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Reflexão
Anti-Colonialismo
Steve Biko: Um sonho não adiado, mas contaminado
Alternactiva
2020-01-13
Por Andile Mngxitama

Os negros sem consciência negra não têm memórias, nem sentido de julgamento ou orgulho. Como disse Biko, eles ficam de lado e assistem a um jogo que deveriam estar a jogar.

Steve Biko | buzzsouthafrica

 

Biko foi empacotado como o garoto-propaganda do acordo anti-negro pós-1994. Biko está sob cerco, seu nome invocado por todos, desde o ANC (Congresso Nacional Africano) até a Aliança Democrática. Artistas e comerciantes de moda também estão a lucrar com seu legado.

Todos os anos, a memória de Biko é apropriada para servir agendas anti-negras. Os eventos comemorativos e as mesas redondas são organizados em seu nome e os comentários são feitos por um grupo cuidadosamente seleccionado de porta-vozes que não têm nada a dizer sobre a filosofia de Biko e como usá-la para desconstruir a tragédia da democracia sob o ANC. Por exemplo, a discussão sobre a marginalização das línguas e da cultura negras é dissociada do facto de os negros sob o ANC não estarem em melhor situação do que estavam sob o apartheid. Como pode alguém esperar que a expressão cultural negra prospere num ambiente de marginalização? Estas conversas vazias evitam a verdadeira questão: que, para os negros, o ANC transformou a África do Sul num perigoso Bantustão.

As palavras de Biko são repetidas com uma monotonia impotente, divorciada de realidades como o massacre de Marikana. Os escolhidos para falar em seu nome são estrategicamente silenciosos sobre como Biko teria condenado o ANC por assassinar negros em defesa do capital branco e como sua própria liderança vive do sangue dos negros – assim como o regime do apartheid.

Na esteira de Marikana, tem havido pedidos vagos de unidade e um sentimento exagerado de indignação que, na verdade, mascara uma verdade amarga: o ANC é responsável pelo assassinato em massa. Há silêncio sobre o facto de o ANC ser, ele próprio, um chefe de mina, proprietário de mais de 500 direitos de exploração mineira, que lhe foram concedidos pelo Governo. Isto é roubo legalizado.

Talvez a palestra anual em memória de Steve Biko, apresentada pela Fundação Steve Biko, seja a melhor dramatização desta morte de Biko pela memória. Já vimos a palestra dada por pessoas que nada têm a ver com a filosofia de Biko, ou por pessoas como Trevor Manuel e Thabo Mbeki, cujo exercício diário do poder criou uma realidade anti-negra. A ênfase está no “alto perfil” e no hype – não na difícil tarefa de como a Consciência Negra nos permite dissecar porque é que a África do Sul pós-1994 continua a ser um espaço elusivo para o sonho de libertação de Biko, pelo qual ele deu a sua vida.

Este ritual vazio de recordar Biko é institucionalizado para lhe dar um brilho de oficialismo, quando na realidade age para amordaçar a sua filosofia. O Biko que emerge destes exercícios é mudo e surdo à deplorável condição do negro. Este Biko celebra um falso progresso e está preocupado com preocupações periféricas. Este Biko recusa-se a julgar o ANC como o principal autor do sofrimento negro após 18 anos no poder. Este Biko não tem nada a dizer sobre os miseráveis da Terra.

Compromisso intransigente

O verdadeiro legado de Biko pode ser resumido como um compromisso intransigente com a libertação total do povo negro. Só libertando os negros da supremacia branca, da violência estrutural da marginalização e da pobreza degradante é que podemos começar a marcha para a verdadeira humanidade e para uma sociedade em que a raça não importa. Escusado será dizer que este sonho não foi apenas adiado – foi profanado.

A África do Sul é uma sociedade de supremacia branca sob gestão do ANC. Biko avisou sobre isso quando disse: “Se tivermos uma mera mudança de rosto daqueles que estão em posições de governo, o que é provável que aconteça é que os negros continuarão a ser pobres”.

Hoje, os homens brancos vivem melhor neste país e as mulheres negras permanecem no fundo. Os negros são apanhados pelo mesmo complexo de inferioridade em que Biko os encontrou depois de Sharpeville: estão preparados para enfrentar a morte por uma casa RDP, uma casa de banho, até mesmo uns mero 12 500 Randes. Não lutam para possuir a sua terra e as suas almas; lutam para serem trabalhadores e beneficiários de migalhas de um Estado que não os considera humanos.

Os negros não se sentem como uma maioria no poder. Não vemos uma pessoa negra confiante a exigir um serviço de alta qualidade. Os negros sem consciência negra são vulneráveis à manipulação por agentes do neo-apartheid (…).

Os negros sem consciência negra não têm memórias, nem sentido de julgamento ou orgulho. Como disse Biko, eles ficam de lado e assistem a um jogo que deveriam estar a jogar.

Para que a África do Sul funcione, precisamos de um novo negro, que esteja imbuído do verdadeiro espírito da Consciência Negra, que rejeite a integração do ANC que Biko descreveu como “a integração do homem branco – uma integração baseada em valores exploradores”. É uma integração em que os negros competiriam com os negros, usando uns aos outros como degraus pelo degrau acima, levando-os a valores brancos.

As guerras de Mangaung são sobre esta terrível competição, uma batalha em que nada será poupado – nem mesmo a memória do massacre de Marikana.

A política pós-1994 da África do Sul está desprovida de uma visão ética de libertação que coloca as pessoas em primeiro lugar. Hoje Biko é alto como profeta de um futuro possível que funciona e sua filosofia precisa ser defendida e elaborada por verdadeiros Bikoístas.


Tradução: Boaventura Monjane.

 



Conteúdo Original por Alternactiva