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Reflexão
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Democracia é saúde
AN Original - Alice Comenta
2019-07-09
Por João Arriscado Nunes

A luta pela saúde e pela dignidade humana, pela inclusão, pela democracia e pela justiça social está hoje na linha da frente do combate ao desmonte neoliberal das políticas públicas e a todas as formas de discriminação e exclusão, contra o assalto à saúde por parte dos grandes grupos económicos que procuram transformar bens públicos em lucrativos setores de atividade económica e de acumulação de capital.

Em Portugal, os episódios mais recentes dessa luta passam pela defesa de uma Lei de Bases da Saúde que garanta a integridade do Serviço Nacional de Saúde, através da reafirmação do seu caráter de serviço público, da sua gestão pública e do seu adequado financiamento, contra as várias modalidades de privatização da sua gestão e da prestação de cuidados, em favor de grandes grupos económicos que encaram a saúde como um negócio.

No Brasil, a mesma luta trava-se em condições particularmente difíceis, num contexto político de desmonte da ordem constitucional, do Estado de Direito e das instituições democráticas. O domínio da saúde está no centro da resistência a esse processo, pautando como prioridade a defesa das conquistas da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátricas que, ao longo das quatro últimas décadas, têm afirmado a saúde como um direito de todos os cidadãos, a garantir através da ação do Estado, por via de um Sistema Único de Saúde, público e universal, e de políticas públicas que garantam a proteção da saúde, do ambiente e da dignidade dos cidadãos. Ao longo dos últimos meses, essa resistência tem sido canalizada para a mobilização em torno da 16ª Conferência Nacional de Saúde, convocada pelo Conselho nacional de Saúde, e da sua preparação, através de conferências municipais e estaduais. Em estadia recente no Estado da Bahia, pude acompanhar e participar em iniciativas associadas a esse processo. 

Sob o lema “Democracia e Saúde”, a 16ª Conferência retoma e amplia os temas que pautaram a histórica 8ª Conferência Nacional, de 1986. A partir de uma intensa participação de profissionais e de movimentos sociais, nesta foi formulada a orientação programática que serviu de base à emenda popular consagrando, na Constituição Federal de 1988, a saúde como “um direito de todos e um dever do estado”.  Já conhecida como a “8ª +8”, a nova Conferência procura relançar e ampliar as bandeiras de 1986, num contexto de grave ameaça às conquistas neste campo. 

É neste contexto que pode ser apreciado o significado do 4º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental, que teve lugar em Salvador da Bahia entre 20 e 22 de junho, reunindo cerca de 2000 participantes, entre usuários e ativistas, profissionais, estudantes e pesquisadores.

Ao longo do Fórum, em sessões de debate, mesas e rodas de discussão, tendas dedicadas à diversidade de práticas terapêuticas, à economia solidária, a práticas artísticas e criativas, foram denunciados os retrocessos que ameaçam as conquistas da Reforma Psiquiátrica e, em particular, o processo de substituição da lógica manicomial pelas novas formas de organização das respostas ao sofrimento criadas no quadro da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica. Esses retrocessos configuram violações graves dos direitos e da dignidade daqueles e daquelas que sofrem ameaças de internações compulsivas, uso de práticas lesivas da sua integridade e entrega dos serviços de saúde mental a organizações religiosas e interesses privados. Mas para além das denúncias, foi visível a mobilização de usuários e de profissionais, em vibrantes manifestações de criatividade e engajamento na defesa da dignidade humana e no combate a todas as formas de desumanização, de discriminação e de exclusão. Indígenas, quilombolas, populações dos campos, florestas e águas, as mulheres, as crianças, a população LGBTI estiveram no centro dos inúmeros debates e rodas que marcaram o Fórum. Deste sai a afirmação da saúde como duplo campo de enfrentamento entre a conceção neoliberal da saúde como negócio e a da saúde como bem comum e como direito, mas também como campo de diferenças e de procura de diálogos entre conceções distintas de como lidar com o sofrimento, a doença, o distúrbio, a vulnerabilização e fragilização da vida.

Para além da urgência de defesa da reforma Sanitária, da Reforma Psiquiátrica e das suas conquistas, as mobilizações em curso no Brasil assinalam a importância das experiências colaborativas, solidárias e participativas que procuram reinventar a saúde, o reconhecimento da diversidade de saberes e práticas que permitem responder ao sofrimento humano, a emergência de ecologias de saberes e práticas do cuidado, na sua diversidade e riqueza, indissociáveis do reconhecimento e afirmação da dignidade humana nas diferentes manifestações e versões que constituem o seu pluriverso. Mas elas incitam-nos também a procurar conhecer e aprender com a imensa e inesgotável riqueza das experiências de luta que, em diferentes partes do mundo, afirmam a dignidade contra a opressão e dominação nas suas diferentes formas.