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Boaventura de Sousa Santos: um intelectual em defesa da universidade
AN Original
2020-01-23
Por Júlia Figueredo Benzaquen

Em dezembro de 2019, o professor Boaventura de Sousa Santos protagonizou uma série de atividades acadêmicas e políticas em Pernambuco. Na sexta-feira dia 13 de dezembro, o pesquisador recebeu da UFRPE e da UFPE o título de Doutor Honoris Causa. A merecida homenagem foi motivada pela excelência da sua produção, a qual inspira propostas acadêmicas dialógicas e comprometidas com as lutas sociais. A ideia de concessão do título é um desejo antigo do grupo de estudos “Curupiras: colonialidades e outras epistemologias”, que pode se concretizar devido a uma articulação com o “Observatório dos Movimentos Sociais na América Latina”. A professora Allene Lage, coordenadora do Observatório, propôs a outorga do título pela UFPE e auxiliou os procedimentos encabeçados na UFRPE pelas professoras Júlia Figueredo Benzaquen e Maria do Socorro de Lima Oliveira. Em seguida uma versão resumida do discurso proferido no dia da outorga do título por Júlia Benzaquen, pesquisadora do Curupiras (a íntegra está aqui):

“A trajetória de atuação política e acadêmica de Boaventura de Sousa Santos se relaciona com o Brasil de diferentes maneiras e em variados momentos. Foi no Brasil, mais especificamente na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro que a idéia de justiça cognitiva surgiu como essencial para a ideia de justiça social. Os saberes dos moradores de Jacarezinho foram fulcrais pra Boaventura perceber a diversidade de saberes que eram/são sistematicamente ocultados, marginalizados, invisibilizados. Conhecimentos que eram/são úteis não só pros moradores da favela, mas também pra ciência e pro mundo.


Na trajetória do professor importa sublinhar a sua passagem por Recife no início dos anos 80 quando produziu um trabalho que analisa os conflitos urbanos da cidade do Recife, o caso Skylab. Na sua passagem por Recife trabalhou na UFPE, na Fundação Joaquim Nabuco e teve contato com as lutas dos movimentos sociais, se aproximando de Dom Helder Câmara.

A inspiração da obra do pesquisador se traduz em diversos processos de ecologia dos saberes na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Exemplos concretos e frutíferos de descolonização e desmercantilização da universidade, defendidos e teorizados pelo professor Boaventura, estão acontecendo na nossa universidade. São processos que prezam pela transdisciplinaridade, reorganização dos saberes universitários, pensamento crítico, compromisso social e democratização do acesso à universidade. Esses são processos que, ao contrário do que o governo Bolsonaro quer afirmar, não são majoritários. Num momento em que o conservadorismo e as ameaças à nossa democracia avançam com ataques à educação, sobretudo às Universidades Públicas, precisamos ainda mais descolonizá-la e desmercantizá-la.

Boaventura tem relação direta com o processo de expansão e interiorização das universidades que fortaleceu não só a UFRPE, mas o país como um todo. No começo de 2004, o professor apresentava ao ministro Tarso Genro, uma importante reflexão sobre a universidade. Mais tarde, nesse mesmo ano de 2004, a Unidade Acadêmica de Garanhuns da UFRPE é inaugurada historicamente como o primeiro campus do programa de Expansão e Interiorização das Instituições Federais de Ensino Superior do Governo Lula. Esse é apenas um exemplo de como a obra do professor influencia a formulação de políticas públicas.

Outra relação importante que Boaventura possui com o Brasil foi a sua atuação acadêmica e política no Rio Grande do Sul, desde 1989, com a pesquisa sobre o Orçamento Participativo e as formas de democracia participativa. Essa relação com o Rio Grande do Sul se fortalece a partir de 2001 com a primeira edição do Fórum Social Mundial. Boaventura foi um dos formuladores do pensamento do Fórum. Foi a partir do Fórum que surge uma das mais importantes apostas do autor: a Universidade Popular dos Movimentos Sociais.

