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Histórias coloniais: ancestrais de um feminismo antirracista 
AN Original - Alice Comenta
2020-02-11
Por Bruno Sena Martins

Este artigo faz parte da série 'Alice Comenta' , da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


Reconhecer as diferentes constelações de poder e significado que definem as condições de vida e os horizontes de luta feminista implica considerar, também, como as suas existências das mulheres, nos diferentes contextos, são diferentemente definidas pelos termos do racismo estrutural. Na verdade, no sistema-mundo em que vivemos herdamos do longo tempo colonial um sistema mundo fortemente ancorado no modo como o racismo, patriarcado e capitalismo se orquestraram num processo de exploração que definiu férreas hierarquias acerca do humano. Vivemos ainda o legado das “formações imperiais” de que são parte as muitas ruínas - heranças coloniais - que permanecem vivas no presente, assombrando o futuro (Stoler, 2008). Nesse sentido, importa falar da escravatura, das guerras de ocupação colonial, do trabalho forçado, da mestiçagem como violação e das lutas de libertação para compreender os duradouros vínculos entre a experiência das mulheres racializadas e séculos de violência colonial que, através do racismo institucional, ainda se repercutem no presente. 

Na Europa, fortemente marcada pela arrogância eurocêntrica, pensar as lutas feministas e os horizontes que superem a hegemonia hétero-patriarcal inevitavelmente nos confronta com as continuidades entre um passado imperial e o cúmulo de opressões que recaem sobre as mulheres negras. A expansão oceânica europeia dos povos ibéricos, iniciada já no século XV nas incursões de Portugal no Norte de África, viria a exercer o seu indelével impacto no mundo a partir de 1492 com a chegada de Cristóvão Colombo às américas. Iniciou-se aí a colonização ultramarina dos povos europeus, por onde se definiram muitas das assimetrias do mundo globalizado em que vivemos hoje, um processo que em poucos séculos mudou a face do “novo mundo”, instaurando uma realidade social profundamente marcada pela violência colonial e racista. Até 1866, 12,5 milhões de africanos e africanas terão sido transportados/as para o continente americano no comércio transatlântico de escravizados/as. O ciclo imperial português, por exemplo, duraria, de forma significativa, até 1974 após 13 longos anos de Guerra Colonial entre o exército português e os movimentos de libertação em África. Nascido na gesta das lutas anticoloniais do pós-guerra, a Guerra Colonial portuguesa, com frentes de combate em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, viria a funcionar, direta ou indiretamente, como antecâmara definidora das independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Em Portugal, a guerra viria a estar na origem da criação do Movimento das Forças Armadas (MFA), que a 25 de Abril de 1974 provocará, em Portugal, o golpe militar que derrubaria a longa ditadura do Estado Novo e abriria caminho à democracia.

A presença da violência colonial nos espaços democráticos europeus aproximou-se, durante muito tempo, daquilo a que Michael Taussig chamou de “segredo público”, ou seja, “algo que é comummente conhecido, mas que não pode ser articulado”(Taussig, 1999: 6). Um tal desígnio confronta-nos com uma memória eurocêntrica, narrativas nacionais europeias que renegam a inscrição da violência colonial como parte das narrativas fundadoras do capitalismo global e da modernidade ocidental. Portugal, longe de estar isolado no vínculo a uma desmemória aprendida, partilha com muitos outros ex-impérios coloniais europeus uma descolonização por cumprir, aquela que resultaria do pleno reconhecimento da senda colonial enquanto parte central da experiência da modernidade ocidental.

O desafio de superar uma memória pública constituída sobre os termos dominantes da modernidade eurocêntrica não é apenas o de reconhecer realidades sociais e históricas que têm sido silenciadas, mas o de convocar, traduzindo, mundividências que permanecem ininteligíveis dentro dos modos estreitos de representar uma alteridade subalternizada, conforme as exigências cognitivas e materiais de uma ideia de Europa e do seu projeto colonial. Implica igualmente recusar a arrogância celebratória que vê na Europa o berço de uma civilização de vocação libertadora e universalista, denunciando a insustentabilidade de uma linhagem que consagra, como preciosos e singulares legados europeus, o renascimento iluminista, a democracia e os direitos humanos.

