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Reflexão
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Anti-Capitalismo
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Do aquecimento global à crise da ecologia-mundo: histórias e resistências
AN Original - Alice Comenta
2020-01-08
Por João Arriscado Nunes

O aquecimento global tem ocupado um lugar de destaque nos balanços do ano de 2019 e nas notícias deste início de novo ano. Incêndios e desmatamentos em vastas áreas florestadas do planeta, na Amazónia, na Califórnia ou na Austrália, inundações e tempestades em diferentes regiões do mundo contribuíram seguramente para conferir uma acrescida visibilidade a eventos extremos associados ao fenómeno da mudança climática e às suas devastadoras consequências para a vida e segurança de populações humanas e da vida na multiplicidade de mundos e de ecossistemas que tecem a vida no planeta.
Para essa visibilidade contribuíram, igualmente, as manifestações que, em diferentes continentes, regiões e cidades, mobilizaram, em particular, as gerações mais jovens e marcaram de maneira visível a urgência do reconhecimento do desastre ecológico em curso e de ação coletiva para o enfrentar.

Nos relatos que dão conta destes processos, e em particular naqueles que povoam os meios de comunicação social, sob a forma de notícias, balanços do ano ou comentários, sobressaem alguns elementos centrais de uma história comum, construída a partir de três linhas narrativas principais:

  1. O desastre ecológico que hoje vivemos tem como expressão mais visível, e requerendo a ação mais urgente, o aquecimento global.
  2. O aquecimento global foi identificado e caracterizado e as suas causas estabelecidas de maneira rigorosa e consensual pela comunidade científica.
  3. Esse consenso teria finalmente permitido uma tomada de consciência crescente por parte da sociedade, ajudando a superar as conceções da crise ecológica baseadas, alegadamente, em causas fantasiosas, em receios irracionais ou em visões não-científicas do mundo. Por isso, também as respostas à crise ecológica e à sua manifestação maior, o aquecimento global, deverão “seguir a ciência”.

Estas três linhas narrativas merecem um escrutínio mais preciso.  A história do Painel Intergovernamental sobre a Mudanças Climáticas (IPCC), desde a sua criação em 1988, permite trazer alguma clarificação à premissa principal da história que hoje tende a tornar-se hegemónica. Só muito recentemente, a partir dos primeiro anos deste século, e graças a um conjunto de tecnologias que ampliaram a capacidade de computação e de procedimentos de compilação, análise e, por via dos modelos de circulação atmosférica global e de circulação oceânica global, interpretação do corpus de dados assim construído, foi possível produzir uma versão suficientemente robusta e tendencialmente geradora de consenso sobre o fenómeno da mudança climática, dos seus sinais e das suas possíveis causas, em particular a influência da ação humana sobre a geosfera e a biosfera. Assim se foi consolidando a convicção bem fundada da iminência de um desastre ambiental de consequências irreversíveis, que exige uma resposta urgente à escala global. Por resolver ficaram questões como os ritmos e intensidade do fenómeno, assim como quais as respostas possíveis e desejáveis à situação, sem esquecer o debate em curso sobre o Antropoceno e os modos de influência da espécie humana nas alterações climáticas.

Este processo de construção de um consenso científico deparou com inúmeros obstáculos, alguns internos á própria comunidade científica, outros ativamente produzidos por grandes interesses económicos ligados ao modelo predatório e extrativista de acumulação capitalista associado, em particular aos grandes conglomerados da indústria petrolífera e da mineração.

É importante lembrar que a crise ecológica se manifesta em diferentes escalas e relações entre escalas, em contextos ecossociais diversos. Os problemas ambientais e os desastres ecológicos, assim como as suas implicações para a saúde e segurança de populações humanas e de ecossistemas, foram desde muito cedo reconhecidos e trazidos para o debate público por comunidades, grupos e movimentos de cidadãos, organizações e lançadores de alerta, perante a frequente resistência e desqualificação dessas preocupações por entidades e instituições científico-técnicas. A persistência de cientistas atentos aos sinais de alerta e dispostos a trabalhar com esses movimentos permitiu, em muitos casos, reverter ou minimizar as consequências de alguns desses problemas, e afirmar a necessidade de prudência na produção e mobilização de conhecimento científico e tecnológico. Destas experiências se pode concluir que a tendência a procurar respostas à crise ecológica pela através de novas versões de “balas mágicas” tecnológicas, como os projetos de geoengenharia centrados na minimização da emissão de gases de efeito de estufa e na captura de carbono, estão longe de corresponder à resposta coletiva que a crise ecológica exige.

