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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Por mar e por terra. O “Decreto sicurezza Bis” e as provas gerais de fascismo social na Itália.
AN Original - Migrating Rights
2019-08-22
Por Carla Panico

Este conteúdo faz parte da série "Direitos Migratórios" para assinalar o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estas contribuições são elaboradas pelo Grupo Inter-Temático sobre Migração (ITM), do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.


Esta noticia espelha o turbilhão legal que Itália conhece sobre a questão migrante’. Há poucos dias, a 5 de Agosto – não por acaso, em plenas férias de verão em Itália - o Parlamento italiano votou pela aprovação do “Decreto Sicurezza Bis”. Trata-se de um conjunto de normativas legais, elaboradas e defendidas pelo atual ministro do interior - Matteo Salvini – que celebrou a aprovação agradecendo a Nossa Senhora. Este projeto lei conheceu também o apoio pleno do partido de Salvini – a “Lega” (antigamente chamada de “Lega Nord”) –, um projeto que contou com o apoio parlamentar do Movimento Cinque Stelle (M5S), conhecido por ser um “anti partido” de matriz populista, que partilha o controlo do Governo italiano com a Lega.

O Decreto Sicurezza Bis não chega no vazio, desligado da gestão política e administrativa de Itália. Com efeito o país está a mover-se cada vez mais rumo uma hegemonia da estrema direita xenófoba, racista e sexista. Desde as eleições políticas do março 2018 que o partido de Salvini, o terceiro mais votado, conseguiu formar um governo em coalizão com o M5S. Desta associação resultou a crescente hegemonia da Lega, mais que confirmada ao longo do último ano. De acordo com os resultados das eleições europeias do Maio 2019, a Lega Norte tornou-se oficialmente no maior partido italiano.

A hegemonia Salviniana assenta na reconstrução de um sentimento nacionalista e suprematista branco, tendo como elemento aglutinador a construção do perigo da “invasão” dos e das migrantes que cruzam o Mediterrâneo. Outro elemento fundamental do projeto política da Lega assenta na “renovada” identidade a partir de uma construção artificial duma identidade homogénea – o cidadão italiano de bem e “soberano”, o seja o homem branco, cis, hétero e dono dos seus meios. Esta referência ‘nacional’ identitária é excludente de todas “as alteridades” determinadas pelo género, a raça, a pertença geográfica, social e política. O partido de Salvini, nascido como movimento localista pela independência do Norte Itália face à “barbárie” do Sul “preguiçosa, criminal e símbolo do atrasado”, alterou recentemente o seu nome, com o objetivo de transformar-se em partido Nacionalista, podendo assim “incluir” os que, também no “sul interno”, se identificam com este projeto de guerra a todos os supostos inimigos da Nação italiana.

O “Decreto Sicurezza bis” – que, três dias depois da votação no Senado, foi já ratificado pelo Presidente da República italiana – é um sinal fundamental e dramático da afirmação desta hegemonia securitária e extremista. Com efeito, estes procedimentos legais regulam, de maneira "inovadora", dois aspetos da "segurança pública" do país: o resgate marítimo no Mediterrâneo e todas as manifestações políticas.

Por mar

Aperfeiçoando o processo de criminalização das ONGs que atuam no Mediterrâneo, resgatando migrantes – processo que, importa lembra, não é unicamente apoiado pela extrema direita, pois foi também promovido pelo governo anterior, do Partido Democrático – o Decreto Sicurezza Bis torna praticamente impossível o resgate de pessoas que cruzam o mar, inclusive em caso de naufrágio ou risco de morte.
O governo italiano dispõe agora, através destes instrumentos legais, da legitimidade legal necessária para proibir a chegada de qualquer navio ao espaço marítimo italiano, sem necessitar de dar qualquer explicação. Por exemplo, neste momento Salvini está impedindo a chegada de dois navios de ONGs, que trazem um total de 500 pessoas resgatadas. A justificação dada pelo ministro de tutela  sobre o enecerramento dos portos é que cerca 300 pessoas podem ser reenviadas para a Líbia, afirmando que não aceita receber “os que foram visitados pelo miliardário Richard Gere”.

Outro elemento fundamental deste conjunto de leis é que o/a capitã de um navio humanitário que for apanhado violando esta proibição – ou seja, que decida entrar em aguas italianas para levar as pessoas resgatadas a um porto seguro - pode ser objeto de punição económica - uma multa que pode ir até um milhão de euros, assim como enfrentará a prisão imediata. Todavia, isto significaria que o Estado italiano ficaria automaticamente dono de qualquer navio confiscada neste processo e teria o direito a vende-lo o destruí-lo depois de dois anos. Este nível de punição – não unicamente o risco penal, mas também a punição económica, que, de facto, destruirá a possibilidade de sobrevivência de qualquer organização humanitária – procura desincentivar qualquer tentativa de resgate, tornando-o, na prática, impossível.