Na sua obra científica e na sua atuação enquanto intelectual-ativista, encontramos uma coerência ímpar. O professor é um intelectual de retaguarda, que conhece a riqueza do mundo e que nos presenteia traduzindo e potencializando essa diversidade em seus textos e intervenções. Nos ensina que é insuportável a acomodação na nossa sociedade e é impensável a desistência de construção de “outros mundos possíveis”.

Boaventura contribui cotidianamente e incansavelmente na construção de “outros mundos possíveis”, que são apostas que não se conformam com o presente de exclusão. São apostas que não apenas idealizam um futuro melhor, mas que trazem melhorias práticas no aqui e agora dos seus participantes, ou seja, são apostas presentes (ou seriam presentes em forma de apostas?).
Santos visibiliza e potencializa (através da sociologia das ausências e das emergências) experiências tão diversas quanto a educação popular, a economia solidária, a agroecologia... Todas elas, de uma forma ou de outra, possuem em seus princípios a ideia de ecologia dos saberes (talvez não com esse nome) e possuem a incrível capacidade de combinar o que a razão indolente considera como antípodas (a ancestralidade com a inovação, o local com o universal, a teoria e a prática, o material com transcendente). Nos provando que soluções existem e normalmente estão distantes dos centros ou no Sul (outro conceito vigoroso do pesquisador).

Boaventura celebra a diversidade e não está preocupado com sínteses, mas também não quer se perder na fragmentação. Daí a sua oposição ao relativismo, no sentido de manter forte o conceito de luta, porque se não tiver o conceito de luta tudo se despolitiza.
Hoje, infelizmente, as pessoas estão dispostas a abdicar da liberdade e da democracia em nome da ordem. Internacionalmente existe um acirramento da ultradireita. No Brasil, o bolsonarismo transformou o absurdo em discurso oficial.

Vivemos sob o governo de um pensamento conservador e autoritário, que repudia os direitos humanos e a radicalização da democracia. Alinhado à ideologia de mercado e à redução de direitos e das políticas sociais. Que defende a lgbtofobia, a misoginia, o racismo, o ódio ao conhecimento e à diversidade de idéias. Um estado policialesco e precisamos falar de Marielle Franco, Marcos Vinicius, Agatha, Paraisópolis e tanta juventude negra e periférica assassinada.

Nesse contexto, se multiplicam os registros de agrotóxicos, um absurdo aumento das queimadas e desmatamento, vazamento de petróleo. A natureza e seus povos estão entre os mais atacados. Assassinato dos índios Guajajaras. Leilão do pré-sal (a venda da nossa soberania), aumento dos feminicídios, mortes da população LGBTT, uberização do trabalhador, desempregados. Defesa da privatização dos serviços públicos. Avanço das pautas econômicas neoliberais como a reforma da previdência.

Nesse cenário há resistência e há avanços. Senado tornou o crime de feminicídio imprescritível, houve a criminalização da LGBTgobia pelo STF. O STF decidiu contra a execução de prisão após condenação em 2ª instância (Lula Livre! E pela liberdade de Rafael Braga e Renan da Penha e de todxs lutadores). A vaza jato do Intercept foi importante para comprovar irregularidades do judiciário. Importa mencionar como resistência fundamental a greve nacional da educação em 15 de maio, o dia nacional de luta em 30 de maio, a greve geral de 14 junho, a greve da educação em outubro. Outros momentos significativos e importantes desse ano de 2019 foram a Marcha das mulheres indígenas e a Marcha das Margaridas.

A obra e a pessoa de Boaventura de Sousa Santos se somam aos processos de resistências e são ameaças a esse governo que está no poder. Intelectuais, como o professor, são fundamentais para a garantia de uma sociedade que respeite a pluralidade e onde tenhamos justiça social e justiça cognitiva.
 


Júlia Figueredo Benzaquen Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (2003), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2006) e doutorado em Pós-colonialismos e cidadania global pela Universidade de Coimbra (2012). Desde agosto de 2013 é professora adjunta da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: movimentos sociais, cooperação, educação não-formal, socialização e ciências sociais.