pt
Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Neoconservadorismo e colonização da crítica social
AN Original
2019-08-03
Por Luís Fernando Santos Corrêa da Silva

A emergência de novos movimentos conservadores, como fenômeno que afeta as sociedades contemporâneas, assume características particulares em cada contexto social específico. Na Europa, por exemplo, o neoconservadorismo tem assumido caráter predominantemente xenófobo, de negação do estatuto de cidadania aos não-europeus, sobretudo os islâmicos, os africanos e os dotados de pouca qualificação profissional. Já nos Estados Unidos, a retomada do American Way of Life em novas bases e a repulsa aos latinos dão sustentação a um movimento de conservação que encontrou seu ápice na eleição de Donald Trump para a Casa Branca. Por seu turno, no Brasil, o conservadorismo antes latente, passou a se manifestar nas relações interpessoais, nas redes sociais e em movimentos de rua, o que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e na eleição de Jair Bolsonaro, de modo a edificar um novo projeto de Estado que unifica fundamentalistas religiosos, anti-intelectualistas, segmentos militares e liberais na economia. No entanto, apesar das peculiaridades locais, a escalada global do neoconservadorismo tem sido marcada pela colonização da crítica social, estrutura costumeiramente relacionada aos movimentos contra-hegemônicos e emancipatórios. 

Quando falo de colonização da critica social quero me referir ao processo de captura do debate público por discursos que propõem soluções simples para problemas sociais complexos, de modo a restaurar uma ordem desigual entendida como naturalmente legítima. Para que a colonização da crítica social alcance seus objetivos, é preciso solapar a alteridade e negar as diferenças. O diferente torna-se o inimigo público, seja ele muçulmano, estrangeiro, homossexual ou socialista. Normalmente, a crítica social neoconservadora também se sustenta no discurso que evoca um passado glorioso, moralmente superior e economicamente mais próspero. Portanto, trata-se de identificar os causadores das mazelas sociais do presente, inimigos públicos que devem ser combatidos por todos os “cidadãos de bem”, mesmo que para isso seja necessário abandonar critérios éticos básicos, como a garantia de liberdade de manifestação e de pensamento e a própria integridade física dos contrários.

A intensificação da disseminação de informações falsas, as ditas fake news, pode ser entendida como um efeito colateral da colonização da crítica social. Nas fake news, a realidade é reconstruída para mobilizar sentimentos básicos como o medo e a insegurança, de modo que sirva para reforçar esquemas de percepção do mundo que objetivam combater o inimigo comum e conservar a pureza moral. Essa realidade imaginária, assentada em uma ética discursiva deteriorada, contribui para multiplicar um exército de zumbis sociais, sempre ávido por destilar ódio e ressentimento, nas relações face a face, mas também principalmente na internet.

No caso específico do Brasil isso é ainda mais grave. Segundo o Instituto Brasil de Geografia e Estatística – IBGE, o país possuía, em 2018, aproximadamente 38 milhões de analfabetos funcionais, o que representava 29% da população da população na faixa etária dos 15 aos 64 anos. Quando se trata de cidadania, e de capacidade de avaliar criticamente problemas sociais complexos, o analfabetismo funcional assume um contorno dramático, visto que contribui para a incapacidade de identificar a veracidade de informações jogadas nos ventos das redes sociais e que são utilizadas para a formação da opinião. E foi nessa conjuntura que o neoconservadorismo encontrou terreno fértil no Brasil, ao sistematizar percepções preconceituosas e criar inimigos públicos genéricos, como se a corrupção e as relações espúrias estabelecidas entre os setores público e privado fossem suficientes para explicar problemas sociais que tiveram início no Brasil colônia.

Ainda sobre a realidade brasileira, cabe destacar que a colonização da crítica social promovida pelo pensamento neoconservador ocorreu em um contexto social sem que as bases da sociabilidade desigual tenham sido objeto de revisão consistente em algum momento histórico. Diferentemente da Europa, que vivenciou o Estado de Bem Estar Social dos 30 anos pós Segunda Guerra Mundial, no Brasil, fenômenos como a pobreza e as desigualdades nunca foram enfrentados de modo sustentável, bem como sequer foram entendidos como socialmente injustos por parcela significativa das elites e das classes médias. Do mesmo modo, a herança colonial nunca chegou a ser seriamente problematizada, o racismo seguiu naturalizado e a estrutura patriarcal da sociedade brasileira tem se mantido inabalável ao longo dos séculos. Entre pequenos avanços e profundos retrocessos, os grupos sociais excluídos, sempre numerosos, seguem estigmatizados como responsáveis únicos pelo seu próprio fracasso. Quase sempre considerados desprovidos de virtudes morais, fato que explicaria o fracasso pessoal, os “sem mérito” se tornaram objeto da crítica conservadora como “esse pessoal da Bolsa Família”, “esse povo das cotas”, “essas feminazis”, entre outros qualificativos de cunho pejorativo e preconceituoso.

Se a tarefa histórica dos movimentos progressistas é a de criar caminhos para a emancipação social, e nesse movimento a crítica social possui um papel decisivo, então um questionamento inicial surge no horizonte: Como resgatar a crítica social do domínio conservador, de modo a criar as bases para outra compreensão da realidade social? Nesse ponto, a sociologia e os intelectuais engajados têm um papel importante, na medida em que precisam contribuir para a edificação de um movimento de ruptura com a naturalização da realidade social. É a atitude intelectual fundamentada nos princípios do diálogo de saberes que permitirá a emergência de novas oportunidades históricas. Nesse movimento, o descolonizar assume um novo sentido, que é o de resgatar a crítica social do domínio conservador, de modo a restituir seu sentido histórico e o seu papel contra-hegemônico.


Luís Fernando Santos Corrêa da Silva é sociólogo, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. Possui graduação em Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura) e mestrado em Sociologia também pela UFRGS. Foi Investigador Visitante em Estágio Pós-Doutoral no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal. Atualmente é professor Adjunto IV da Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS, Campus Erechim. Na UFFS, é professor de graduação no curso de licenciatura em Ciências Sociais e também atua como professor permanente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. Tem experiência em gestão acadêmica, nos cargos de Coordenador de Curso (2010 - 2012) e Coordenador Acadêmico do Campus Erechim (2012 - 2015). É pesquisador dos grupos de pesquisas Grupo de Pesquisas e Intervenções Sociedade, Educação e Desigualdades (SOCIEDUDES), Políticas Públicas, Democracia e Estudos Urbanos/UFFS e do Laboratório Virtual e Interativo de Ensino de Sociologia (LAVIECS/UFRGS). Tem realizado estudos e publicações nas áreas de Estratificação Social e Desigualdades, Sociologia do Trabalho, Sociologia Econômica e Ensino de Sociologia, atuando sobretudo nos seguintes temas: classe média no Brasil contemporâneo, mudanças no mundo do trabalho,mercado de trabalho, trajetórias ocupacionais, novos perfis sócio-ocupacionais e Sociologia no ensino médio.