Por terra

Do ponto de vista do direito de manifestação, este Decreto prevê um aumento das sanções de todas as infrações relacionadas com manifestações políticas. Em primeiro lugar, qualquer crime punido pela constituição italiana é automaticamente agravado se fora cometido durante ou num acto relacionado com uma manifestação política. É particularmente problemático o crime de “resistência às autoridades” – crime que normalmente é imputado as manifestantes e ativistas que se defendem das situações de violência policial durante as manifestações. Infelizmente trata-se de uma realidade muito frequente num país que é conhecido pelas altas taxas de abusos cometidas pelas forças de defesa e segurança publicas.

Igualmente, este decreto prevê o aumento das punições nos casos de ofensa a figuras políticas e a instituições “individuais e coletivas”. Este agravamento não especifica os casos em que o dissenso pode ser considerado ofensivo de forma juridicamente punível, deixabdo uma grande latitude de interpretação às instituições, prevendo até quatro anos de prisão imediata. No contexto atual, onde as contestações aos comícios de Salvini se estão a multiplicar por toda a Itália – particularmente no Sul, onde Salvini está a levar a cabo o seu “Beach tour” de verão – é de antecipar o aumento das repressão legitimadas por parte das forças públicas.

As consequências deste Decreto nas vidas das pessoas que cruzam o Mediterrâneo vão ser terríveis e provavelmente difíceis, ainda, de avaliar quanto às suas repercussões. De qualquer forma este Decreto vai afetar profundamente as formas de organização política, de ativismo e militância e as pessoas nelas envolvidas.

O Decreto Sicurezza Bis, apesar de ter sido assinado pelo Presidente da República, que simboliza o garante da constituição italiana, espelha uma óbvia violação de todos os compromissos internacionais, sobre o direito marítimo e sobre os direitos humanos - seja o direito à vida, ou o direito à oposição política. Alguns juristas italianos defendem que um recurso, uma vez chegado ao Tribunal Constitucional – o tribunal supremo que garante a compatibilidade das leis face à Constituição do Estado italiano – tornará impossível a aprovação deste Decreto. Esta interpretação jurídica deixa entrever algumas duvidas sobre a eventualidade deste operação ter sido pensada por Salvini para poder, depois, denunciar a “parcialidade” dos órgãos constitucionais e obter mais legitimidade para governar com mais força e poder mesmo alterar a Constituição.

Dois dias após a aprovação do Decreto, Salvini apresentou uma “moção de desconfiança” ao governo atual, rompendo a aliança com o M5S – movimento que foi claramente instrumentalizado por Salvini para chegar ao governo e aprovar este decreto – e pedindo novas eleições políticas. No mesmo dia Salvini anunciou a sua candidatura a Primeiro Ministro, apelando aos italianos para lhe conferirem “plenos poderes”. Convém lembrar que esta mesma expressão foi utilizada por Benito Mussolini quando chegou ao poder, liderando um governo fascista.

A crise de governo não está ainda resolvida e não é certo se e quando haverá novas eleições; os próximos dias de verão vão conhecer várias tentativas de transformação politica das instituições italianas que, embora mantenham a forma democrática, estão comprometidas com um regime de governo autoritário; um governo fascista baseado na repressão das instâncias de democracia radical, encarnadas pelo movimentos de dissenso, apostado na construção do inimigo a odiar e a eliminar. Um ‘outro’ que é definido, em larga medida, em função das categorias de género e raça defendidas pelo nacionalismo europeu contemporâneo.


Carla Panico é doutoranda no Programa Doutoral em Poscolonialismo e Cidadania Global. È mestre em Historia Contemporânea pela Università di Pisa, em Itália. Formou-se no âmbito do poscolonialismo e do operaísmo italiano. Na sua tese de mestrado, utilizou as ferramentas destas perspetivas de pensamento crítico para reanalisar a Questione Meridionale de Antonio Gramsci. Os seus interesses de estudo estão relacionados com a produção dos Sul internos ao Norte global, principalmente em relação ao espaço euro-mediterrâneo contemporâneo, aos fenómenos migratórios e aos movimentos sociais que o atravessam. É militante nos movimentos italianos contra a crise economica desde o ciclo de lutas de 2008; é ativista contra as fronteiras e pelos feminismos intersecionais. Escreveu pelo jornal diário italiano "Il Manifesto"; colabora com o site de informação independente dinamopress.it e com o coletivo de investigação euronomade.info.