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Educação, cultura e responsabilidade: as ‘outras’ línguas e outros ‘saberes’ 
AN Original - Alice Comenta
2019-11-26
Por Maria Paula Meneses

Este artigo faz parte da série Alice Comenta, da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.

O mundo atravessa uma grande convulsão social, com múltiplas manifestações um pouco por todo o lado. Uma leitura atenta das notícias mostra que os últimos anos ficaram marcados por importantes protestos estudantis, onde a denúncia do desinvestimento nos projetos educativos para os grupos subalternos se associa ao grito pela descolonização da educação. Comum a estas lutas são as conexões e solidariedades conjugadas, revindicando o reconhecimento de saberes transmitidos através de línguas vernáculas, cuja legitimidade é, também, testada nas experiências concretas de luta pela descolonização.

No campo da educação a colonização atuou – e continua a atuar nos nossos dias - através de processos de violenta intervenção política e epistemológica, os quais resultaram na suspensão do crescimento orgânico das instituições nos espaços colonizados. Nas palavras de Eduardo Mondlane, uma das principais referências políticas da luta nacionalista em Moçambique, era visível a linha abissal que separava o projeto educativo formal, de inspiração colonial, portuguesa, e a educação informal, comunitária. Escrevendo no início da década de 1960, Mondlane expôs a urgência da avaliação do impacto colonial nas políticas e práticas educacionais da África. Em praticamente todas as sociedades africanas a educação era controlada por pessoal administrativo colonial cuja visão cultural era totalmente exógena a África. Isso, por si só, teve um efeito profundo não apenas nas políticas e métodos usados na elaboração e execução das políticas educacionais, mas também no tipo de ambiente psicológico em que a criança africana estudava.

Qualquer proposta educativa que privilegie uma análise monocultural da diversidade do mundo, reproduz necessariamente uma lógica exclusivista. O projeto racional eurocêntrico colonial vai criar a alteridade como um espaço/tempo anterior, onde circulavam saberes considerados ‘inferiores’, com alcance local. Este foi o contraponto que legitimou a imposição violenta da estruturação hierárquica que está na base da relação de poder-saber do moderno pensamento científico colonizador.

Este sistema de educação abissal, gerou uma desvantagem destruturante para os estudantes africanos, que eram obrigados a aprender e a comunicar numa língua estrangeira, o português em Moçambique – ou seja, esta língua só era usada comummente durante o período das aulas -, e a usar livros escolares escritos em função do universo cultural das crianças europeias. 

Assim se explica porque, no contexto moçambicano, a luta pela educação se ter afirmado como um projeto político, um projeto libertador. Desde a independência que as políticas educativas procuram combinar a realidade regional do contexto onde Moçambique se encontra inserido – África Oriental, parte do Índico – com os saberes do mundo.

Mas como reconhecer outras epistemologias e integrar esta diversidade num programa educativo no âmbito de um Estado moderno?
A reflexão de Mondlane estabelece uma ponte com a proposta das epistemologias do Sul (ES) avançada por Boaventura de Sousa Santos. As ES, como proposta conceptual, dizem respeito à produção e validação de conhecimentos ancorados nas experiências de resistência e luta dos grupos sociais que têm experimentado injustiças, opressões e destruições sistemáticas praticadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado. O objetivo das ES é permitir que os grupos sociais oprimidos representem o mundo por si mesmo nos seus termos, pois somente assim serão capazes de mudá-lo de acordo com suas próprias aspirações. 

A injustiça educativa experimentada por Mondlane está estreitamente associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por uma justiça social global requer a construção de um pensamento pós-abissal, a partir das premissas programáticas da ecologia de saberes gerados nas práticas sociais, e da tradução intercultural e interpolítica.

Nos contextos contemporâneos, apesar de a maioria das colónias ter atingido a independência política, a permanência da relação colonial continua presente ao nível político e epistemológico – os saberes dos ‘outros’ continuam a ser conceptualizados como inferiores ou locais, reproduzindo a dominação epistemológica colonizador-colonizado. O moderno projeto educativo insiste em impor-se - ao nível das categorias fundamentais – como espelho da sociedade do conhecimento, gerando desta forma um desconhecimento abissal arrogante sobre o lado colonizado. É assim que se perpetua a injustiça cognitiva, através do não reconhecimento dos seres e dos saberes que (re)existem nos territórios, submetidos a opressão, o Sul global, e da sua ausência de muitos processos educativos.

Neste contexto, os modernos projetos educativos são, também, parte das ES, na medida em que conseguem dialogar, de forma tendencialmente horizontal, com outros conhecimentos, socialmente legítimos, promovendo ecologias de saberes. No cerne da proposta da ecologia de saberes está a ideia de que qualquer tipo de conhecimentos é incompleto, e que a criação da consciência desta incompletude recíproca (em lugar de completitude), através de uma escuta profunda de outros saberes constitui a condição prévia para alcançar justiça cognitiva.