Por isso é fundamental reconhecer as histórias diversas e cruzadas que têm marcado, desde há séculos, a luta de povos, comunidades e movimentos pela defesa da vida, de territórios, de culturas, da diversidade geológica e biológica que caracteriza o planeta que partilham todos os seres vivos. Da nova narrativa dominante sobre o aquecimento global desaparecem as múltiplas histórias das formas de vida sustentáveis que foram sendo construídas ao longo de milénios por populações humanas que reconheciam a sua pertença a uma natureza partilhada com outras formas de vida e de existência; e as histórias da sua destruição por conquistas e ocupações, que assumiram uma escala sem precedentes a partir da emergência de uma economia-mundo movida por dinâmica de acumulação sem fim de capital e de apropriação e mercadorização da vida, da terra, da água, dos recursos minerais, da energia acumulada pela fossilização de formas de vida passadas, hoje convertidas num dos principais pilares da versão neoliberal do capitalismo.

A luta pela defesa de modos de vida, territórios, ecologias entendidas como modos sustentáveis de coexistência entre formas de vida distintas e interdependentes, protagonizada por povos indígenas, originários e aborígenes em diferentes partes do mundo, por populações dos campos, florestas e águas, constituíram, historicamente e até aos dias de hoje, a linha da frente da luta contra o desastre ecológico, uma luta travada através de muitas formas, idiomas, ações, histórias e alianças. No próprio coração das sociedades do Norte global multiplicaram-se também formas de denúncia e resistência dos efeitos predatórios e destruidores da saúde, do bem-estar e da vida de muitas das inovações tecnológicas e das transformações nos regimes de propriedade e na organização do trabalho que prometiam o progresso e a abundância para todos através do sonho de domínio de uma natureza tida como inerte e infinitamente maleável. Os roteiros da modernidade assim concebida foram declinados em diferentes versões de uma articulação entre capitalismo, colonialismo e patriarcado, gerando formas de dominação e de exclusão afetando a maioria da população mundial, e comprometendo as suas condições de existência. A crise que vivemos não é apenas uma crise do clima, é uma crise de uma ecologia-mundo, como lhe chamou Jason Moore, que encontra no aquecimento global a sua expressão mais dramática à escala planetária.

Uma longa experiência de crises e controvérsias que marcam a relação entre os saberes científicos e as respostas de comunidades, grupos, e movimentos sociais a diferentes situações de emergência ambiental, sanitária ou energética ou a eventos extremos recomenda que, perante a presente crise ecológica,  a atitude prudente a seguir como guia para a ação estará, não nesse “seguir a ciência”, mas na procura dos diálogos, colaborações e alianças entre o conhecimento científico e as experiências, saberes e práticas que se alimentem das múltiplas formas de luta, de resistência e de criação de modos de vida não-predatórios e não-extrativistas. Nesse processo, a ciência de que precisamos é aquela que, ao mobilizar os seus conhecimentos, práticas e recursos, reconheça e respeite a diversidade das experiências existentes no mundo no quadro da construção de ecologias de saberes e de práticas. 


João Arriscado Nunes é Professor Catedrático de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, co-coordenador do Programa de Doutoramento "Governação, Conhecimento e Inovação" e Investigador Permanente do Centro de Estudos Sociais. Membro do Conselho Consultivo da Associação Portuguesa de Sociologia. Membro da coordenação do projeto ALICE - Espelhos estranhos e lições imprevistas, dirigido por Boaventura de Sousa Santos e financiado pelo European Research Council (2011-2016). Foi Pesquisador Visitante na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no Rio de Janeiro (2011-2012), e Director Executivo do CES (1998-2000). Os seus interesses de investigação centram-se nas áreas dos estudos de ciência e de tecnologia (em particular, da investigação biomédica, ciências da vida e da saúde pública, da relação entre ciência e outros modos de conhecimento), da sociologia política (democracia, cidadania e participação pública, nomeadamente em domínios como ambiente e saúde), Direitos Humanos e teoria social e cultural (com ênfase no debate sobre as "duas culturas"). Mais recentemente, coordenou os projectos de investigação "Avaliação do estado do conhecimento público sobre saúde e informação médica em Portugal", no âmbito do Programa Harvard Medical School - Portugal e "O envolvimento da ciência com a sociedade: ciências da vida, ciências sociais e públicos - BIOSENSE", ambos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Coordenou e participou em vários projectos nacionais e internacionais (com coordenação de equipas portuguesas),