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Colonialismo, governação e a história: porque a ignorância arrogante recusa dialogar com o Sul global
AN Original - Alice Comenta
2019-07-16
Por Maria Paula Meneses

Nos seus últimos trabalhos Boaventura de Sousa Santos tem dedicado especial atenção aos sentidos da ignorância, identificando duas vertentes. De um lado, a douta ignorância, uma ignorância que espelha a inesgotável diversidade da experiência humana e dos saberes que lhe estão associados. É esta ignorância que estimula os diálogos interculturais e interpolíticos que permitem aprofundar a condição democrática. Do outro lado existe uma ignorância arrogante, que se assume como detentora do monopólio do conhecimento dominante, que é o único a que reconhece como critério de verdade. As verdades que não cabem nesta verdade monopolizadora não são reconhecidas, tal como não se reconhecem os saberes e as experiências dos povos e comunidades que as produzem.

‘Tabula Rogeriana’ ou Mapa de Muhammad al-Idrisi, criado para o rei da Sicília, Rogério II, em 1154. Neste mapa o ‘Sul’ está colocado na parte de cima do mapa, numa perspetiva distinta da cartografia moderna eurocêntrica.

O conhecimento colonial em que assenta o saber do Norte global procurou sobretudo a partir do séc. XIX, consagrar o seu saber como único com caracter global, assumindo uma posição de ignorância arrogante. É esta razão ignorante que (re)produz estereótipos raciais e insiste numa matriz hierarquicamente arrogante na interpretação da relação com a alteridade. A expressão desta ignorância arrogante tem vindo a ressurgir em vários contextos intelectuais do Norte global, insistindo que os outros ou não têm saberes ou, se os detêm, estes possuem um mero valor local ou regional. São exemplos desta razão arrogante a tentativa do controlo da história, procurando determinar identidades, representações e instituições. Qualquer projeto histórico nacional reflete um projeto político, espelho das relações de poder que o conformam. Buscam, no sentido da historiografia moderna, estabelecer uma narrativa crível que enquadre e legitime as opções tomadas em nome da nação e de suas instituições, num jogo entre as raízes, as tradições e as opções do futuro, a utopias que nos guiam. Neste contexto, e como Hannah Arendt sublinhou, a política é um campo no qual qualquer verdade é esticada, selecionada e relativizada, longe de expressar a totalidade de qualquer evento de forma perfeita. Ou seja, qualquer ignorância é-o em relação a um determinado tipo de conhecimento, e todo conhecimento busca superar uma dada ignorância particular.

Uma das características comuns aos impérios coloniais britânico, espanhol, português, francês, otomano ou americano, fruto da razão arrogante, é o pensamento abissal. O pensamento colonial do Norte global agiu como uma "missão civilizadora" prática e, em paralelo, como uma ideologia com raízes numa epistemologia gerada pela racionalidade moderna. No centro deste projeto estava e continua a estar a tentativa de impor e legitimar a dominação e exploração dos sujeitos colonizados. Essa racionalidade, vigente do lado imperial do mundo, insistiu em garantir direito a seres racionais esclarecidos, como o direito de governar a libertação dos colonizados da situação de ‘ignorância’ e atraso em que supostamente se encontravam; em paralelo, do outro lado da linha abissal, produziu sujeitos coloniais, à espera de serem resgatados de seu jugo histórico de atraso e barbárie. No espaço colonial português, por exemplo, este projeto ideológico e político traduziu-se na criação do ‘indígena’ como desprovido de passado, de saberes. Em suma, num não-ser. Este modo de governar os territórios coloniais, como analisado por Mahmood Mamdani, deu origem a um estado bifurcado, onde a administração colonial procurava incorporar, de forma forçada, os ‘indígenas’ numa ordem tribal tradicional. Neste processo, as normas ‘locais’ foram cristalizadas em formas de ‘direito consuetudinário’ de grupos etno-tribais, cujas lideranças concentravam o poder administrativo, judicial e executivo.

As normas, traduzidas agora em ‘costumes étnicos’, foram moldadas para acentuar o quanto o mundo indígena não condizia com o mundo metropolitano, civilizado. Enquanto parte do outro lado da linha abissal, não poderiam servir de base para uma experiência comum de cidadania. A aplicação desse projeto político espelha a complexa relação entre uma administração estatal moderna, de matriz colonial, e os costumes locais.