Um elemento fundamental no processo de descolonização da escola tem a ver com as línguas em que circula o conhecimento. Em grande parte do continente africano as línguas herdadas das metrópoles colonizadoras continuam a manter a supremacia. Mas estas línguas, sobretudo de origem europeia, não permaneceram imutáveis. Nas palavras de Gregório Firmino, adquiriram novos significados simbólicos e aspetos estruturais, elevando-se ao estatuto de variantes linguísticas com valor próprio.

Em Moçambique, um país membro da CPLP, a maioria da população não tem o português como língua materna. Assim, o país foi obrigado a repensar o papel das línguas indígenas/nacionais. Politicamente, este desafio foi colocado desde o início por uma parcela importante da sociedade - que inclui lideranças locais, educadores, políticos, etc. – que reivindicou desde cedo direitos linguísticos para as línguas e culturas que haviam sobrevivido à violência colonial.

Nas zonas rurais, onde habita cerca de 60% da população do país, ainda hoje a maior parte das crianças só começa a aprender o português na escola, o que contribui para o insucesso escolar. Em contextos multilingues e multiculturais, a escola convive com várias tensões, sobretudo fruto do processo de hibridização cultural, da tensão entre a homogeneização e a diversidade cultural e da tensão entre saberes.

Como construir uma proposta de educação multicultural em que a escola ensine a respeitar e considerar as diferenças étnico-culturais, promovendo relações fundadas no diálogo, na democracia, no respeito pela diferença?

O atual currículo do Ensino Básico (primeiro nível escolar) é híbrido, quer ao nível dos conteúdos, quer das abordagens curriculares, com a introdução do ‘currículo local’. Este é apresentado como complemento do currículo oficial, nacional, incorporando matérias diversas de vida ou de interesse da comunidade local nas mais variadas disciplinas contempladas no plano de estudos. Subjacente a esta opção da política educativa está o reconhecimento de novos sujeitos que participam da conceção curricular: professor e membros da comunidade, ou seja, o reconhecimento explícito da diversidade cultural e linguística do país. Esta política educativa, assente no uso das línguas nacionais, apesar de estabelecida de cima para baixo, tem procurado aprofundar a ligação entre a escola e a comunidade, ampliando os diálogos entre saberes.

O (re)conhecimento do direito a (re)existir a partir de outras epistemologias e ontologias é, como a realidade de Moçambique espelha, um projeto imenso, onde o assumir de vidas silenciadas e saberes ignorados é um bem comum, uma condição para a construção de uma cidadania ancorada na diversidade vivida no país.


Maria Paula Meneses é investigadora coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, integrando o núcleo de estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). É doutorada em antropologia pela Universidade de Rutgers (EUA) e Mestre em História pela Universidade de S. Petersburgo (Rússia). Lecciona em vários programas de doutoramento do CES, sendo co-coordenadora do programa de doutoramento em 'Pós-colonialismos e cidadania global'. Co-coordena com Boaventura de Sousa santos (CES) e Karina Bidaseca (CLACSO) o curso interbacional 'Epistemologias do Sul' (CLACSO-CES). Anteriormente foi Professora da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique). De entre os temas de investigação sobre os quais se debruça destacam-se os debates pós-coloniais em contexto africano, o pluralismo jurídico - com especial ênfase para as relações entre o Estado e as 'autoridades tradicionais' no contexto africano -, e o papel da história oficial, da(s) memória(s) e de ´outras´ narrativas de pertença nos processos identitários contemporâneos. Participou em inúmeros projectos de investigação, coordenando atualmente uma pesquisa sobre as relações afetivas durante a guerra. Organizou e publicou vários livros e artigos. A sua mais recente publicação é 'Mozambique on the Move. Challenges and Reflections' (Brill, 2018), organziada com Sheila P. Khan e Bjorn Bertelsen. Entre outros trabalhos é de referir 'As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais' (com Bruno Sena Martins, Almedina, 2013), as 'Epistemologias do Sul' (com Boaventura de Sousa Santos, Almedina, 2009, 2011; Cortez, 2010 e Alkal, 2014), 'O Direito Por Fora do Direito: As Instâncias Extra-Judiciais de Resolução de Conflitos em Luanda, Angola' (com Júlio Lopes, lmedina, 2012). Tem o seu trabalho publicado em diversos países, incluindo Moçambique, Espanha, Portugal, Brasil, Senegal, Estados Unidos, Inglaterra, Argentina, Alemanha, Holanda e Colômbia.