tempo do Coronavírus: capitalismo, colonialismo, patriarcado -
Parte 2 - Construir comunidades de doença e cuidado.
AN Original
2020-03-21
Por Carla Panico

Construir comunidades de doença e cuidado.

Como escrevi no texto anterior, um dos temas fundamentais destes dias é o da responsabilização coletiva. É preciso ficar em casa, de facto, embora todas as contradições que foram elencadas, não só para nos salvarmos nós mesmos, mas para evitar espalhar a infeção por outras pessoas: a taxa de mortalidade do vírus, de facto, não é extremamente alta, mas é sobretudo perigosa para pessoas idosas, imunodeprimidas, doentes. Porém, o problema mais grave que se está a enfrentar nem é a perigosidade do vírus em si, mas o congestionamento total do sistema de saúde publica.

Um dado importante: nos últimos 10 anos – como consequência das medidas de austeridade -, o Estado Italiano cortou quase 4 mil milhões de euros de financiamento para o sistema de saúde pública. Mais uma vez poderíamos dizer, o pior vírus o é o capitalismo. Mas quais são as consequências sociais disto tudo?

As regiões até agora mais seriamente golpeadas pela emergência – Lombardia e Véneto, no Norte – são, paradoxalmente, as regiões com o melhor sistema de saúde: são duas das regiões mais ricas, o que faz toda a diferença considerando que o sistema de saúde pública na Itália é organizado com responsabilidade regional. Ainda assim, não há mais vagas suficientes por cuidar de todos os doentes graves.

Em primeiro lugar, todas as outras terapias que não têm a ver com o Codvi19 são adiadas – inclusive cirurgias e terapias oncológicas.
Em segundo lugar, muitos hospitais tiveram que começar a escolher que doentes com Coronavírus são prioritários, baseando-se na maior possibilidade de sobrevivência. Uma escolha impecável do ponto de vista técnico e médico, mas com quais consequências sociais de curto e médio prazo? Um dos maiores hospitais de Milão – o Niguarda – tomou a decisão de não pôr mais em terapia intensiva os doentes com mais de 60 anos. São considerados os doentes mais idosos, com menos possibilidades de sobreviver em comparação com os mais jovens. Porém, se olhamos isto de uma outra perspetiva, 60 anos é a idade dos nossos pais, dos nossos professores da escola, dos nossos colegas de trabalho. Paradoxalmente, uma lei italiana de 2011 - que se tornou um dos símbolos da violência da austeridade durante a crise económica – moveu a idade da reforma desde os 60 até os 67 anos: numa sociedade baseada na produtividade que encontra o seu próprio colapso, 60 anos são poucos para parar de trabalhar, mas são suficientes para que a tua existência seja julgada sacrificável em caso de emergência.

Quanto tempo vamos precisar, no futuro, para curar as feridas sociais e as ruturas entre gerações que a necessidade de tomar este tipo de decisões neste momento vão produzir no tecido social? Não se trata apenas de não se preocupar  com a “morte de velhinhos”, mas de muito mais: de não conseguirmos a imaginar a sociedade como um único corpo doente que necessita de ser curado.

Foi igualmente emblemático desta dificuldade a visibilização de uma outra rutura social.

O vírus  espalhou-se, como estávamos a dizer, primariamente nas regiões do Norte. No principio da epidemia tornou-se logo evidente a necessidade de evitar de infetar as outras regiões – sobretudo, como já expliquei, porque o sistema de saúde no Sul é muito mais vulnerável, e o risco seria enorme: falando sempre em responsabilidade coletiva, multiplicam-se apelos para evitar viajar desde o Norte rumo ao Sul da Itália, até que se difundiu a noticia de que o governo estava com a intenção de proibir por lei a saída das regiões do Norte.

É no ato de cruzar fronteiras, dizia o Steinbeck, que se produzem os mais horríveis exemplos de individualismo e as mais profundas solidariedades: o medo da doença, o pânico de ficar presos, fechados numa zona infecta, mais também o de ficar sozinhos, longe da família, amigos, afetos etc. produziu uma reação massiva e incontrolável: milhares de pessoas violaram a zona vermelha, forçaram as fronteiras impostas pela quarentena, violaram a lei sem remorso para fugir rumo as regiões do Sul, ainda não infetadas; de fato, contribuindo a espalhar a epidemia, inclusive nas próprias famílias.