Partindo de um olhar para o passado colonial é possível reconhecer as continuidades entre o silenciamento da história colonial, a narrativa eurocêntrica, o silenciamento das mulheres na violência colonial, e a continuada elisão, sob a capa de um qualquer universalismo libertário, das estruturas de racismo institucional que marcam as lutas das mulheres racializadas como negras. 

Um olhar para a Guerra Colonial portuguesa, por exemplo, mostra como as mulheres negras figuraram como vítimas de massacres e de violência sexual, como parceiras e prostitutas de soldados coloniais, mas também como fornecedoras de mantimentos e apoio logístico aos movimentos de libertação, como guerrilheiras nesses movimentos ou como educadoras das populações no seio de uma consciencialização anticolonial. Em 2012, tive a oportunidade de visitar no Norte de Moçambique uma aldeia, Nangade, onde ficaram aquartelados muitos ex-combatentes da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) que adquiriram alguma deficiência no decorrer da guerra. Trinta e oito anos depois da guerra foi surpreendente perceber que entre desses ex-combatentes, mutilados, sem pernas, cegos, sem braços, etc., uma elevada percentagem era constituída por mulheres que combateram contra o colonialismo e a cujas histórias de luta e sofrimento raramente temos acesso.

O devido reconhecimento do protagonismo das lutas e dos sofrimentos das mulheres negras no âmbito do longo tempo colonial deve informar um olhar atento para o modo como as mulheres racializadas confrontam, hoje, os “episódios de racismo quotidiano" (Kilomba, 2008).  Nas sociedades europeias as mulheres negras estão desproporcionalmente representadas nos sectores mais empobrecidos da população, sujeitas a precariedade laboral, desemprego e expostas a violências. Trata-se de um quadro cuja parca visibilidade no seio das lutas feministas, LGBT+ e operárias exprime de que modo os quadros herdados pelo nexo colonial-racista fazem com que as suas vidas não sejam passíveis de luto/a.

Felizmente, a representação das mulheres negras vem sendo crescente. Esta emergência, aliada à ideia de que a autoestima é uma radical agenda política (hooks, 1995: 119),  anuncia um importante processo de descolonização das lutas feministas. Na verdade, a voz das mulheres negras coloca-nos perante resistências e lutas políticas fulcrais para um feminismo capaz de se proclamar anticolonial e antirracista, um levante essencial para um alargamento dos horizontes de luta democrática e justiça histórica.


  • hooks, bell (1995), Killing Rage: Ending Racism. Londres: Penguim Books.
  • Kilomba, Grada (2008), Plantation memories: episodes of everyday racism. Münster: Unrast.
  • Stoler, Ann Laura (2008), "Imperial Debris: Reflections on ruins and ruination", Cultural Anthropology, 23(2), 191-219.
  • Taussig, Michael T. (1999), Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative, Stanford: Stanford University Press.

Bruno Sena Martins é Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC). É licenciado em antropologia e doutorado em sociologia. É Cocoordenador do Programa de Doutoramento "Human Rights in Contemporary Societies" e Docente no Programa de Doutoramento "Pós-Colonialismo e Cidadania Global". É Co-coordenador no Programa de extensão académica "O Ces vai à Escola". Entre 2016 e 2019 desempenhou no CES as funções de Vice-presidente Conselho Científico do CES/UC e entre 2013 e 2016 foi Cocoordenador do Núcleo "Democracia, Cidadania e Direito" (DECIDe) do CES/UC. Os seus temas de interesse preferenciais são: corpo, deficiência, direitos humanos e colonialismo.

*Uma versão deste texto foi publicada originalmente em inglês em Discover Society