A administração colonial funcionou principalmente através do reconhecimento, pelo Estado colonial, de autoridades tão diversas quanto as autoridades tribais/étnicas, e da incorporação dessas autoridades na estrutura administrativa moderna, oficial. Através da linguagem jurídica, inerente à administração moderna, e das representações e informações por esta fornecida, vai-se conformar a imagem do ‘mundo colonial’. E é este saber colonial, que ainda hoje se mantém nos arquivos e bibliotecas do Norte global, reproduzindo estereótipos sobre o Sul global.
Em suma, para governar de maneira efetiva e sustentável as colónias, os Estados coloniais aplicaram metodicamente um modelo político-cultural hierárquico, patriarcal e autoritário, ainda presente nos dias que correm. Com efeito, a diversidade socio-legal existente foi, em larga medida, substituída por um sistema de justiça moderna monolegal, onde a estrutura legal funcionava como uma linguagem universal de governação. Como destaca Achille Mbembe, a prática política colonial assentou na desapropriação, um processo que integrou procedimentos jurídicos e económicos que levam à expropriação material dos sujeitos coloniais, e que exigiu uma experiência singular de sujeição politica e ontológica, que gerou um estado de máxima exterioridade e empobrecimento epistémico.

Esta avaliação crítica é fundamental para explicar como e porquê a realidade africana é frequentemente retratada como um espaço periférico, formado por falhas políticas e culturais abissais. No entanto, uma leitura detalhada das trajetórias académicas que promovem tais posições revela que a relação centro-periferia é um reflexo de uma construção social e política de uma relação hierárquica de alteridade. Como inúmeros autores têm vindo a destacar, o eurocentrismo é um modo de pensar binário que constrói e promove uma identidade europeia, moderna e civilizada, justapondo-a a um habitante colonizado, subdesenvolvido, tradicional e bárbaro, habitante dos territórios periféricos. Neste sentido, a periferia é acima de tudo um exercício na criação de um lugar de exceção - inventado por um centro. A partir desta relação de poder-conhecimento, a Europa autorizou-se a categorizar o ‘resto’ do mundo como periférico face ao curso da ‘sua’ história. Os conceitos eurocêntricos que permeiam as ciências sociais e humanas, a linearidade da narrativa teleológica do progresso em direção à civilização, impedem o reconhecimento dos sujeitos não-eurocêntricos, com conhecimento, produzindo teorias. O resultado desta operação é a transformação do projeto político europeu numa trajetória histórica supostamente universal.

Porém, qualquer história tem sempre vários ângulos de análise. A chegada de outras análises históricas às academias do Norte tem vindo a gerar muito desconforto entre intelectuais que insistem em aplicar as lentes colonizadoras ao estudo da humanidade. A descolonização, enquanto processo de aprofundamento democrático, requer, como Boaventura de Sousa Santos propõe, o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza desigualdades. Ou seja, do direito à história no plural, feitas pelos sujeitos da história, em rede, uma condição fundamental para conhecer o Sul global a partir do Sul global, e que traz consigo o fim de qualquer história única.


Maria Paula Meneses é investigadora coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, integrando o núcleo de estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). É doutorada em antropologia pela Universidade de Rutgers (EUA) e Mestre em História pela Universidade de S. Petersburgo (Rússia). Lecciona em vários programas de doutoramento do CES, sendo co-coordenadora do programa de doutoramento em 'Pós-colonialismos e cidadania global'. Co-coordena com Boaventura de Sousa santos (CES) e Karina Bidaseca (CLACSO) o curso interbacional 'Epistemologias do Sul' (CLACSO-CES). Anteriormente foi Professora da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique). De entre os temas de investigação sobre os quais se debruça destacam-se os debates pós-coloniais em contexto africano, o pluralismo jurídico - com especial ênfase para as relações entre o Estado e as 'autoridades tradicionais' no contexto africano -, e o papel da história oficial, da(s) memória(s) e de ´outras´ narrativas de pertença nos processos identitários contemporâneos. Participou em inúmeros projectos de investigação, coordenando atualmente uma pesquisa sobre as relações afetivas durante a guerra. Organizou e publicou vários livros e artigos. A sua mais recente publicação é 'Mozambique on the Move. Challenges and Reflections' (Brill, 2018), organziada com Sheila P. Khan e Bjorn Bertelsen. Entre outros trabalhos é de referir 'As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais' (com Bruno Sena Martins, Almedina, 2013), as 'Epistemologias do Sul' (com Boaventura de Sousa Santos, Almedina, 2009, 2011; Cortez, 2010 e Alkal, 2014), 'O Direito Por Fora do Direito: As Instâncias Extra-Judiciais de Resolução de Conflitos em Luanda, Angola' (com Júlio Lopes, lmedina, 2012). Tem o seu trabalho publicado em diversos países, incluindo Moçambique, Espanha, Portugal, Brasil, Senegal, Estados Unidos, Inglaterra, Argentina, Alemanha, Holanda e Colômbia.