Entre estas pessoas, podemos encontrar histórias de vida completamente diferentes e razões individuais que levaram a tomar a decisão de partir muito variadas: desde xs mais pobres trabalhadores do Sul migrados no Norte que queria voltar para a própria família, até os mais ricos empreendedores do Norte que queriam passar a pandemia na própria casa de férias no Sul. Não é nossa tarefa julgar estas escolhas – como nunca podemos julgar as razões de quem escolhe pôr-se em viagem. Mas podemos – e devemos – refletir sobre a potência deste mecanismo coletivo. Num continente como a Europa, num País como a Itália e, em particular, nas suas regiões mais setentrionais, territórios atualmente hegemonizados por uma retórica violentamente xenófoba e racista que construiu uma obsessão coletiva pelos migrantes, ou seja, pelas escolhas das pessoas que começam uma longa viagem para se afastarem de um lugar onde não se sentem seguras, tudo isto tem uma terrível ironia trágica. Na Itália da Lega Nord, do nacionalismo, da desconfiança para quem chega desde longe, de obsessiva pergunta dirigida a cada migrante: “Porque é que não ficas na tua terra?” hoje, talvez, saímos todxs com uma resposta que nos interpela pessoalmente. Não se fica na própria terra por medo, por pânico, por necessidade que nos empurra a violar lei. Se a história, como dizia o poeta Montale, “não é mestra de nada”, ficamos com a esperança que haja, como mínimo, uma memória emocional coletiva deste medo, desta vulnerabilidade que levou um enorme número de pessoas acostumadas a serem cidadãs de direito, garantidas, privilegiadas - ou seja, sobretudo, livres de ir onde querem e de disporem totalmente da própria mobilidade - a violar a lei e a quebrar fronteiras na primeira ocasião onde viram este direito ser minimamente – e, porém, justamente – restringido.

Como se produzem, então, novas comunidades, partindo desta vulnerabilidade experimentada sobre si mesmxs?

Por exemplo, nas redes sociais, estão a desenvolver-se práticas de comunidade e “intimidades à distância” que têm muito a ver com as práticas de feminização e descolonização das comunidades digitais: práticas artísticas variadas – músicos, poetas, djs que realizam performance live em streaming no facebook, para permitir a todxs de escutar um concerto ou um espetáculo sem sair da própria casa; psicólogas e terapeutas que oferecem apoio telefónico gratuito a quem sofre de depressão e transtornos que são piorados pelo isolamento; cinematecas, bibliotecas, jornais e revistas que põem à disposição de graça os arquivos digitais áudio/vídeo, de textos etc.; Uma comovente força coletiva que nos mostra como todxs necessitamos de comunidades e estamos prontos a inventar novas, em qualquer situação difícil.


Carla Panico é doutoranda no Programa Doutoral em Pós-colonialismos e Cidadania Global. É mestre em História Contemporânea pela Università di Pisa, em Itália. Formou-se no âmbito do pós-colonialismo e do operaísmo italiano. Na sua tese de mestrado, utilizou as ferramentas destas perspetivas de pensamento crítico para reanalisar a «Questione Meridionale» de Antonio Gramsci. Os seus interesses de estudo estão relacionados com a produção dos Sul internos ao Norte global, principalmente em relação ao espaço euro-mediterrâneo contemporâneo, aos fenómenos migratórios e aos movimentos sociais que o atravessam. É militante nos movimentos italianos contra a crise económica desde o ciclo de lutas de 2008; é ativista contra as fronteiras e pelos feminismos interseccionais. Escreveu pelo jornal diário italiano «Il Manifesto»; colabora com o site de informação independente dinamopress.it e com o coletivo de investigação euronomade.info.

*Um agradecimento especial ao Dr. Miguel Monteiro pelos comentários e pela revisão do texto.